A casa é servida por uma escadaria estreita, achatada de encontro à parede e singularmente iluminada por uns caixilhos que desenham exteriormente o corrimão, e onde cada andar é indicado por um cano de pia, uma das mais horríveis particularidades de Paris. A loja e a sobreloja pertenciam então a um funileiro; o senhorio morava no primeiro andar; os outros quatro andares eram ocupados por grisettes[41] muito decentes que obtinham do senhorio e da porteira suas condescendências, explicáveis pela dificuldade de arrendar uma casa tão extravagantemente construída e situada. O destino do bairro explica-se pela existência de uma grande porção de casas semelhantes a esta, que o comércio não quer, e que só podem ser exploradas por indústrias inconfessáveis, precárias ou sem dignidade.

v — um interior tão conhecido de uns quanto desconhecido de outros

Às três horas da tarde, a porteira, que tinha visto a srta. Ester entrar em casa às duas da madrugada, quase desfalecida, levada até ali por um jovem, acabava de conferenciar com a grisette do andar superior, a qual, antes de meter-se num carro para ir a uma diversão qualquer, lhe transmitira sua inquietação a respeito de Ester, pois não percebia sinal de vida no quarto desta. Com certeza a rapariga ainda estava dormindo, mas um sono assim era suspeito. Sozinha no seu cubículo, a porteira lamentava não poder ir averiguar o que se passava no quarto andar, onde ficava o aposento de Ester. No momento em que se decidia a confiar ao filho do funileiro o seu posto, espécie de nicho praticado numa reentrância da parede, na sobreloja, um fiacre parou à porta. Um homem envolvido numa capa até os pés, com intenção evidente de ocultar o traje ou a qualidade, apeou-se e perguntou por Ester. A porteira então tranquilizou-se completamente; o silêncio e o sossego da reclusa pareceram-lhe perfeitamente explicados. Quando o visitante subia os degraus, a porteira notou as fivelas de prata que lhe adornavam os sapatos e julgou enxergar a franja de um cinto de sotaina. A porteira desceu à rua e interrogou o cocheiro, que respondeu sem falar; e a mulher compreendeu ainda. O padre bateu, não obteve resposta, ouviu uns ligeiros suspiros e forçou a porta de um encontrão, com um vigor que sem dúvida lhe dava a caridade, mas que em qualquer outro só podia ser devido ao hábito. Correu ao compartimento interior e viu, diante de uma Nossa Senhora de gesso pintado, a pobre Ester ajoelhada, ou antes caída sobre si mesma, com as mãos postas. A pobre rapariga estava a expirar.

