É só isso que sou capaz de entender de sua selvageria. Quero ter como amigos e vizinhos homens selvagens, não domesticados. O caráter indomado do selvagem não é senão um vago símbolo da tremenda ferocidade com que se relacionam os bons homens e os amantes.
Gosto até mesmo de ver os animais domésticos reafirmarem seus direitos naturais — de qualquer evidência de que não perderam completamente seu vigor e seus hábitos selvagens originais; como quando a vaca do meu vizinho foge do pasto no início da primavera e nada ousadamente no rio, uma corrente fria e cinzenta, de uns 120 metros de largura, avolumada pela neve derretida. Lembra o bisão atravessando o Mississippi. Esse feito confere alguma dignidade ao rebanho ante meus olhos — já dignificados. Como sementes nas entranhas da terra, as sementes do instinto ficam preservadas sob o couro grosso de bois e cavalos por um período indefinido.
Qualquer tendência ao divertimento entre os bovinos é inesperada. Vi um dia um rebanho de uma dúzia de novilhos correndo e cabriolando de um lado para outro numa brincadeira desajeitada, como enormes ratos, ou mesmo como gatinhos gigantes. Abanavam a cabeça, levantavam o rabo, subiam e desciam correndo um morro, e percebi por seus chifres, bem como por seus movimentos, o seu parentesco com a tribo dos cervos. Mas, infelizmente, um súbito grito de “Ôôa!” teria abatido de imediato seu ardor, rebaixando-os de cervídeos a gado de corte e retesando suas ancas e seus nervos, como uma locomotiva que freia. Quem senão o Maligno gritou “Ôôa!” para a humanidade? De fato, a vida de gado, como a de tantos homens, não é senão uma espécie de atividade mecânica; eles movem um quadril de cada vez, e o homem, mediante seu mecanismo, encontra-se no meio do caminho com o cavalo e o boi. Toda parte que foi tocada pelo relho tornou-se paralítica desde então. Quem sequer pensaria em associar as ancas de qualquer representante da flexível tribo dos felinos com o que chamamos de lombo de boi?
Alegra-me que cavalos e novilhos tenham que ser domados antes de se tornarem escravos do homem, e que o próprio homem tenha ainda alguns impulsos selvagens a ser amansados antes de se tornar um membro submisso da sociedade. Não há dúvida de que os homens não estão todos igualmente aptos para submeter-se à civilização; e o fato de a maioria, como cães e carneiros, estar domesticada por uma disposição herdada não é razão para que os outros devam ter sua natureza subjugada de modo a ser rebaixados ao mesmo nível. Os homens, no que há de mais importante, são semelhantes, mas foram feitos de modo diferente para que possam ser diversificados. Para uma tarefa modesta, um homem serve tanto quanto qualquer outro; para uma tarefa elevada, deve-se levar em conta a excelência individual. Qualquer homem pode tapar um buraco para se proteger do vento, mas nenhum outro poderia cumprir uma tarefa tão singular quanto a do autor desse exemplo. Confúcio diz: “O couro do tigre e do leopardo, quando curtido, é como o couro curtido do cão e da ovelha”. Mas não faz parte de uma verdadeira cultura domesticar tigres, nem tampouco tornar ovelhas ferozes; e curtir seu couro para fazer sapatos não é o melhor uso que se pode fazer deles.
Quando passo os olhos por uma lista de nomes de homens numa língua estrangeira, por exemplo de oficiais militares, ou de autores que escreveram sobre determinado assunto, sou lembrado mais uma vez de que nada há num nome. O nome Minschikoff, por exemplo, não é nem um pouco mais humano aos meus ouvidos do que um bigode, e este pode pertencer a um rato. Assim como os nomes de poloneses e russos são para nós, os nossos são para eles. É como se seus nomes saíssem de um balbucio de bebê. Vejo na imaginação uma manada de criaturas selvagens fervilhando sobre a terra toda, e a cada uma delas o pastor pespegou um som bárbaro em seu próprio dialeto. Os nomes dos homens são, evidentemente, tão reles e sem sentido como Totó ou Lulu, nomes de cachorros.
Penso que seria de alguma vantagem para a filosofia se os homens recebessem seus nomes apenas no atacado, como são conhecidos. Seria necessário conhecer apenas o gênero, e talvez a raça ou variedade, para conhecer o indivíduo. Não estamos dispostos a acreditar que cada soldado particular num exército romano tinha um nome só seu — porque não supúnhamos que ele tivesse uma personalidade só sua. No presente, nossos únicos nomes verdadeiros são os apelidos. Conheço um garoto que, por sua energia singular, era chamado de “Demolidor” pelos companheiros de brincadeiras, e esse apelido suplantou seu nome de batismo. Alguns viajantes nos contam que um índio não recebia um nome ao nascer, mas tinha que conquistar um que correspondesse a suas ações, pelo qual passava a ser conhecido. Em algumas tribos o índio adquiria um novo nome a cada nova proeza. É triste que um homem carregue um nome meramente de conveniência, não tendo conquistado nem o nome nem a reputação que lhe corresponde.
Não vou permitir que meros nomes façam diferença para mim, mas continuarei a ver os homens como membros de um rebanho.
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