A dama oculta
Ethel Lina White
A DAMA OCULTA
TRADUÇÃO Rogério Bettoni

C A P Í T U L O 1

Sem arrependimentos
Um dia antes do desastre, Iris Carr teve sua primeira premonição do perigo. Ela estava acostumada a se sentir protegida por um grupo de pessoas a quem, com inconsciente lisonja, chamava de “amigos”. Uma mulher atraente, órfã e cheia de posses, estava sempre cercada por um monte de gente. Essas pessoas pensavam por ela – ou melhor, suas opiniões eram aceitas por ela –, e como sua voz tinha um registro muito baixo para interações sociais coletivas e agitadas, elas também falavam por ela.
A presença constante dessas pessoas tendia a criar a ilusão de que Iris convivia em um grande círculo, apesar de os mesmos rostos reaparecerem com uma regularidade sazonal. Elas também lhe proporcionavam uma agradável sensação de popularidade. Depois que a imprensa anunciara seu noivado com um membro desse grupo, sua fotografia apareceu nos jornais graças à oferta de publicidade de um fotógrafo.
Isso é o que podemos chamar de “fama”.
Pouco tempo depois, no entanto, o noivado foi rompido por consentimento mútuo – uma ocasião legítima para a divulgação de outra fotografia. Mais fama. Sua mãe, que morrera ao lhe dar à luz, talvez teria rido ou chorado diante desses lamentáveis lampejos da vaidade humana, que como bolhas de metano vão surgindo da escuridão submersa.
Quando experimentou a insegurança pela primeira vez, Iris estava se sentindo especialmente bem e feliz depois de alguns dias de descanso saudáveis e pouco convencionais. Com o triunfo próprio dos quase desbravadores, o grupo foi parar num belíssimo vilarejo de pitoresca pobreza, escondido num canto remoto da Europa, e tomou posse dele pelo simples fato de rabiscar seus nomes no livro de visitantes.
Durante quase um mês eles invadiram o solitário hotel, para o satisfeito desencanto do proprietário e de sua equipe. Escalaram montanhas, nadaram no lago e se banharam ao sol em todos os declives disponíveis. Quando estavam dentro do hotel, lotavam o bar, gritavam por sobre o som do rádio e davam gorjeta para os serviços mais insignificantes. O proprietário sorria para eles detrás da caixa-registradora abarrotada de dinheiro, e os garçons sorridentes davam a eles um tratamento preferencial, para a tristeza genuína dos outros hóspedes ingleses.
Para essas seis pessoas, Iris parecia ser apenas mais uma no meio da turma, uma típica garota da média sociedade – fútil, egoísta e sem valor. Naturalmente, eles ignoravam alguns fatores compensatórios – aquela generosidade que a fazia aceitar a conta, rotineiramente, quando almoçava com seus “amigos”, e uma verdadeira compaixão pelas situações de miséria que se amontoavam sob seus olhos.
Mas apesar de registrar apenas vagamente alguns momentos fugazes de dissabor e desdém por si própria, ela tinha consciência do traço exigente de seu caráter, que a mantinha distante de qualquer tendência à intemperança. Naquelas férias, ela ouviu a flauta de Pã, mas não experimentou o coice de suas patas traseiras.
Em pouco tempo, as flexíveis regras sociais da turma foram se afrouxando. Eles se bronzearam, beberam e se divertiram, enquanto os laços matrimoniais se tornavam agradavelmente indistintos. Cercada por uma miscelânea de pessoas inseguras no casamento, foi um grande choque para Iris quando uma das mulheres, Olga, de repente demonstrou um senso tardio de propriedade e a acusou de querer roubar seu marido.
Apesar da cena desagradável, seu senso de justiça foi ultrajado. Ela tinha sido apenas permissiva com um sujeito abandonado, que parecia um componente extra de uma máquina doméstica desconjuntada. Não era sua culpa que ele tivesse perdido a cabeça.
Para piorar ainda mais essa difícil situação, ela não encontrou nenhum sinal de lealdade verdadeira entre seus amigos, que tinham claramente se divertido com aquela agitação. Desse modo, para aliviar a tensão, ela resolveu não voltar para a Inglaterra com aquele grupo, mas prolongar sua estada por mais dois dias – sozinha.
No dia seguinte, quando acompanhou o pessoal até a estação de trem, pequena e rudimentar, ela ainda estava com raiva. Eles já tinham reagido à perspectiva de retornar à civilização: usavam suas roupas da moda e estavam mais ou menos arranjados como legítimos casais, dando sequência natural à identificação das malas e reservas.
O trem estava indo para Trieste, cidade definitivamente marcada no mapa. Estava cheio de turistas, que também retornavam para as calçadas e os postes de luz. Sem se lembrar das encostas e da luz das estrelas, o grupo reagia ao barulho e ao alvoroço, parecendo recuperar sua velha lealdade enquanto se juntava em volta de Iris.
– Tem certeza de que não vai ficar entediada, querida?
– Mude de ideia e tome o trem!
– Você simplesmente tem de vir!
Quando soou o apito, eles tentaram empurrá-la para dentro do vagão do jeito que ela estava, de short e botas de caminhada, e com o rosto brilhoso, bronzeado de sol, sem nenhuma maquiagem. Ela lutou como um canguru para se libertar, e só conseguiu saltar do trem quando a plataforma estava começando a passar pela janela.
Rindo e ofegando por causa da luta, ela parou e acenou para o trem que se afastava, até vê-lo desaparecer na curva do desfiladeiro.
Sentiu-se quase culpada quando percebeu certo alívio de ter se separado dos amigos. Mas, embora as férias tivessem sido um sucesso, sua satisfação se devia principalmente às fontes primevas: o sol, a água e a brisa das montanhas. Impregnada na natureza, ela se ressentia um pouco da intrusão humana.
O grupo esteve muito próximo e muito íntimo. Em determinados momentos, ela havia percebido notas dissonantes – o riso alto e agudo de uma mulher; a silhueta rechonchuda do corpo de um homem, pronto para mergulhar; um apelo frívolo e contínuo ao “Meu Deus”.
Era verdade que, embora tivesse se tornado crítica dos amigos, ela também se deixou levar pela corrente. Como os outros, tinha ficado encantada pelo maravilhoso cenário, embora o encarasse como algo costumeiro. Era natural que quando as pessoas viajassem para lugares remotos que nem existiam nos mapas, percebessem a paisagem melhorar automaticamente, e os padrões de sanea-mento diminuírem.
Finalmente estava sozinha com as montanhas e o silêncio. Lá em baixo, um lago verde como a grama, brilhando com os reflexos vítreos da luz do sol. A silhueta dos picos das cordilheiras distantes, todos cobertos de neve, se destacava contra o céu ciano.
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