Não foi com esse sentido que o poeta Decker chamou Cristo de “o primeiro cavalheiro de verdade que existiu”. Repito que nesse sentido a mais esplêndida corte da Cristandade é provinciana, tendo autoridade para tratar apenas dos interesses transalpinos, mas não dos assuntos de Roma.
Um pretor ou procônsul seria suficiente para resolver as questões que absorvem a atenção do Parlamento inglês e do Congresso americano.
Governo e legislativo! Pensei que fossem profissões respeitáveis. Na história do mundo ouvimos falar de divinos Numas Pompílios, Licurgos e Solons, cujos nomes ao menos podem significar legisladores ideais; mas o que dizer de uma legislação que regula a procriação de escravos ou a exportação de tabaco? O que têm legisladores divinos a ver com a exportação e importação de tabaco? O que legisladores humanos têm a ver com a procriação de escravos? Suponhamos que a questão fosse submetida a qualquer filho de Deus (e Ele não tem filhos no século xviii? Trata-se de uma família extinta?): em que condições ela retornaria a nós? O que teria a dizer em sua defesa no juízo final um estado como a Virgínia, que tem nessas duas coisas — escravos e tabaco — sua principal produção? Que base existe para o patriotismo num estado como esse? Extraio meus dados de quadros estatísticos publicados pelos próprios estados.
Um comércio que branqueia todos os mares em busca de nozes e passas, e com esse propósito converte seus marinheiros em escravos! Vi outro dia um navio que tinha naufragado, com a perda de muitas vidas, e sua carga de trapos, bagas de zimbro e amêndoas amargas espalhadas pela praia. Pareceu-me nada compensador enfrentar os perigos do mar entre Livorno e Nova York por causa de uma carga de bagas de zimbro e amêndoas amargas. A América mandando buscar seus alimentos amargos no Velho Mundo! A água do mar, o naufrágio, já não são amargos o bastante para azedar nosso cálice da vida? No entanto é esse, em grande medida, nosso alardeado comércio; e há aqueles que se intitulam estadistas e filósofos que são tão cegos a ponto de pensar que o progresso e a civilização dependem precisamente desse tipo de intercâmbio e atividade — a atividade de moscas girando ao redor de um barril de melado. Muito bem, pode dizer alguém, desde que os homens fossem ostras. E muito bem, respondo eu, desde que os homens fossem mosquitos.
O tenente Herndon, que o nosso governo enviou para explorar a Amazônia e, segundo dizem, ampliar a área da escravidão, observou que lá havia falta “de uma população industriosa e ativa, que conheça os confortos da vida e tenha necessidades artificiais que a incitem a extrair os grandes recursos do país”. Mas quais seriam as “necessidades artificiais” a ser estimuladas? Não o gosto pelos supérfluos, como o tabaco e os escravos de sua Virgínia natal, nem o gelo, o granito e outras riquezas materiais da nossa Nova Inglaterra; “os grandes recursos de um país” tampouco seriam a fertilidade ou aridez do solo que produz tais riquezas. A principal carência, em todos os estados em que estive, era um elevado e sincero propósito por parte de seus habitantes. Esse fato, por si só, exaure “os grandes recursos” da Natureza e acaba por exigi-la além de suas possibilidades; pois o homem naturalmente morre ao explorá-la demais. Quando queremos mais cultura do que batatas, e mais esclarecimento do que guloseimas, então os verdadeiros grandes recursos de um mundo são explorados e extraídos, e o resultado, ou produção essencial, não são escravos, nem operários, mas homens — aqueles frutos raros chamados heróis, santos, poetas, filósofos e redentores.
Em suma, assim como um monte de neve se forma quando há uma calmaria no vento, podemos dizer que, onde há uma calmaria da verdade, floresce uma instituição. Mas a verdade sopra diretamente sobre ela e acaba por derrubá-la.
