Perversa como todas as
Madelonnettes[68]
juntas, podia ter roubado dos pais e ter roçado pelo banco dos réus. Ásia inspirava um grande terror; mas conhecia-se logo toda, ela descendia em linha reta de Locusta;[69]
ao passo que Europa inspirava um desassossego que tendia a crescer à medida que a gente se servia dela; sua corrupção parecia não ter limites.
— A senhora poderia ser de Valenciennes; eu sou de lá — disse Europa em tom seco. — O senhor — disse ela a Luciano, com ar pedante — quererá dizer-nos que nome dá à senhora?
— Sra. van Bogseck — respondeu o espanhol invertendo imediatamente o nome de Ester. — Ela é judia, originária da Holanda, viúva de um negociante, e com uma doença de fígado trazida de Java... Pouca fortuna, para não excitar a curiosidade.
— Só o bastante para viver, seis mil francos de rendimento — disse Europa. — Até nos podemos queixar de sua mesquinharia.
— Pois é — disse o espanhol inclinando a cabeça. — Suas desavergonhadas! — continuou ele num tom de voz terrível ao surpreender entre Ásia e Europa uns olhares que lhe desagradaram. — Vocês sabem o que eu lhes disse? Façam de conta que servem uma rainha, devem-lhe o respeito que se deve a uma rainha e lhe serão tão dedicadas como a mim próprio. Nem o porteiro, nem os vizinhos, nem os locatários, enfim ninguém no mundo deve saber o que se passa aqui. Tratem de frustrar as curiosidades, se se manifestar alguma. E a senhora — acrescentou pousando a larga mão cabeluda no braço de Ester —, a senhora não deverá cometer a mais ligeira imprudência; em último caso, vocês não deixem, mas... sempre respeitosamente. Você, Europa, fica encarregada de sair para prover ao vestuário da senhora, não se esquecendo de fazer toda a economia possível. Que ninguém, finalmente, nem sequer a pessoa mais insignificante, ponha os pés cá em casa. Vocês duas se arranjem. Minha linda — disse ele dirigindo-se a Ester —, quando quiser sair de carruagem à noite, diga-o a Europa; ela sabe onde há de ir buscar a gente, que lhe convém, pois a senhora terá também o seu recadista cá do nosso jeito, como estas duas escravas.
Ester e Luciano não atinavam com uma palavra que dissessem; escutavam o espanhol e olhavam para as duas preciosas criaturas a quem ele dava ordens. A que segredo deviam a submissão, a dedicação escrita naquelas duas fisionomias, uma tão maldosamente indócil, a outra tão profundamente cruel? O espanhol adivinhou os pensamentos de Ester e de Luciano, que pareciam entorpecidos como deviam estar Paulo e Virgínia[70]
à vista de duas horríveis serpentes, e disse-lhes ao ouvido com sua voz bondosa:
— Podem contar com elas como comigo mesmo; não tenham nenhum segredo para elas, que isso as lisonjeará. Anda, vai servir o almoço, Ásia — disse ele à cozinheira —; e tu, pequena, põe mais um talher — disse a Europa; essas crianças não fazem nada de mais em oferecer o almoço ao papá.
Tendo as duas mulheres fechado a porta, como o espanhol ouvisse Europa andar de um lado para outro, disse a Luciano e a Ester, abrindo a larga mão:
— Tenho-as aqui! — frase e gesto que faziam tremer.
— Onde as descobriste? — indagou Luciano.
— Ora! Aos pés do trono não foi. Vêm do lodo e têm medo de para lá voltar. Ameacem-nas com o
senhor padre
quando não andarem direito, e as verão tremer como ratinhos a quem se fala no gato. Sou domador de animais ferozes — acrescentou sorrindo.
— O que o senhor me parece é um demônio! — observou Ester com graça, agarrando-se a Luciano.
— Minha filha, eu tentei dar você ao céu; mas a cortesã arrependida há de ser sempre uma mistificação para a Igreja; se alguma aparecesse, havia de voltar a ser cortesã no paraíso. Mas enfim você lucrou conseguindo que a esquecessem e tomando todo o jeito de uma senhora da boa sociedade; pois sempre aprendeu no colégio o que nunca podia aprender na esfera infame em que vivia. Oh! Não me deve nada — acrescentou, vendo uma deliciosa expressão de reconhecimento na fisionomia de Ester. — Foi por Luciano que tudo fiz. Você foi cortesã, é cortesã, será sempre cortesã; pois, apesar das sedutoras teorias dos criadores de gado, ninguém pode vir a ser neste mundo senão aquilo para que nasceu. O homem que inventou a teoria das bossas[71]
tem razão. Você tem a bossa do amor.
Como se vê, o espanhol era fatalista, como o eram Napoleão e Maomé, como o eram muitos grandes políticos. É curioso notar que quase todos os homens de ação se inclinam para a
f
atalidade, assim como a maior parte dos pensadores se inclinam para a Providência.
— Eu não sei o que sou — disse Ester com a doçura de um anjo —, mas amo Luciano e hei de morrer adorando-o.
— Venha almoçar — disse bruscamente o espanhol — e peça a Deus que Luciano não se case em breve, porquanto nunca mais tornaria a ver.
— Seu casamento seria a minha morte — disse ela.
Deixou passar adiante o falso padre para poder falar ao ouvido de Luciano sem ser observada.
— É vontade tua — perguntou ela — que eu continue à mercê desse homem que me faz guardar por aquelas duas hienas?
Luciano inclinou a cabeça. A pobre rapariga conteve sua tristeza e aparentou alegria; mas ficou horrivelmente oprimida.
1 comment