Um fogareiro de carvão consumido contava a história daquela terrível manhã. O capuz e o mantelete do dominó estavam no chão, caídos. A cama achava-se intata. A pobre criatura, mortamente ferida no coração, sem dúvida preparara tudo ao voltar da Ópera. Um pavio de vela, coalhado na arandela do castiçal, explicava quanto Ester se havia deixado absorver pelas suas últimas reflexões. Um lenço ensopado em lágrimas provava a sinceridade daquele desespero de Madalena, cuja atitude clássica era a da cortesã irreligiosa. Aquele arrependimento absoluto fez o padre sorrir. Inábil para morrer, Ester deixara a porta aberta sem calcular que a atmosfera dos dois compartimentos exigia maior quantidade de carvão para se tornar irrespirável; o vapor a tinha apenas atordoado; o ar fresco da escada restituiu-a gradualmente ao sentimento de seus males. O padre ficou em pé, absorto numa meditação sombria, sem se comover com a divina beleza daquela rapariga, examinando os seus primeiros movimentos como se se tratasse de algum animal. Seus olhos iam daquele corpo sucumbido a objetos indiferentes, com aparente indiferença. Analisou a mobília do quarto, cujo pavimento de tijolos encarnados, lavados e frios era mal dissimulado por um pobre tapete já mui gasto. Um catre de madeira pintada, antigo, coberto de cortinados de chita amarela com florões encarnados; uma poltrona e duas cadeiras, também de madeira pintada e cobertas do mesmo riscado de que eram feitas as cortinas da janela; um papel escuro com florezinhas enegrecido pelo tempo e encardido; uma banca de mogno; a pedra do fogão, carregada de utensílios de cozinha da espécie mais vil; duas achas de lenha queimadas pela metade; uma prateleira em que havia miçangas misturadas com joias e tesouras; um novelo sujo, um par de luvas brancas e perfumadas, um bonito chapéu sobre o pote da água, um xale de Ternaux[42] que tapava a janela, um vestido elegante suspenso por um prego, um pequeno canapé, descarnado, sem almofadas; uns socos ignóbeis, partidos, e uns sapatinhos de fazerem inveja a uma rainha; pratos de porcelana comum, desbeiçados, onde se viam os restos da última comida, e cheios de talheres pobres; um cesto cheio de batatas e de roupa para lavar, com uma fresca touquinha de gaze por cima; um triste guarda-vestidos de espelho, aberto e vazio, em cujas prateleiras se viam cautelas de casa de penhores: tal era o conjunto das coisas lúgubres e alegres, miseráveis e ricas, que davam na vista. Tais vestígios de luxo entre cacos, uma casa tão bem apropriada à vida boêmia daquela rapariga abatida nas suas roupas em desalinho, como um cavalo que morre com os seus arreios, debaixo dos varais despedaçados, enrodilhado nas rédeas, um espetáculo tão estranho daria que pensar ao padre? Diria ele consigo que ao menos aquela criatura louca havia de ser desinteressada para assim ligar a sua pobreza ao amor de um rapaz rico? Atribuiria ele a desordem da mobília à desordem da vida? Sentiria piedade, horror? Comovia-se porventura a sua caridade? Quem o visse de braços cruzados, fronte pensativa, lábios franzidos, olhar ríspido havia de julgá-lo preocupado com sentimentos sombrios, odientos, com reflexões que se contrariavam, com projetos sinistros. Era por certo insensível às lindas redondezas de um seio quase esmagado sob o peso do busto dobrado e às formas deliciosas da Vênus acocorada que se adivinhavam sob o escuro da saia, tão sucumbida debaixo de si mesma estava a moribunda; o abandono da cabeça, que, vista por trás, oferecia ao olhar a nuca branca, mole e flexível e as belas espáduas de uma natureza audazmente desenvolvida, não o alvoroçava; ele não levantava Ester; parecia não ouvir os arrancos dilacerantes pelos quais se traía o retorno à vida; foram necessários um suspiro espantoso e o olhar consternador que a rapariga lhe deitou para que ele se dignasse erguê-la e colocá-la na cama com uma facilidade que denunciava uma força prodigiosa.

— Luciano! — murmurou ela.

— Se o amor volta, é que a mulher não está longe — disse o padre com certa acrimônia.

A vítima das depravações parisienses viu então o traje do seu salvador, e disse, com o sorriso da criança que põe a mão sobre uma coisa desejada:

— Então não morrerei sem me reconciliar com o céu!

— Poderá expiar suas faltas — disse o padre molhando-lhe a testa com água e fazendo-a cheirar uma galheta de vinagre que achou num canto.

— Sinto que a vida, em vez de me deixar, aflui em mim — disse ela depois de receber os cuidados do padre e exprimindo-lhe sua gratidão por gestos cheios de naturalidade.

Essa pantomima atraente, que as próprias Graças teriam empregado para seduzir, justificava plenamente o apelido da estranha rapariga.

— Sente-se melhor? — perguntou o eclesiástico dando-lhe a beber um copo d’água com açúcar.

O homem parecia achar-se familiarizado com aquelas casas singulares. Conhecia-as como a sua mão. Estava ali como no seu lar. Esse privilégio de estar em toda a parte como em sua casa só pertence aos reis, às meretrizes e aos ladrões.

vi — a confissão de uma ratinha[43]

— Quando se sentir completamente boa — tornou o singular sacerdote após uma pausa —, vai dizer-me as razões que a levaram a cometer o seu último crime, esse suicídio começado.

— A minha história é bem simples — respondeu ela.