Entro num pântano como quem entra num lugar sagrado — um sancto sanctorum. Ali está a força, o âmago da natureza. A mata selvagem cobre o humo virgem, e o mesmo solo é bom para os homens e para as árvores. Do mesmo modo que a saúde de um homem requer certa extensão de campinas à sua vista, sua fazenda precisa de uma grande quantidade de adubo natural. É aí que reside o alimento que o nutre e fortifica. Uma cidade é salva tanto por seus homens íntegros como pelas matas e pântanos que a cercam. Um município em que uma floresta primitiva floresce por sobre outra floresta primitiva em decomposição — uma cidade assim tem condições de produzir não apenas milho e batatas, mas também poetas e filósofos para as eras vindouras. De semelhante solo nasceram Homero, Confúcio e os outros, e de uma natureza assim agreste surge o Reformador que se alimenta de gafanhotos e mel selvagem.
Preservar animais selvagens geralmente implica a criação de uma floresta na qual eles possam morar ou se refugiar. O mesmo ocorre com o homem. Cem anos atrás vendiam-se nas ruas de nossas cidades cascas de árvores extraídas de nossas próprias florestas. No próprio aspecto daquelas árvores primitivas e ásperas havia, penso eu, uma propriedade de curtimento que robustecia e consolidava as fibras dos pensamentos dos homens. Ah! Estremeço diante destes dias atuais, comparativamente degradados, do meu vilarejo natal, em que não se pode mais juntar uma porção de cascas de árvore de boa espessura — e em que não mais produzimos alcatrão e terebintina.
As nações civilizadas — Grécia, Roma, Inglaterra — eram sustentadas pelas florestas primitivas que se tinham decomposto no solo onde elas se elevaram. Elas sobrevivem enquanto o solo não se exaure. Pobre cultura humana! Pouco se pode esperar de uma nação quando o humo está esgotado e ela é compelida a usar como adubo os ossos dos ancestrais. Nela o poeta se alimenta meramente de sua própria gordura supérflua, e o filósofo míngua até os ossos.
Dizem que a tarefa do americano é “lavrar o solo virgem” e que “a agricultura aqui já assume proporções desconhecidas em qualquer outro lugar”. Penso que o fazendeiro toma o lugar do índio porque salva o pântano, e assim se faz mais forte e, em alguns aspectos, mais natural. Eu estava outro dia fazendo para um homem o levantamento topográfico de uma linha reta de uns setecentos metros de comprimento, pântano adentro, em cuja entrada deveriam estar escritas as palavras que Dante leu acima da porta do inferno — “Deixai toda esperança, vós que entrais” —, isto é, a esperança de conseguir sair; foi ali que vi meu empregador afundado literalmente até o pescoço em sua propriedade e nadando para salvar a vida, embora ainda estivéssemos no inverno. Ele possuía outro pântano semelhante que não pude nem começar a examinar, porque estava completamente embaixo d’água, e não obstante, com respeito a um terceiro pântano, que examinei de longe, ele comentou comigo, com espírito franco, que não se desfaria dele por motivo algum, devido à lama que continha. E esse homem pretende cavar um fosso em torno do conjunto de pântanos num prazo de quarenta meses, e assim salvá-los pela mágica de sua pá. Falo dele como exemplo de uma classe de homens.
As armas com que conquistamos nossas mais importantes vitórias, que deveriam passar de pai para filho como herança preciosa, não são a espada e a lança, mas o facão de cortar mato, a foice, a pá e a enxada, enferrujados pelo sangue de tantos pântanos e encardidos pela poeira de tantos campos de trato difícil. Os próprios ventos sopravam o milharal do índio pântano adentro, e apontavam o caminho que ele não tinha capacidade para seguir. Ele não dispunha de um implemento melhor do que a concha de marisco para se enfrentar com a terra. Mas o fazendeiro está armado com o arado e a pá.
Na literatura, só nos atrai o que é selvagem. Enfado é só um outro nome para o que é domesticado. O que nos deleita é o pensamento incivilizado, livre e indomado em Hamlet e na Ilíada, em todas as escrituras e mitologias, e não o que é aprendido nas escolas. Assim como o pato selvagem é mais belo e vivaz que o doméstico, o mesmo ocorre com o pensamento selvagem, que com suas asas abre caminho através do orvalho e sobrevoa os brejos. Um livro verdadeiramente bom é algo tão natural, e tão inesperadamente belo e perfeito, como uma flor silvestre descoberta nas campinas do Oeste ou nas selvas do Oriente. O gênio é uma luz que torna visível a escuridão, como o clarão do relâmpago, que abala talvez o próprio templo do conhecimento — e não um círio aceso junto à lareira da raça humana, que empalidece diante da luz de um dia comum.
A literatura inglesa, desde os tempos dos trovadores até os Lake Poetsl — Chaucer, Spenser, Milton e até mesmo Shakespeare incluídos — não exala uma disposição muito vigorosa e, nesse sentido, selvagem. É uma literatura essencialmente mansa e civilizada, refletindo a Grécia e Roma. Sua natureza bravia é uma floresta frondosa, seu homem selvagem é um Robin Hood.
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