Gostava de rezar. Tinha franqueado a alma às claridades da verdadeira religião, que abraçava sem esforços e sem dúvidas. O padre que a dirigia andava contentíssimo; nela, porém, a todo momento o corpo contrariava a alma.

Tiraram-se umas carpas de um poço barrento para as colocar num tanque de mármore e em água límpida, a fim de satisfazer a um desejo da sra. de Maintenon que as sustentava com os sobejos da mesa real. Os peixes definhavam. Podem os animais ser dedicados, mas nunca o homem lhes comunicará a lepra da adulação. Um cortesão notou este silencioso contraste em Versailles. “Elas são como eu”, replicou essa rainha inédita, “têm saudade de suas vasas obscuras.”[53] Esta frase contém toda a história de Ester. Às vezes a pobre moça tinha ímpetos de correr pelos magníficos jardins do convento; ia de árvore em árvore, muito fatigada, ocultava-se com desespero nos recantos obscuros, a procurar o quê? Nem ela o sabia; mas sucumbia ao demônio, dirigia galanteios às árvores, dizia-lhes palavras que não chegava a proferir. Às vezes, de noite, cosia-se com os muros como uma cobra, sem xale, com os ombros nus. Na capela, amiúde, durante os ofícios, tinha os olhos fitos no crucificado, e todos a admiravam; inundava-se de lágrimas, mas ela chorava de raiva; em vez das imagens sagradas que queria ver, as noites ardentes em que ela dirigia a bacanal como Habeneck[54] rege no conservatório uma sinfonia de Beethoven, essas noitadas alegres e lascivas, cortadas de movimentos nervosos, de risos inextinguíveis, se levantavam diante dela desgrenhadas, furiosas, brutais. No exterior ela era doce como uma virgem que só se acha presa à terra pela sua forma humana; lá por dentro agitava-se uma imperial Messalina.[55] Só ela sabia o segredo daquele combate do demônio com o anjo; quando a superiora a censurava por andar penteada mais artisticamente do que a regra consentia, ela mudava o penteado com uma adorável e pronta obediência, estando até disposta a cortar o cabelo se a madre o ordenasse. Essa nostalgia tinha uma graça comovente numa jovem que preferia morrer a voltar para as regiões impuras. Perdeu as cores, mudou muito, emagreceu. A superiora moderou o ensino e chamou para junto de si a interessante criatura, a fim de interrogá-la. Ester era feliz; dava-se muito bem com as companheiras, não se sentia atacada em nenhuma parte vital; mas sua vitalidade estava essencialmente atacada. Não tinha saudade de nada, não desejava nada. A superiora, admirada com as respostas de sua pensionista, não sabia o que havia de pensar vendo-a presa de um definhamento progressivo. Chamou-se o médico quando pareceu grave o estado da jovem colegial; ele porém ignorava a vida anterior de Ester e não podia suspeitar de nada; encontrou vida em toda parte, em nenhuma encontrou sofrimento. As respostas da enferma eram capazes de derrubar todas as hipóteses. Restava um meio de esclarecer as dúvidas do sábio, que se apegava a uma ideia horrorosa: Ester recusou obstinadamente prestar-se ao exame clínico. Nessa conjuntura a superiora apelou para o padre Herrera. O espanhol apresentou-se, viu o estado desesperado de Ester e esteve um momento a falar de parte com o médico. Finda essa confidência, o homem de ciência declarou ao homem de fé que o único remédio era uma viagem à Itália. O padre não quis que essa viagem se fizesse antes do batismo e da primeira comunhão de Ester.

— Quanto tempo demora isso? — perguntou o médico.

— Um mês — respondeu a superiora.

— Ela morre antes — tornou o doutor.

— Mas morre em estado de graça e salva — disse o padre.

Na Espanha a questão religiosa sobrepõe-se às questões políticas civis e vitais; o médico não respondeu nada ao espanhol e voltou-se para a superiora; mas o terrível sacerdote travou-lhe o braço para o conter.

— Nem mais uma palavra, senhor! — disse ele.

O médico, apesar de religioso e monarquista, lançou a Ester um olhar cheio de terna lástima. A pobre jovem era formosa como um lírio pendido na haste.

— Seja o que Deus quiser! — disse ele saindo.

No mesmo dia da consulta, Ester foi levada por seu protetor ao Rocher de Cancale[56] porquanto o desejo de salvá-la sugeria ao padre os mais extravagantes expedientes. Experimentou dois excessos: um excelente jantar que podia recordar à pobre moça as suas orgias, e a Ópera, que lhe apresentaria algumas imagens mundanas. Foi necessário toda a sua preponderante autoridade para decidir a santinha a semelhantes profanações. Herrera disfarçou-se tão completamente em militar que Ester teve dificuldade em reconhecê-lo; tomou a precaução de mandar sua companheira pôr um véu, e colocou-a num camarote onde ninguém podia vê-la. Este paliativo, assaz perigoso para uma inocência tão seriamente reconquistada, depressa perdeu o efeito.