Refere-se ao caso do escravo Thomas Simms, que fugiu da uma plantação na Georgia e viveu um tempo em Boston, Massachusetts. Preso com base na Lei do Escravo Fugitivo em abril de 1851, foi devolvido a seu proprietário, depois de um julgamento rumoroso e sob protestos dos abolicionistas. Vendido a outro dono no Mississippi, fugiu de novo e voltou para Boston em 1863, portanto depois da presente palestra de Thoreau.
c- No original, Commonwealth, isto é, a união de quatro estados norte-americanos: Massachusetts, Kentucky, Pensilvânia e Virgínia.
d- Anthony Burns (1834-62) foi um escravo nascido em Stafford, na Virgínia. Tornou-se sacerdote batista na juventude e fugiu de seu proprietário. Com a aprovação, em 1850, da Lei do Escravo Fugitivo, que permitia a captura de escravos nos estados do norte que já haviam abolido a escravidão, Burns foi preso e julgado em Boston, num caso que gerou muita polêmica e agitação abolicionista, incluindo um ataque contra o Tribunal de Justiça e o delegado federal. Tropas federais garantiram o embarque de Burns num barco para voltar à Virgínia. Teve depois sua liberdade comprada por simpatizantes de Boston e foi servir como pastor batista no Canadá.
e- Referência à North Bridge, ponte sobre o rio Concord, em Concord, Massachusetts, um dos locais onde se travou em 1875 a histórica Batalha de Concord, no início da Guerra de Independência dos Estados Unidos.
f- Daniel Webster (1782-1852): como senador por Massachusetts e, posteriormente, secretário de Estado dos Estados Unidos, Webster foi um dos artífices da Lei do Escravo Fugitivo, de 1850.
g- Corruptela de Boxborough, cidadezinha do condado de Middlesex, em Massachusetts.
h- Há no original um jogo de palavras intraduzível, pois Thoreau usa o vocábulo backslider, que significa “apóstata” (aquele que renega uma fé), mas que, no contexto, dá também a ideia de algo ou alguém que desliza para trás.
i- Boston Tea Party: ação levada a cabo em Boston por colonizadores de Massachusetts contra o governo britânico e seu monopólio sobre a importação de chá para as colônias. Em 16 de dezembro de 1773, eles invadiram barcos carregados de chá e jogaram a carga no estuário de Boston.
j- O Compromisso do Missouri foi um acordo firmado em 1820 entre facções favoráveis e contrárias à escravidão nos Estados Unidos, referente à regulação do trabalho escravo nos territórios do Oeste.
Caminhar
[1862]
Quero dizer uma palavra em favor da Natureza, da liberdade absoluta e do estado selvagem, em contraste com uma liberdade e uma cultura meramente civis — tomando o homem como um habitante, uma parte, um quinhão da Natureza, mais do que como um membro da sociedade. Desejo fazer uma declaração extremada, se possível enfática, pois já há paladinos da civilização suficientes: o sacerdote, o comissário escolar e cada um dos senhores se encarregam disso.
Ao longo da vida não conheci mais do que uma ou duas pessoas que tivessem compreendido a arte de Caminhar, isto é, de fazer caminhadas — que tivessem o espírito, por assim dizer, da perambulação, cuja bela palavra em inglês, sauntering, deriva lindamente “das pessoas ociosas que vagavam pelo interior, na Idade Média, e pediam esmolas a pretexto de se dirigirem à la Sainte Terre”, à Terra Santa, até que as crianças começaram a exclamar: “Lá vai um Sainte-Terrer”, um saunterer. Aqueles que nunca vão à Terra Santa em suas caminhadas, mesmo que finjam fazê-lo, são de fato meros desocupados e vagabundos; mas aqueles que vão em direção a ela são os saunterers no bom sentido que dou à palavra. Há, no entanto, quem sustente que a palavra deriva de sans terre, sem terra ou sem lar, o que, portanto, no bom sentido, significará o que não tem um lar específico, mas se sente em casa em toda parte. Pois esse é o sucesso da perambulação bem-sucedida. Aquele que fica sentado em casa o tempo todo pode ser o maior dos errantes; mas o saunterer, no bom sentido, não é mais errante do que o rio sinuoso, que entretanto está sempre buscando laboriosamente o caminho mais curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira etimologia da palavra, que é, de fato, a mais provável. Pois cada caminhada é uma espécie de cruzada, proclamada por algum Pedro o Eremita dentro de nós, para reconquistar esta Terra Santa das mãos dos infiéis.
É verdade que não passamos de cruzados medrosos, mesmo os andarilhos, que hoje em dia não abraçam mais nenhuma missão perseverante e sem fim. Nossas expedições não são mais do que passeios, que terminam à noitinha de volta às imediações do velho lar de onde partimos. Metade da caminhada se resume ao retorno pela mesma trilha. Deveríamos aproveitar, quem sabe, até mesmo a mais curta das caminhadas, no espírito da aventura infinita, para nunca mais voltar — preparados para mandar de volta a nossos desolados reinos apenas nossos corações embalsamados, na qualidade de relíquias. Se você está pronto para abandonar pai e mãe, irmão e irmã, esposa, filhos, amigos, e jamais tornar a vê-los — se pagou suas dívidas, redigiu seu testamento, pôs seus assuntos em ordem e é um homem livre, então está pronto para uma caminhada.
Para ficar na minha própria experiência, meu companheiro de caminhada e eu — pois às vezes tenho um companheiro — deleitamo-nos em imaginar que somos membros de uma nova, ou antes de uma velha ordem — não de cavaleiros equestres, nem fidalgos, apenas andarilhos, uma classe ainda mais antiga e honorável, creio. O espírito heroico e cavalheiresco que outrora pertenceu ao cavaleiro equestre agora parece residir — ou antes subsistir — no andarilho. Não o Cavaleiro, mas o Andarilho Errante. Ele é uma espécie de quarto estado, ao lado da Igreja, do Estado e do Povo.
Temos a impressão de que somos quase os únicos nas redondezas a praticar essa nobre arte; apesar de que, a bem da verdade, pelo menos se levarmos em conta o que diz a maioria de nossos concidadãos, eles caminhariam de bom grado, como eu, só que não podem. Não há riqueza capaz de comprar o tempo livre, a liberdade e a independência necessários, que são o cabedal nessa profissão. Eles vêm apenas pela graça de Deus. Tornar-se um andarilho requer uma decisão direta dos Céus. É preciso ter nascido na família dos Andarilhos. Ambulator nascitur, non fit. É verdade que alguns de meus concidadãos são capazes de lembrar e descrever para mim algumas caminhadas que fizeram dez anos atrás, nas quais tiveram a bênção de se perder por meia hora nos bosques; mas sei muito bem que desde então eles se restringiram à estrada principal, malgrado as pretensões que possam ter de pertencer a essa seleta classe. Eles sem dúvida sentiram-se enlevados por um momento pela reminiscência de um nível anterior da existência, no qual chegaram a ser mateiros e proscritos.
Quando ele chegou à floresta verde,
Numa alegre manhã,
Ouviu as singelas notas
De pássaros a cantar alegremente.
“Faz muito tempo”, disse Robyn,
“Que estive aqui pela última vez;
Quero ficar mais um pouco
Para atirar na corça marrom”.a
Penso que não sou capaz de preservar minha saúde e minha disposição se não passar pelo menos quatro horas por dia — e geralmente mais do que isso — perambulando pelos bosques, morros e campos, absolutamente livre de compromissos mundanos. Pode-se dizer com segurança: um tostão por seus pensamentos, ou mil libras.
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