Nunca deitava os olhos além da esfera em que resplandecia, o padre lho recomendara muito, porque entrava nos planos desse profundo político que Luciano tivesse grandes oportunidades. A felicidade não tem história, e tão bem compreenderam isto os contistas de todos os países que a frase “Foram felizes” — termina todas as aventuras de amor. De modo que não há remédio senão explicar os elementos dessa felicidade verdadeiramente fantástica no meio de Paris. Foi a felicidade na sua forma mais bela, um poema, uma sinfonia de quatro anos! Todas as mulheres dirão: “É muito!”. Nem Luciano nem Ester tinham dito: “É demais!”. Enfim a fórmula “Foram felizes” foi para eles ainda mais explícita que nos contos de fadas, porque não tiveram filhos . Assim, Luciano podia galantear na alta sociedade, entregar-se aos seus caprichos de poeta e, digamos o termo, às necessidades da sua posição. Durante o tempo em que ia seguindo lentamente o seu caminho, prestou serviços secretos a algumas personagens políticas, cooperando nos seus trabalhos. Nesse ponto ele foi de uma grande discrição. Cultivou muito a companhia da sra. de Sérisy, de quem, no dizer dos salões, gozava grande intimidade. A sra. de Sérisy arrebatara Luciano à duquesa de Maufrigneuse, que diziam não fazer mais caso dele, um dos modos de dizer com que as mulheres se vingam de uma felicidade invejada. Luciano estava, por assim dizer, no regaço da capelania-mor do paço, e na intimidade de algumas senhoras que se davam com o arcebispo de Paris. Modesto e discreto, ele esperava com paciência. Assim, o dito de De Marsay, que então se havia casado e que fazia sua mulher levar a vida que Ester levava, continha mais de uma observação. Mas os perigos submarinos da posição de Luciano hão de ser bem explicados no decurso desta história.

xv − como um lobo-cerval encontrou a ratinha e o que adveio desse encontro

Em tais circunstâncias, por uma bela noite de junho, o barão de Nucingen[77] voltava a Paris, vindo das terras de um banqueiro estrangeiro estabelecido na França e em cuja casa jantara. Fica essa propriedade a oito léguas de Paris, em Brie. Como o cocheiro se gabasse de levar e trazer o barão sem mudar de cavalos, tomou a liberdade de caminhar a passo ao cair a noite. Entrando no b ois de Vincennes, eis a situação dos animais, dos criados e do amo. Literalmente emborrachado na copa do ilustre autocrata do câmbio, o cocheiro, bêbado como um odre, dormia, mas com as rédeas na mão, chegando a iludir quem passasse. O trintanário, sentado na traseira, roncava como um pião da Alemanha, terra das figurinhas de madeira esculpida, dos grandes Reinganum[78] e dos piões. O barão quis pensar; mas, a partir da Pont de Gournay, fechou-lhe o olhar a doce sonolência da digestão. Pela brandura das guias, os cavalos compreenderam o estado do cocheiro, ouviram o ressonar contínuo do trintanário, viram-se senhores da situação e aproveitaram aquele escasso quarto de hora de liberdade para andarem a seu gosto. Escravos inteligentes, ofereceram aos ladrões o ensejo de roubar um dos maiores capitalistas da França, o mais profundamente hábil. Afinal, atraídos por essa curiosidade que toda a gente poderá ter notado nos animais domésticos, pararam num ponto qualquer, diante de outros cavalos, aos quais decerto disseram na sua língua: “De quem são vocês? Que fazem? Vivem felizes?”. Parando a caleça, o barão, amodorrado, acordou. Julgou primeiro estar ainda no parque do seu colega; depois surpreendeu-o uma visão celeste que o apanhou sem a sua arma habitual, o cálculo. Estava um luar tão bonito que até se podia ler um jornal da noite. Pelo silêncio das matas, e àquela claridade pura, o barão viu uma mulher sozinha que, ao subir para uma carruagem de aluguel, observou o singular espetáculo daquela cabeça adormecida. A vista desse anjo, o barão de Nucingen foi como que iluminado por um facho interior.