Foi necessário mais de um ano de constantes cuidados para ela se habituar às duas terríveis criaturas que o padre chamava
os dois cães de guarda
.
xiv − capítulo aborrecido porque explica quatro anos de felicidade
O procedimento de Luciano, desde a sua volta a Paris, tinha o cunho de uma política tão profunda que devia excitar, e efetivamente excitou, a inveja de todos os seus antigos amigos, contra os quais não exerceu senão a vingança de os fazer enfurecer com os seus triunfos, o seu viver irrepreensível e a sua maneira de manter os outros a distância. O autor das Boninas
, esse poeta tão comunicativo, tão expansivo, tornou-se frio e reservado. De Marsay,[72]
o tipo adotado pela rapaziada parisiense, não empregava nas suas falas nem nas suas ações mais comedimento que Luciano. Quanto a espírito, o jornalista tinha feito outrora suas provas. De Marsay, a quem muita gente opunha Luciano, dando preferência ao poeta, teve a fraqueza de se arreliar com isso. Luciano, que andava nas boas graças de homens poderosos, renunciou tão completamente a toda a ideia de glória literária que se mostrou insensível ao triunfo do seu romance, reeditado com o seu verdadeiro título de O
arqueiro de Carlos
ix
, e aos louros conquistados pelo seu livro de sonetos, vendido por Dauriat numa semana.
— É um sucesso póstumo — explicou ele, sorridente, à srta. des Touches,[73]
que lhe dava os parabéns.
O terrível espanhol mantinha com braço de ferro o seu pupilo na carreira em cujo extremo as fanfarras e proveitos da vitória aguardam o político paciente. Luciano alugara a casa de Beaudenord,[74]
no
Q
uai Malaquais, para ficar perto da Rue Taitbout, e seu conselheiro ocupava três aposentos do mesmo prédio, no quarto andar. Luciano tinha apenas um animal de sela e de tiro, um criado e um moço de cavalariça. Quando não comia fora, ia jantar com Ester. Carlos Herrera trazia tão vigiadas as pessoas da casa do
Q
uai Malaquais que Luciano não chegava a gastar dez mil francos por ano. A Ester bastavam dez mil francos graças à dedicação constante e inexplicável de Europa e de Ásia. Luciano usava de resto as maiores precauções para ir à Rue Taitbout ou para voltar de lá. Nunca ia senão de fiacre, com cortinas corridas, e fazia sempre entrar o carro. Assim, sua paixão por Ester e a existência daquele conchego da Rue Taitbout, inteiramente ignoradas na alta sociedade, não prejudicaram nenhum dos seus empreendimentos e nenhuma das suas relações. Nunca uma palavra indiscreta lhe escapou a respeito de tão melindroso assunto. Suas faltas desse gênero com Corália por ocasião da sua primeira estada em Paris tinham-no ensinado. Sua vida apresentou a princípio essa regularidade de bom-tom debaixo da qual se podem ocultar tantos mistérios: frequentava a sociedade todas as noites até uma hora da madrugada; era encontrado em casa de dez horas da manhã à uma da tarde, depois ia ao Bois de Boulogne e fazia visitas até as cinco horas. Raras vezes andava a pé, e assim evitava os seus antigos conhecidos. Ao ser cumprimentado por antigos jornalistas ou por alguns dos seus antigos camaradas, respondia primeiro com uma inclinação de cabeça que não deixava ninguém zangar-se, mas em que transparecia um desdém profundo que dava cabo da familiaridade francesa. Assim descartou prontamente aqueles com os quais não queria conviver. Um velho ódio impedia-o de ir à casa da sra. d’Espard, a qual muitas vezes desejara tê-lo ao pé de si; se a encontrava em casa da duquesa de Maufrigneuse[75]
ou da srta. des Touches ou da condessa de Montcornet ou em qualquer outra parte, mostrava-se de uma polidez extrema para com ela. Esse ódio, igual na sra. d’Espard, obrigava Luciano a usar de prudência, porque vai ver-se como ele o tinha avivado deixando-se levar a uma vingança que, de resto, lhe valeu uma forte repreensão de Carlos Herrera.
— Tu ainda não és bastante poderoso para te vingares de quem quer que seja — dissera-lhe o espanhol. — Quando se vai a caminho, debaixo de uma soalheira, não se para nem para colher a flor mais linda.
Havia muito futuro e muita superioridade real em Luciano para que os rapazes ofuscados ou melindrados pelo seu regresso a Paris e pela sua inexplicável fortuna não gostassem imensamente de lhe pregar alguma peça. Luciano, que sabia que tinha muitos inimigos, não ignorava essas más disposições dos seus amigos. Por isso o padre prevenia admiravelmente seu filho adotivo contra as traições do mundo, contra as imprudências tão fatais à mocidade. Luciano devia contar-lhe todas as noites, e efetivamente contava, os mínimos acontecimentos do dia.
1 comment