O presente imperioso ressurge e ofusca o passado.

Ontem tentei um abandono total. A experiência terminou no sono mais profundo e não obtive outro resultado senão um grande descanso e a curiosa sensação de haver visto alguma coisa importante durante o sono. Mas esqueci-me do que era, perdendo-a para sempre.

Graças ao lápis que hoje trago à mão, mantenho-me desperto. Vejo, entrevejo imagens bizarras que não podem ter qualquer relação com meu passado: uma locomotiva que resfolega pela encosta acima a arrastar inúmeros vagões; sabe-se lá de onde vem e para onde vai e o que estará fazendo nestas recordações?

Na minha sonolência, recordo que o compêndio assegurava, por este sistema, ser possível recordarmos a primeira infância, a dos cueiros. De repente, vejo uma criança de fraldas, mas por que tem de ser eu? Não se parece nada comigo; na verdade, acho que se trata do bebê de minha cunhada, nascido há poucas semanas e que ela mostrava a todos como se fosse um milagre, porque tinha as mãos tão pequenas e os olhos tão grandes. Pobre criança! Ainda bem que se trata de recordar a minha infância! Não saberia encontrar um jeito de te aconselhar, agora que vives a tua, sobre a importância de recordá-la para o bem de tua inteligência e de tua saúde. Quando chegarás a saber que seria bom se pudesses reter na memória a tua vida, até mesmo as partes que te possam repugnar? E, no entanto, inconsciente, vais investigando o teu pequeno organismo à procura do prazer, e as tuas deliciosas descobertas te levarão à dor e à doença, para as quais contribuirão até mesmo aqueles que mais te querem. Que fazer? É impossível tutelar teu berço. No teu seio — pequerrucho! — se vai processando uma combinação misteriosa. Cada minuto que passa, lança-lhe um reagente. Há demasiadas possibilidades de doenças para ti, porque não é possível que sejam puros todos esses minutos. E além disso — pequerrucho! — és consangüíneo de pessoas que conheço. Os minutos que agora passam até que podiam ser puros, mas tal não foram decerto os séculos que te prepararam.

Eis-me bem afastado das imagens que prenunciam o sono. Vejamos amanhã.

O FUMO

 

O médico com quem falei a esse respeito disse-me que iniciasse meu trabalho com uma análise histórica da minha propensão ao fumo.

— Escreva! Escreva! O que acontecerá, então, é que você vai se ver por inteiro.

Acredito, inclusive, que a respeito do fumo posso escrever aqui mesmo, à minha mesa, sem necessidade de ir sonhar ali naquela poltrona. Não sei como começar e invoco a assistência de todos os cigarros, todos iguais àquele que tenho na mão.

Hoje, descubro de repente algo de que não mais me recordava. Os primeiros cigarros que fumei já não se encontram à venda. Pelos anos 70, tínhamos na Áustria daqueles cigarros vendidos em caixinhas de papelão, nas quais se estampava o brasão da águia bicéfala. Era isto: ao redor de uma das pequenas caixas agrupavam-se várias pessoas, mostravam um ou outro traço de sua fisionomia, suficiente para insinuar-me o nome deste ou daquele, embora não fosse ele bastante para deixar comover-me pelo inesperado encontro. Procuro buscar mais e vou para a poltrona; as pessoas esfumam-se, dando lugar a indivíduos cômicos, de pouca graça, a escarnecer de mim. Com desconforto, retorno à mesa.

Uma das figuras, de voz meio rouca, era Giuseppe, adolescente de minha idade, e a outra, meu irmão, um ano mais novo que eu, já falecido há tanto tempo. Parece que Giuseppe ganhava muito dinheiro do pai e nos presenteava com aqueles cigarros.

Tenho certeza, porém, de que os oferecia mais a meu irmão do que a mim. Vem daí a necessidade que enfrentei para conseguir outros por conta própria. Sucedeu, portanto, que passei a roubar.

No verão, meu pai deixava sobre uma cadeira, na sala de jantar, seu colete, em cujo bolso havia sempre alguns trocados: eu catava as moedas necessárias para adquirir a preciosa caixinha e fumava um cigarro após o outro, os dez que ela continha, para não conservar por muito tempo o fruto comprometedor de meu furto.

Todas essas coisas jaziam em minha consciência ao alcance da mão. Só agora ressurgem, porque não sabia antes que pudessem ter importância. Mas com isso já registrei a origem do hábito pernicioso e (quem sabe?) talvez assim esteja curado. Para certificar-me, vou acender um último cigarro, que talvez atire fora em seguida, enojado.

Recordo-me de que meu pai um dia me surpreendeu com o colete dele na mão. Eu, com uma desfaçatez que agora não teria e que ainda hoje me repugna (é possível que tal sentimento de repulsa venha a ter mesmo grande importância em minha cura), disse-lhe que fora assaltado pela curiosidade de contar os botões de seu colete. Meu pai riu dessa minha disposição para a matemática ou para a alfaiataria e não percebeu que eu tinha os dedos metidos no bolsinho. Seja dito em meu louvor que bastou aquele riso, provocado por uma inocência que não havia em mim, para impedir-me para sempre de roubar. Ou melhor...