O que se costuma chamar de política é, comparativamente, algo tão superficial e inumano que nunca reconheci inteiramente que ela tenha algo a ver comigo. Os jornais, pelo que percebo, dedicam algumas de suas colunas especialmente à política ou ao governo, sem cobrar por isso; e essa circunstância, alguém pode argumentar, é o que salva a atitude; mas, como amo a literatura, e também a verdade, de qualquer forma nunca leio essas colunas. Não quero embotar desse modo meu senso do que é direito. Não posso ser acusado de ter lido sequer uma mensagem do presidente. Estranha era do mundo esta nossa, em que impérios, reinos e repúblicas vêm bater na porta do homem particular e despejar sobre ele suas queixas! Não há um jornal que eu abra sem que encontre nele um ou outro governo ignóbil, sob forte pressão e à beira do colapso, apelando a mim, o leitor, para que o apoie. É mais importuno que um mendigo italiano. E se eu me der ao trabalho de examinar as credenciais de tal governo, escritas talvez por algum benevolente escrivão comercial, ou pelo capitão do navio que as trouxe, pois o governo em questão não é capaz de falar uma palavra de inglês, provavelmente lerei que a erupção de algum Vesúvio, ou o transbordamento de algum Pó, verdadeiros ou forjados, são a causa da atual situação. Num caso assim, não hesito em sugerir um trabalho, ou o asilo de pobres; ou então que o palácio do tal governo fique em silêncio, como faço na minha casa. O pobre presidente, pensando em preservar sua popularidade e cumprir suas obrigações, fica completamente desconcertado. Os jornais são a força dirigente. Qualquer outro governo fica reduzido a um punhado de fuzileiros no Fort Independence.k Se um homem deixa de ler o Daily Times, o governo se ajoelha a seus pés, pois essa é a única traição hoje em dia.
Essas coisas que hoje mais ocupam a atenção dos homens, a política e a rotina diária, são, admito, funções vitais da sociedade humana, mas deveriam ser desempenhadas de modo inconsciente, como as funções análogas do corpo físico. São infra-humanas, uma espécie de atividade vegetativa. Vez por outra me dou conta de uma semiconsciência dessas funções transcorrendo ao meu redor, como um homem pode se tornar consciente dos processos de digestão num estado doentio, e ter assim uma dispepsia, como é chamada. É como se um pensador se submetesse a ser limado pela grande moela da criação. A política é, por assim dizer, a moela da sociedade, cheia de grânulos e gravelas, e os dois partidos políticos são suas duas metades opostas — às vezes subdivididas em quartas partes — que se trituram mutuamente. Não apenas os indivíduos, mas também os estados têm assim uma dispepsia crônica, que se expressa por um tipo de eloquência que vocês podem imaginar. Assim, nossa vida não é um total esquecimento, mas também, infelizmente, uma lembrança daquilo de que nunca deveríamos ter consciência, ao menos em nossas horas de vigília. Por que, em vez de nos encontrarmos como dispépticos que ficam narrando uns aos outros seus pesadelos, não poderíamos às vezes nos encontrar como eupépticos e celebrar juntos a sempre gloriosa manhã? Por certo não estou fazendo uma exigência descabida.
a- Referência jocosa ao excêntrico empreendedor norte-americano “Lord” Timothy Dexter (1748-1806), que fez fortuna realizando negócios pouco ortodoxos, sobretudo durante a Guerra de Independência.
b- No original, a expressão muck-rake, literalmente “rastelo para revirar estrume ou lixo”, tem também o sentido figurado de “exposição de escândalos, sensacionalismo”.
c- Alfred William Howitt (1830-1908): antropólogo e naturalista australiano.
d- Ballarat e Bendigo são cidades do estado australiano de Victoria que foram grandes polos de mineração de ouro.
e- Há no original um jogo de palavras intraduzível com o termo lump, que como verbo pode ter o sentido de “considerar globalmente” e como substantivo significa “monte, massa informe, inchaço, protuberância”.
f- Dr. Kane: o explorador e médico da marinha norte-americana Elisha Kent Kane (1820-57).
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