Suponhamos que o senhor tenha uma pequena biblioteca, com quadros para adornar as paredes e um jardim ao redor, e que tenha aspirações literárias, científicas etc., e que descubra de repente que sua propriedade, com tudo o que há nela, está localizada no inferno, e que o juiz de paz tem o casco fendido e um rabo bifurcado — essas coisas todas não perderiam subitamente seu valor a seus olhos?

Sinto que, até certo ponto, o Estado tem interferido fatalmente em minhas atividades legítimas. Ele não apenas barrou minha passagem pela rua do Tribunal, a caminho das compras, mas interrompeu também o meu caminho e o de todo homem que quisesse andar para um lado ou para outro e se afastar da rua do Tribunal. Com que direito o Estado me faz lembrar da rua do Tribunal? Descobri que era oco aquilo que eu mesmo julgara ser sólido.

Fico surpreso ao ver homens cuidando de seus afazeres como se nada tivesse acontecido. Digo a mim mesmo: Infelizes! Não ouviram as notícias. Surpreende-me que o homem que acabei de ver montado sobre o seu cavalo empenhe-se tão seriamente em arrebanhar suas vacas desgarradas, já que toda propriedade é insegura e, mesmo que não se desgarrem, elas podem ser tiradas dele a qualquer momento. Tolo! Não sabe, por acaso, que suas sementes de milho estão valendo menos este ano? Não sabe que todas as boas colheitas malogram à medida que a pessoa se aproxima do império do Mal? Nenhum homem prudente construirá um depósito sob tais circunstâncias, ou se empenhará em um empreendimento pacífico que demande um longo tempo para vingar. A arte é duradoura como sempre foi, mas a vida está mais truncada e menos disponível para as atividades respeitáveis de um homem. Esta não é uma época de tranquilidade. Já esgotamos toda a liberdade que herdamos. Se quisermos salvar nossas vidas, devemos lutar por elas.

Caminho em direção a um de nossos lagos, mas o que significa a beleza da natureza quando os homens são ignóbeis? Vamos até os lagos para ver nossa serenidade refletida neles; quando não estamos serenos, não vamos até eles. Quem pode estar sereno num país em que governantes e governados são desprovidos de princípios? A lembrança de meu país estraga minha caminhada. Meus pensamentos são de assassinar o Estado, e involuntariamente tramam contra ele.

Mas aconteceu outro dia de eu me deparar com um lírio do pântano. A estação que eu esperava chegou. É o emblema da pureza. Nasce tão puro e belo aos nossos olhos, e de aroma tão suave, como para nos mostrar que a pureza e a doçura residem no lodo da terra, e dele podem ser extraídas. Acho que colhi o primeiro que brotou num raio de dois quilômetros. Que confirmação de nossas esperanças está contida na fragrância dessa flor! Graças a ela não perderei tão cedo a esperança no mundo, apesar da escravidão, da covardia e da falta de princípios dos homens do Norte. Ela sugere o tipo de lei que prevaleceu por mais tempo e mais amplamente, e ainda prevalece, e chegará o dia em que os atos dos homens venham a ter um perfume doce assim. Tal é o aroma que a planta emite. Se a Natureza ainda é capaz de produzir essa fragrância a cada ano, devo considerar que ela continua jovem e cheia de vigor, com sua integridade e seu espírito intactos, e que existe virtude até mesmo no homem, que tem condições de percebê-la e amá-la. A flor me faz lembrar que a Natureza não compactuou com nenhum Compromisso do Missouri.j Não sinto o cheiro de nenhum compromisso na fragrância do lírio do pântano. Ele não é uma Nimphaea douglassii. Nele, aquilo que é doce, puro e inocente é completamente apartado do que é obsceno e maligno. Não sinto nele o cheiro da indecisão oportunista de um governador de Massachusetts ou de um prefeito de Boston. Sendo assim, ajam de modo a fazer com que o aroma de suas ações realce a doçura geral da atmosfera, para que, ao sentir a fragrância de uma flor, não sejamos forçados a lembrar o quanto suas ações são incongruentes com ela; pois todo odor não é senão uma forma de anunciar uma qualidade moral, e se não tivessem sido realizadas boas ações, o lírio não teria um aroma doce. O lodo malcheiroso representa a indolência e a depravação do homem, a deterioração da humanidade; a flor aromática que brota dele representa a pureza e a coragem, que são imortais.

A cada ano, a escravidão e o servilismo não produzem nenhuma flor de aroma doce, para encantar os sentidos dos homens, pois não têm uma verdadeira vida: são meramente decomposição e morte, repulsivas a qualquer narina saudável. Não protestamos contra o fato de existirem, mas sim de não terem sido enterrados. Que os vivos os enterrem; até mesmo eles servem como adubo.

 

 

 

 

a- Também chamado de Compromisso do Missouri. Ver nota à p. 79.

b- A “Tragédia de Simms” foi uma causa célebre do abolicionismo norte-americano.