Existe abundante amor cordial à Natureza, mas muito pouco da própria Natureza. Sua história natural nos informa quando se extinguiram nela os animais selvagens, mas não o homem selvagem.
A ciência de Humboldt é uma coisa, a poesia é outra. O poeta de hoje, não obstante todas as descobertas da ciência e o saber acumulado da humanidade, não leva vantagem alguma sobre Homero.
Onde está a literatura que dá expressão à Natureza? Seria um poeta aquele que conseguisse imprimir em seu trabalho os ventos e os rios, fazer com que falassem por ele; aquele que cravasse as palavras em seus sentidos primitivos, como os fazendeiros fincam de novo na primavera as estacas que se soltaram no inverno por causa da geada; aquele que buscasse a origem das palavras com a mesma frequência com que as usa — transplantando-as para suas páginas ainda com terra grudada em suas raízes; aquele cujas palavras fossem tão verdadeiras, vigorosas e naturais que parecessem expandir-se como flores desabrochadas com a chegada da primavera, ainda que jazessem meio abafadas entre duas folhas mofadas numa biblioteca — para florir e frutificar ali anualmente, como é o feitio de sua espécie, para um leitor de fé, em sintonia com a Natureza circundante.
Não sou capaz de citar nenhuma poesia que expresse adequadamente esse anseio pelo Selvagem. Abordada por este ângulo, mesmo a melhor poesia é domesticada. Não sei onde encontrar em qualquer literatura, antiga ou moderna, uma descrição que me satisfaça daquela Natureza com a qual até eu estou familiarizado. Percebe-se que anseio por algo que nenhuma era elisabetana ou de Augusto, que nenhuma cultura, em suma, pode dar. A mitologia chega mais perto do que qualquer outra coisa. É tão mais fértil a Natureza em que a mitologia grega está enraizada do que a da literatura inglesa! A mitologia é a safra que o Velho Mundo produziu antes que seu solo se exaurisse, antes que a fantasia e a imaginação fossem afetadas pela ferrugem; e segue produzindo, onde quer que seu vigor primitivo continue intacto. Todas as outras literaturas não perduram mais do que os olmos que sombreiam nossas casas; já a mitologia é como o grande dragoeiro das ilhas ocidentais, tão antigo quanto a humanidade e que vai durar tanto ou mais que esta; pois a decomposição das outras literaturas fertiliza o solo onde ela floresce.
O Ocidente está se preparando para somar suas fábulas àquelas que vêm do Oriente. Tendo já os vales do Ganges, do Nilo e do Reno produzido suas safras, resta ver o que os vales do Amazonas, do Prata, do Orinoco, do St. Lawrence e do Missouri ainda vão produzir. Quando, no decurso das eras, a liberdade americana tiver se tornado uma ficção do passado — assim como é, em certa medida, uma ficção do presente —, os poetas do mundo se inspirarão, quem sabe, na mitologia americana.
Mesmo os sonhos mais selvagens de homens selvagens não deixam de ser verdadeiros, embora possam não ser atraentes ao senso mais comum que prevalece entre os ingleses e americanos de hoje em dia. Nem toda verdade é bem vista pelo senso comum. Na Natureza há lugar tanto para a clematite brava como para o repolho. Algumas expressões da verdade são evocativas — outras, meramente sensitivas, por assim dizer — e outras são proféticas. Mesmo algumas formas de doença podem profetizar formas de saúde. Os geólogos descobriram que as figuras de serpentes, grifos, dragões voadores e outros ornamentos fantasiosos da heráldica têm seus protótipos nas formas de fósseis de espécies extintas antes da criação do homem, e portanto “indicam um vago e nebuloso conhecimento de um estado prévio da existência orgânica”. Os hindus fantasiavam que a terra repousava sobre um elefante, e o elefante sobre uma tartaruga, e a tartaruga sobre uma serpente; e, ainda que possa ser uma coincidência desimportante, não será descabido afirmar aqui que foi recentemente descoberto na Ásia um fóssil de tartaruga grande o bastante para sustentar um elefante. Devo confessar que tenho afeição por essas indômitas especulações, que transcendem a ordem do tempo e da evolução. São a mais sublime ocupação do intelecto. A perdiz gosta de ervilhas, mas não daquelas que vão junto com ela para dentro da panela.
Em suma, todas as coisas boas são indomadas e livres. Há algo numa frase musical, seja ela produzida por um instrumento ou pela voz humana — por exemplo, o som de um clarim numa noite de verão —, que, por sua natureza selvagem, para falar sem intenção de sátira, lembra-me os sons emitidos pelas feras soltas em suas florestas nativas. É só isso que sou capaz de entender de sua selvageria. Quero ter como amigos e vizinhos homens selvagens, não domesticados. O caráter indomado do selvagem não é senão um vago símbolo da tremenda ferocidade com que se relacionam os bons homens e os amantes.
Gosto até mesmo de ver os animais domésticos reafirmarem seus direitos naturais — de qualquer evidência de que não perderam completamente seu vigor e seus hábitos selvagens originais; como quando a vaca do meu vizinho foge do pasto no início da primavera e nada ousadamente no rio, uma corrente fria e cinzenta, de uns 120 metros de largura, avolumada pela neve derretida. Lembra o bisão atravessando o Mississippi. Esse feito confere alguma dignidade ao rebanho ante meus olhos — já dignificados. Como sementes nas entranhas da terra, as sementes do instinto ficam preservadas sob o couro grosso de bois e cavalos por um período indefinido.
Qualquer tendência ao divertimento entre os bovinos é inesperada. Vi um dia um rebanho de uma dúzia de novilhos correndo e cabriolando de um lado para outro numa brincadeira desajeitada, como enormes ratos, ou mesmo como gatinhos gigantes. Abanavam a cabeça, levantavam o rabo, subiam e desciam correndo um morro, e percebi por seus chifres, bem como por seus movimentos, o seu parentesco com a tribo dos cervos.
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