Penso que a sociedade nada fez por nós a esse respeito, ou no mínimo desfez o que havia feito. O frio e a fome parecem mais convenientes à minha natureza do que os métodos que os homens adotaram e preconizaram para se defender deles.

O título de sábio é, no mais das vezes, usado indevidamente. Como pode ser sábio um homem que não sabe melhor do que os outros como viver? Um homem que só é mais esperto e intelectualmente mais sutil do que os outros? Existe por acaso Sabedoria num trabalho bruto de tração? Ou ela ensina a ter êxito a partir do seu exemplo? Existe uma coisa chamada sabedoria que não seja aplicada à vida? Ela se resume ao moleiro que tritura a lógica mais sutil? É o caso de perguntar se Platão ganhou a vida de um modo melhor ou mais bem-sucedido do que seus contemporâneos — ou sucumbiu às dificuldades da vida como outros homens. Parece, por acaso, que ele levou a melhor sobre a maioria dos outros simplesmente por indiferença, ou por assumir ares superiores? Ou será que teve a vida mais fácil porque sua tia o contemplou em seu testamento? Os meios pelos quais a maioria dos homens ganha a vida — isto é, vive — são meros expedientes, e um modo de esquivar-se da questão real da existência, principalmente porque eles não conhecem — mas também, em parte, porque não querem — nada melhor.

A corrida para a Califórnia, por exemplo, e a atitude não apenas de comerciantes, mas também de filósofos e profetas em relação a ela refletem a maior desgraça da humanidade. Pensar que tantos estão dispostos a se fiar na sorte, e assim obter os meios de comandar o trabalho de outros menos afortunados, sem contribuir em nada para o bem da sociedade! E chamam a isso de empreendimento! Não conheço exemplo mais espantoso de desenvolvimento da imoralidade dos negócios e de todos os modos vulgares de ganhar a vida. A filosofia, a poesia e a religião de uma humanidade assim não valem a poeira de um cogumelo orelha-de-pau. O porco, que ganha a vida cavoucando a lama, teria vergonha de tal companhia. Se pudesse dispor de toda riqueza do mundo com o levantar de um dedo, eu não pagaria todo esse preço por ela. Até mesmo Maomé sabia que Deus não fez este mundo por brincadeira. Só se Deus fosse um cavalheiro endinheirado que espalha um punhado de moedas para ver a humanidade se engalfinhar por elas. O mundo partilhado numa rifa! Como se a subsistência nos domínios da natureza fosse algo a ser ganho numa rifa! Que comentário crítico, que sátira a nossas instituições! O desfecho disso será a humanidade se enforcando numa árvore. Será que todos os preceitos de todas as Bíblias só ensinaram isso aos homens? A última e mais admirável invenção da raça humana não passa de um aperfeiçoado rastelo de revirar estrume?b É esse o terreno em que orientais e ocidentais se encontram? Será que Deus nos conduziu a isto, a obter nosso sustento escavando a terra onde nunca plantamos — e nos recompensaria, por acaso, com jazidas de ouro?

Deus deu ao homem honrado um certificado garantindo-lhe o direito ao alimento e às roupas, mas o homem iníquo encontrou um fac-símile do mesmo documento no cofre de Deus e apropriou-se dele, obtendo alimento e roupas como o homem honrado. É um dos mais amplos sistemas de falsificação que o mundo já conheceu. Eu não sabia que a humanidade estava sofrendo de falta de ouro. Vi pouco ouro até hoje. Sei que ele é muito maleável, mas não tão maleável quanto a inteligência. Um grão de ouro pode dourar uma superfície extensa, mas não tão extensa quanto a que um grão de sabedoria pode dourar.

O minerador de ouro nas encostas das montanhas é um jogador como os que frequentam os saloons de São Francisco. Que diferença faz se você sacode terra ou chacoalha dados? Se você vence, quem perde é a sociedade. O garimpeiro é o inimigo do trabalhador honesto, quaisquer que sejam os controles e compensações porventura existentes. Não basta me dizer que você trabalhou duro para obter seu ouro. Também o Diabo trabalha duro. O caminho dos transgressores pode ser árduo em vários aspectos. O mais humilde observador que vai às minas percebe e relata que a mineração é da categoria das loterias; o ouro assim obtido não é a mesma coisa que o salário da labuta honesta. Mas, na prática, esse observador esquece o que viu, pois viu apenas o fato, não o princípio, e se estabelece no comércio lá, isto é, compra um ingresso para o que geralmente acaba se revelando outra loteria, de aparência menos óbvia.

Depois de ler o relato de Howittc a respeito da mineração de ouro na Austrália, passei a noite toda com a mente povoada pelas imagens dos numerosos vales, com seus rios e córregos, todos retalhados por fossos fétidos, com entre três e trinta metros de profundidade e dois metros de largura, tão próximos uns dos outros quanto possível, e parcialmente cheios de água — o cenário para onde os homens acorrem furiosamente para tentar a sorte, indecisos quanto ao local onde devem começar a exploração, sabendo apenas que o ouro está embaixo de seu acampamento; às vezes cavando um buraco de quase cinquenta metros de profundidade antes de topar com o veio, ou passando ao largo dele por uma questão de trinta centímetros, convertidos eles próprios em demônios em sua sede de riquezas, sem levar em conta os direitos dos outros. Vales inteiros, num raio de cinquenta quilômetros, perfurados pelos poços dos mineradores, que morrem às centenas afogados neles; com as pernas dentro d’água, cobertos de lama, eles trabalham dia e noite, morrendo de doença e exposição às intempéries. Tendo lido isso, e em parte esquecido, fiquei pensando, casualmente, na minha própria vida insatisfatória, em que faço como os outros; e com aquela visão da mineração ainda diante dos meus olhos, perguntei-me por que não deveria, eu mesmo, estar garimpando algum ouro diariamente, ainda que fossem apenas as partículas mais finas — por que não mergulhar uma sonda em busca do outro dentro de mim, e explorar essa mina. Existe para você uma Ballarat, uma Bendigo,d e que importa que só tenha sobrado uma vala estreita? Seja como for, eu poderia seguir algum caminho, por mais solitário, estreito e tortuoso que fosse, no qual pudesse caminhar com amor e respeito. Onde quer que um homem se separe da multidão e siga seu próprio caminho com esse espírito, há de fato uma bifurcação na estrada, ainda que os viajantes comuns possam ver apenas uma falha na cerca. A trilha solitária terrenos adentro provar-se-á o caminho mais elevado dos dois possíveis.

Os homens acorrem à Califórnia e à Austrália como se o ouro verdadeiro se encontrasse nesses lugares; mas isso significa ir na direção exatamente contrária de onde ele está. Seguem prospectando cada vez mais longe do rumo verdadeiro, e quando se julgam mais bem-sucedidos é quando são mais infelizes.