Ele não se atrasa; levanta cedo e se mantém acordado, e estar onde ele está é estar na linha de frente do tempo. Seu canto é uma expressão da saúde e da integridade da Natureza, uma bravata lançada ao mundo todo — saúde como uma nascente brotando, uma nova fonte das Musas, a celebrar este último instante do tempo. Onde ele vive não é aprovada nenhuma lei do escravo fugitivo. Quem não traiu seu mestre três vezes desde a última ocasião em que ouviu esse canto?

O mérito da melodia dessa ave é estar livre de qualquer melancolia. Um pássaro canoro pode facilmente nos provocar lágrimas ou riso, mas onde está aquele que é capaz de nos infundir uma pura alegria matinal? Quando, em lúgubre tristeza, rompendo com meus passos o horrível silêncio de nossas calçadas de madeira num domingo, ou talvez participando de um velório, ouço um galo jovem cantar longe ou perto, penso comigo: “Existe um de nós que está bem, em todo caso” — e com um súbito solavanco recupero a sensatez.

 

 

Tivemos um notável crepúsculo num dia de novembro passado. Eu caminhava por uma campina, junto à nascente de um pequeno regato, quando finalmente o sol, pouco antes de se pôr, depois de um dia cinzento e frio, alcançou uma faixa clara no horizonte, e a luz solar da mais suave e brilhante manhã caiu sobre a relva seca e sobre os troncos das árvores no horizonte oposto, e sobre as folhas dos carvalhos nas encostas, enquanto nossas sombras se estendiam sobre a campina em direção ao leste, como se fôssemos os únicos ciscos em seus raios luminosos. Era uma luz que não poderíamos sequer ter imaginado um instante antes, e o ar também estava tão tépido e sereno que não faltava nada para fazer daquele prado um paraíso. Quando concluímos que aquele não era um fenômeno solitário, destinado a jamais se repetir, mas que aconteceria para todo o sempre num número infinito de entardeceres, alegrando e renovando a confiança da última criança que caminhasse por ali, ficou tudo ainda mais glorioso.

O sol se põe em alguma campina afastada, onde nenhuma casa é visível, com toda a glória e esplendor que ele desperdiça nas cidades e, talvez, como nunca se pôs antes — ali onde não há senão um solitário falcão do pântano que tem suas asas douradas por ele, ou apenas um rato almiscarado que mete a cabeça para fora da toca, e onde um pequeno regato de estrias pretas começa a serpentear no meio do charco, dando lentamente a volta num tronco caído. Caminhamos sob uma luz tão pura e brilhante, a dourar a grama seca e as folhas, uma luz tão suave e serena, que julguei nunca ter me banhado antes em tal maré dourada, sem ondas e sem murmúrio. O lado oeste de cada bosque e elevação de terreno cintilava como as bordas dos Campos Elíseos, e o sol nas nossas costas era como um brando pastor a nos conduzir à noite de volta para casa.

Assim peregrinamos rumo à Terra Santa, até que um dia o sol brilhe com mais intensidade do que nunca, até que ele brilhe talvez dentro de nossas mentes e corações, iluminando nossas vidas inteiras com uma grande luz que desperta os sentidos, tão tépida, serena e dourada como a que banha uma margem de rio no outono.

 

 

 

 

a- Trecho (estrofes 445 e 446) de Gest of Robyn Hode (Gesta de Robin Hood), balada inglesa anônima.

b- Há no original um jogo de palavras intraduzível. Thoreau joga com dois sentidos do verbo to stand, usando-o, primeiro, como “aguentar” e, depois, como “ficar em pé”. As mulheres citadas “aguentam”, mas não necessariamente “em pé”.

c- Marco Terêncio Varrão (116 a.C.-27 d.C.) foi um escritor e erudito romano.

d- Letes ou Lete: um dos cinco rios do inferno, segundo a mitologia grega. As almas dos mortos que bebessem de suas águas não se lembrariam mais de seu passado na Terra. Mais adiante, o autor refere-se ao Estige, outro rio infernal da mitologia grega.

e- Trecho do prólogo dos Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400). Dizem os versos originais, em inglês arcaico: “Than longen folk to goon on pilgrimages,/ And palmeres for to seken strange strondes”.

f- Jardins onde viviam as ninfas Hespérides, localizados às margens do rio Oceano. Na mitologia grega, as Hespérides encarnam o crepúsculo, a transição entre o dia e a noite.

g- Trecho do poema Lycidas (1638), do poeta inglês John Milton (1608-74). Eis os versos originais: “And now the Sun had stretched out all the hills,/ And now was dropped into the western bay;/ At last he rose, and twitched his mantle blue;/ To-morrow to fresh woods and pastures new”.

h- Refere-se a François André Michaux (1770-1855), filho de André Michaux (1746-1802), ambos biólogos e exploradores franceses, que viajaram juntos e separados pela América do Norte e escreveram livros sobre sua flora. O Michaux citado no parágrafo anterior é o pai.

i- Célebre frase de John Quincy Adams (1767-1848), presidente dos Estados Unidos entre 1825 e 1829.

j- Panorama, aqui, tem o sentido, registrado pelo Houaiss, de “amplo quadro circular que permite ao espectador, colocado num ponto central, observar, como se estivesse do alto, objetos representados”. Eram comuns os espetáculos dessa espécie de pré-cinema na época em que Thoreau escreve.

k- Ben Jonson (1572-1637): poeta, dramaturgo e ator inglês, contemporâneo de Shakespeare. O verso citado faz parte da mascarada Love Freed from Ignorance and Folly, de 1611.

l- Lake Poets: grupo de poetas ligados ao romantismo que viviam no Lake District, na Inglaterra, na virada do século xviii para o xix. Entre eles destacavam-se William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Robert Southey e, posteriormente, Thomas De Quincey.

m- Referência a um ditado antigo que dizia, com relação às horas necessárias de sono: “Seis para um homem, sete para uma mulher e oito para um bobo”.

n- Jogo de palavras com o nome Concord, que significa “concórdia, harmonia”.

Vida sem princípios

[1863]

 

 

 

 

 

 

 

 

Num liceu, há não muito tempo, senti que o conferencista escolhera um tema que lhe era demasiado alheio, e desse modo me fez perder completamente o interesse pelo que dizia. Descrevia coisas que não estavam dentro dele, nem eram próximas a seu coração, mas com as quais só tinha uma relação superficial. Não havia, nesse sentido, um pensamento verdadeiramente central em sua conferência. Eu teria preferido que ele lidasse com suas experiências mais pessoais, como faz o poeta. A melhor homenagem que já me fizeram foi quando alguém me perguntou o que eu pensava, e deu atenção à minha resposta. Fico ao mesmo tempo surpreso e contente quando isso acontece, pois é um uso raro que a pessoa faz de mim, como se estivesse familiarizada com o instrumento. Em geral, quando as pessoas querem alguma coisa de mim, é só para saber quantos acres examinei de suas terras, já que sou agrimensor, ou, no máximo, quais são as notícias que me pesam sobre os ombros. Nunca se empenharam em conhecer a minha carne; contentam-se com a casca. Um homem uma vez percorreu uma distância considerável para vir me convidar a fazer uma palestra sobre a escravidão; mas, na nossa conversa, percebi que ele e sua turma pretendiam que sete oitavos da palestra fossem deles, deixando só um oitavo para mim; portanto, declinei.