Se Rónai não traduziu propriamente nenhum volume, funcionou como epicentro da edição que, logo nos primeiros volumes, passou a contar com seu cuidado e vigilância. No texto “A operação Balzac”, no livro A tradução vivida , ele especifica sua contribuição:

Coube-me organizar a edição, isto é, estabelecer o plano geral, escolher parte dos tradutores; cotejar e anotar toda a tradução, redigir prefácios para cada uma das 89 obras que a compõem e escrever uma extensa biografia de Balzac, selecionar a documentação iconográfica, reunir uma espécie de antologia da literatura crítica sobre Balzac, compilar índices e concordâncias para o volume final.

Este imenso trabalho, que começou com o pedido de um prefácio de dez páginas e durou muitos anos, cristalizou-se na edição de dezessete volumes. A tradução contou com cerca de vinte tradutores, e Rónai incrementou-a com a redação de 12 mil notas, que se dividiam entre explicações sobre contextos históricos, personagens e seus antecedentes, questões de tradução — expressões idiomáticas e trocadilhos — e ainda truques de linguagem. Segundo Rónai, “Balzac, amigo de anexins, trocadilhos, e jogos de palavras, deleitava-se com todas as curiosidades de linguagem: etimologias, anagramas, parônimos e homônimos”, elementos que, sem uma nota explicativa, eram “de enlouquecer qualquer tradutor”.

Todo esse árduo e cuidadoso trabalho foi respeitado. Além de manter o texto exato das traduções aprovadas por Rónai, corrigindo apenas o que configura erro que por algum lapso passou pelo organizador (é notável, ainda que sejam flagrantes alguns anacronismos e regionalismos, a impressionante riqueza e precisão do vocabulário desses tradutores), reproduzimos na presente edição as 89 apresentações. Delas, disse Rónai:

Sem qualquer veleidade de eruditismo, tentei dar nelas algumas informações indispensáveis a respeito da gênese e da fortuna da obra visada, dos modelos vivos das personagens, da base real (quando havia) do enredo, das reações da crítica etc.

Do mesmo modo, foram respeitadas todas as notas. Também foi mantida a decisão de Rónai de traduzir os prenomes dos personagens, ainda que não seja a opção usual nos dias de hoje. Rónai justifica essa escolha primeiramente pela necessidade de unificar a maneira de nomear os personagens. Em A comédia humana , eles aparecem repetidas vezes, surgem protagonistas e reaparecem coadjuvantes, compondo esse imenso quadro de costumes que é a obra balzaquiana.

Era embaraçoso ver o mesmo herói com um nome ora francês, ora português; às vezes poderia até dar confusão. Seria uma solução deixar todos os nomes em francês. Mas a semelhança entre as duas línguas convidava a usar a forma nacional em vez da francesa: Júlia em vez de Julie, Eugênia em vez de Eugénie, Luís em vez de Louis, como se fazia em muitos romances traduzidos do francês, do inglês e do espanhol. Foi essa a solução que adotamos. Porém, como ficou dito acima, na ficção balzaquiana personagens inventadas acotovelam pessoas reais. Um tradutor espanhol traduziria naturalmente Pierre Corneille por Pedro Corneille, um italiano por Pietro Corneille; mas a praxe brasileira era manter o nome em francês. Adotamos, pois, um critério algo estranho: traduziam-se os nomes das personagens de ficção e reproduziam-se na forma do original os das pessoas reais. Mesmo esta norma admitia exceções: os nomes de pessoas famosas já aportuguesados, como Napoleão, Luís xiv , Maria Antonieta etc.

Também é importante uma observação sobre a escolha de um texto-base para a edição. Com as inúmeras reescrituras dos romances, não há um manuscrito considerado definitivo e o próprio autor retificava seu texto a cada edição. Rónai adotou a edição da Pléiade organizada por Marcel Bouteron, mas não se ateve a ela. Conhecedor dos originais de A comédia humana , adotou na edição brasileira soluções que visavam aproximar o leitor brasileiro do formato original de publicação dos textos de Balzac:

Mas num ponto essa edição, excelente em tudo mais, não me satisfazia. É que nela o texto de Balzac, já difícil por si em muitos trechos, saía excessivamente compacto, sem um espaço branco, uma interrupção, um parágrafo numa dezena de páginas. Se tal fosse a intenção do autor, teríamos que aceitar essa característica, assim como os tradutores de Proust e Joyce respeitam aquela disposição maciça de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas páginas. Mas, devido à familiaridade com a história bibliográfica da obra, sabia que todos aqueles romances tinham saído inicialmente em rodapés de jornais, divididos em capítulos breves, com títulos muitas vezes espirituosos, engraçados, pitorescos, mantidos nas primeiras edições em volumes. Foram os editores sucessivos que, contra a vontade de Balzac, suprimiram a divisão em capítulos por motivos de economia. Em benefício ao leitor brasileiro, reintroduzi a divisão em capítulos, assim como os títulos primitivos.

Resta ainda salientar que a edição, tal qual concebida por Rónai, veio a público apenas em duas ocasiões: na primeira edição, entre 1946 e 1955, e na segunda, a partir de 1989. Muito o entristecia ver essa obra, à qual ele dedicou tantos anos, esgotada e ainda com imperfeições. O desejo da Biblioteca Azul é, pois, consagrar a edição definitiva de Rónai, considerada uma das mais importantes fora da França e um verdadeiro patrimônio cultural brasileiro, e fazer a obra de Balzac reviver uma vez mais entre nós.

introdução

A história bibliográfica de Esplendores e misérias das cortesãs (em francês: Splendeurs et misères des courtisanes ) é das mais complicadas. As partes de que se compõe o romance foram publicadas separadamente, às vezes com intervalos de vários anos, e mudaram de título mais de uma vez.

A primeira metade da atual Primeira Parte, “Como amam as cortesãs”, foi publicada em volume em outubro de 1838, com o título de “A Torpedo”. A segunda metade da Primeira Parte e metade da Segunda Parte, “Por quanto o amor fica aos velhos”, saíram juntas de 21 de maio a 1o de julho de 1843, em jornal, com o título de “Ester ou Os amores de um velho banqueiro”, precedidas da primeira metade da Primeira Parte, já publicada em volume. Em novembro de 1844, numa reedição de “Ester”, apareceu pela primeira vez a segunda metade da Segunda Parte. Nesta reedição a Primeira Parte trazia o título de “Ester feliz”.