Deixou-se levar para almoçar, e quando voltou para casa ia completamente bêbado, mas taciturno.

iv — uma paisagem parisiense

A Rue de Langlade, como as adjacentes, desonra o Palais-Royal e a Rue Rivoli. Essa parte de um dos mais brilhantes bairros de Paris conservará por muito tempo a nódoa dos montículos produzidos pelas imundícies da velha Paris e sobre as quais antigamente havia moinhos. Essas ruas estreitas, sombrias e lamacentas, onde se exercem indústrias pouco cuidadosas das aparências, tomam de noite uma fisionomia misteriosa e cheia de contrastes. Vindo dos pontos luminosos da Rue Saint-Honoré, da Rue Neuve-des-Petits-Champs e da Rue Richelieu, onde se acotovela uma multidão incessante, onde reluzem as obras-primas da indústria, da moda e das artes, todo homem que desconheça a Paris noturna ficaria aterrado e triste ao cair no labirinto de vielas que rodeiam aquele clarão refletido no céu. Às torrentes do gás sucede uma sombra espessa. De longe a longe, algum pálido lampião lança a sua luz incerta e fumosa que nem sequer alumia a certos becos escuros. Os transeuntes, que são raros, caminham depressa. Lojas fechadas; as que estão ainda abertas têm má aparência; alguma taverna suja e sem luz, ou alguma loja onde se vende água-de-colônia. Um frio insalubre estende sobre nossos ombros seu manto úmido. Passam poucas carruagens. Há recantos sinistros, entre os quais se distingue a Rue de Langlade, a saída do beco Saint-Guillaume, e alguns cotovelos de rua. A Câmara Municipal ainda não pode lavar aquela sentina, porque de há muito a prostituição estabeleceu ali o seu quartel-general. É talvez uma fortuna para o mundo parisiense deixar àqueles becos o seu aspecto sórdido. Quem por ali passa durante o dia não pode imaginar o que todas aquelas ruas são à noite; por elas passeiam criaturas estranhas que não pertencem a nenhuma esfera; formas seminuas e brancas enfeitam as paredes; a sombra é animada. Entre a parede e os transeuntes insinuam-se toilettes que andam e falam. Certas portas entreabertas riem às gargalhadas. Chegam aos ouvidos palavras dessas que Rabelais afirma andarem geladas e que se derretem. Ouvem-se cantigas. O ruído não é vago, alguma coisa significa; quando é rouco, é uma voz; mas, apesar de parecido com um canto, nada tem de humano, aproxima-se do silvo. Às vezes ouve-se um assobio. Enfim o bater dos tacões tem um não sei que de provocante e zombeteiro. Este conjunto de coisas dá vertigem. As condições atmosféricas ali são anormais: no inverno faz calor, frio no verão. Mas, seja qual for o tempo, aquela natureza estranha oferece sempre o mesmo espetáculo; está ali o mundo fantástico de Hoffmann, o Berlinense.[40] O sujeito mais positivo, mais matemático, não encontra ali nada de real depois de tornar a passar os estreitos que conduzem às ruas honestas onde há transeuntes, lojas e candeeiros. Mais desdenhosas ou mais envergonhadas que as rainhas e os reis de outrora, que não recearam ocupar-se das cortesãs, a administração ou a política moderna não se atrevem a encarar de frente esta chaga das capitais. É certo que as medidas devem mudar com os tempos, e que são melindrosas aquelas que dizem respeito aos indivíduos e sua liberdade; mas talvez devesse haver mais audácia e mais largueza nas combinações puramente materiais, como o ar, a luz, as ruas. O moralista, o artista e o administrador judicioso hão de ter saudade das antigas Galerias de Madeira do Palais-Royal, onde se confinavam essas ovelhas que hão de encaminhar-se sempre para onde os transeuntes se encaminharem; e não será melhor que os transeuntes vão para o lugar onde elas se acham? Que sucedeu? Hoje as partes mais brilhantes dos bulevares, esse passeio encantado, são à noite vedadas às famílias. A polícia não soube aproveitar os recursos que, sob esse ponto de vista, certas passagens oferecem, para salvar a via pública.

A rapariga ofendida no baile da Ópera morava, havia um ou dois meses, na Rue de Langlade, numa casa de aparência ignóbil. Encostada a um prédio imenso, essa construção, mal caiada, sem profundidade e de uma altura prodigiosa, recebe luz da rua, e dá ideia de um poleiro de papagaio. Em cada andar há uma habitação de dois compartimentos.