A boca vermelha e fresca era uma rosa que nenhuma mácula estragava e onde as orgias não haviam deixado vestígios. O queixo, modelado como se algum escultor amoroso lhe houvesse modelado o contorno, tinha a alvura do leite. Apenas uma coisa que ela não pudera remediar traía a cortesã decaída: as unhas quebradas que só a poder de tempo poderiam recuperar uma forma elegante, tais os estragos que os cuidados caseiros lhes haviam causado.
As jovens colegiais principiaram por invejar aqueles milagres de formosura, mas acabaram por admirá-los. Antes de decorrida a primeira semana, elas se afeiçoaram à ingênua Ester, interessando-se pelos secretos infortúnios de uma moça de dezoito anos que não sabia ler nem escrever, para quem toda a ciência e toda a instrução era uma novidade, e que ia proporcionar ao arcebispo a glória da conversão de uma judia ao catolicismo, ao convento a festa do seu batismo. Perdoaram-lhe sua beleza quando se reconheceram superiores a ela pela educação. Ester adquiriu logo as maneiras, a doçura de voz, o porte e as atitudes daquelas meninas tão distintas; recuperou, enfim, sua primitiva natureza. A mudança foi tão completa que, na primeira visita, o padre Herrera ficou surpreendido, até ele a quem nenhuma coisa deste mundo parecia dever surpreender, e as superioras deram-lhe os parabéns pela sua pupila. Nunca essas mulheres tinham encontrado, na sua carreira de ensino, índole mais amável, doçura mais cristã, modéstia mais genuína, tamanho desejo de aprender. Quando uma rapariga sofreu os males que haviam acabrunhado a pobre colegial e aguarda uma recompensa como a que o espanhol oferecia a Ester, é difícil que ela não opere esses milagres dos primeiros dias da Igreja que os jesuítas renovaram no Paraguai.[50]
— Ela é edificante — disse a superiora beijando-a na fronte.
Esta palavra, essencialmente católica, diz tudo.
x − uma saudade
Durante os recreios, Ester interrogava moderadamente as companheiras sobre as coisas mais simples do mundo, que para ela eram como os primeiros espantos da vida para uma criança. Quando soube que se vestiria de branco no dia do batismo e da primeira comunhão, que seria cingida de uma faixa de cetim branco, que usaria fitas brancas, sapatos brancos, luvas brancas, que teria no penteado laços brancos, desatou a chorar causando espanto às companheiras. Era o contrário da cena de Jefté[51]
na montanha. A cortesã teve medo de ser compreendida e aguou com essa horrível melancolia o júbilo que o espetáculo de antemão lhe estava causando. Como decerto vai tanta distância dos costumes que ela largava aos costumes que adquiria quanto a que vai do estado selvagem ao estado de civilizado, Ester tinha a graça, a profundidade e a ingenuidade que distinguem a maravilhosa heroína dos Puritanos da América
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Tinha ela também, sem o saber, um amor a remorder-lhe o coração, um amor estranho, um desejo, mais violento nela que sabia tudo do que numa donzela que tudo ignora, embora esses dois desejos tivessem a mesma causa e o mesmo fim. Durante os primeiros meses, a novidade de uma vida de reclusa, as surpresas da instrução, os trabalhos que lhe ensinavam, as práticas da religião, o fervor de uma resolução santa, a doçura das afeições que inspirava, enfim o exercício das faculdades da inteligência despertada, tudo lhe serviu para comprimir suas recordações, até mesmo os esforços da nova memória que estava formando, pois ela tinha tanto que desaprender como que aprender. Existem em nós muitas memórias; o corpo tem a sua, o espírito também tem; a nostalgia, por exemplo, é uma doença da memória física. Durante o terceiro mês, a violência dessa alma virgem, que a toda a força das asas demandava o paraíso, foi pois não domada, mas afrouxada por uma surda resistência cuja causa a própria Ester ignorava. Como os carneiros da Escócia, ela queria pastar à parte, e não podia vencer os instintos desenvolvidos pelos desregramentos. Acaso estariam chamando-a as ruas lamacentas da cidade que abandonara? As cadeias dos maus hábitos rompidos ainda a conservariam presa por elos esquecidos e ela ainda as sentiria como, segundo os médicos, os velhos soldados ainda sofrem nos membros que já não têm? Teriam os vícios e seus excessos penetrado tanto na sua medula que as águas santas ainda não alcançavam o demônio lá escondido? A vista daquele por quem se realizavam tantos esforços angélicos seria porventura necessária àquela a quem Deus devia perdoar por misturar o amor sagrado com o amor profano? Este tinha-a conduzido àquele. Processar-se-ia nela um deslocamento da força vital, trazendo consigo sofrimentos necessários? Tudo é dúvida e trevas numa situação que a ciência desdenhou examinar achando o assunto imoral e comprometedor em demasia, como se o médico e o escritor, o padre e o político não fossem superiores a qualquer suspeita. Todavia um médico surpreendido pela morte teve a coragem de encetar estudos que ficaram incompletos. Talvez a negra melancolia que se apoderara de Ester e que obscurecia a sua vida feliz participasse de todas aquelas causas, e a pobre jovem, incapaz de as adivinhar, talvez sofresse como sofrem os doentes que não conhecem nem a medicina nem a cirurgia. O fato é estranho. Uma comida abundante e sadia, que viera substituir uma detestável nutrição inflamatória, não sustentava Ester. Uma vida pura e regrada, repartida entre trabalhos moderados e distrações, em vez de uma vida desordenada cujos prazeres eram tão horríveis quanto as penas, uma vida assim quebrantava a jovem pensionista. O repouso mais fresco, as noites mais tranquilas, vindo substituir fadigas esmagadoras e agitações as mais cruéis, davam-lhe uma febre cujos sintomas escapavam à perspicácia da enfermeira. Finalmente, o bem, a ventura, sucedendo ao mal e ao infortúnio, a segurança à inquietação eram tão funestos a Ester quanto as suas passadas misérias o seriam às suas companheiras. Implantada na corrupção, ela aí se desenvolvera. Sua pátria infernal exercia ainda seu império, a despeito das ordens soberanas de uma vontade absoluta. O que Ester odiava era para ela a vida, o que amava matava-a. Tinha uma fé tão ardente que sua piedade era um encanto para a alma.
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