A Divina Comédia [com notas e índice ativo]

Dante Alighieri

 

 

 

 

A DIVINA COMÉDIA

 

 

 

 

Título Original: La Divina Commedia (1304-1321)

Tradução: José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1874)

© 2012, Centaur Editions

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ÍNDICE

 

 

INFERNO

PURGATÓRIO

PARAÍSO

 

INFERNO

 

[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII] [XXIX] [XXX] [XXXI] [XXXII] [XXXIII] [XXXIV]

 

[I]

Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.

 

DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
3 Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
6 Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
9 De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
12 Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
15 Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
18 Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
21 Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
24 Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
27 Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
30 Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
33 Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
36 Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
39 Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
42 Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
45 Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
48 Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
51 Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
54 Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
57 Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
60 Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
63 Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
66 “Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
69 Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
72 Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquises, que de Troia veio,
75 Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
78 Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloquência?”
81 Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
84 Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
87 O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
90 Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
93 Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremente,
Aqui passar não deixa impunemente;
96 Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
99 E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
102 Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
105 Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
108 Turno Euríalo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
111 Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
114 Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
117 Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
120 De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
123 Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
126 Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
129 Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
132 Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

136 Move-se o Vate então, após o sigo.

 

1. Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. — 2. Tenebrosa etc., simbólica selva dos vícios humanos. — 32. Pantera, símbolo da luxúria e da fraude; politicamente, de Florença. — 44. Um leão, símbolo da soberba e da violência; politicamente, da França. — 40. Loba, símbolo da avareza e da incontinência; politicamente da Cúria Romana. — 62. Alguém etc., o poeta Virgílio Maro, símbolo da razão humana. — 105. Entre Feltro e Feltro, entre Montefeltro e Feltro. — 122. Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou.

 

 

[II]

Depois da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, duvida de aventurar-se na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o mandava, e que havia quem se interessava pela sua salvação, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no difícil caminho.

 

FORA-se o dia; e o ar, se enevoando,
Aos animais, que vivem sobre a terra,
3 As fadigas tolhia; eu só, velando,

Me aparelhava a sustentar a guerra
Da jornada, assim como da piedade,
6 Que vai pintar memória, que não erra.

Ó Musas! Ó do gênio potestade!
Valei-me! Aqui, ó mente, que guardaste
9 Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.

“Poeta”, — assim falei, — “que começaste
A guiar-me, vê bem se em mim persiste
12 Calor que, à empresa que me fias, baste.

“Que o pai do Sílvio fora, referiste,
Corrutível ainda, até o inferno
15 Sem perder o que em corpo humano existe.

“Se do mal assim quis o imigo eterno,
Origem vendo nele do alto efeito,
18 O que e o qual, segundo o que discerno,

“Pela razão bem pode ser aceito;
Que para Roma e o império se fundarem
21 Fora no céu por genitor eleito;

“À qual e ao qual cabia aparelharem,
Dizendo-se a verdade, o lugar santo
24 Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.

“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto,
Cousas ouviu, de que surgiu motivo
27 Ao seu triunfo e ao pontifício manto.

“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo:
Conforto ia buscar, à fé, que à estrada
30 Da salvação princípio é decisivo.

“Por que irei? Quem permite esta jornada?
Enéias, Paulo sou? Essa ventura
33 Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.

“Receio, pois seja ato de loucura,
Se eu me resigno a cometer a empresa.
36 Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.

Como quem ora quer, ora despreza,
Sua alma a ideias novas tem disposta,
39 Mostrando aos seus desígnios estranheza,

Assim fiz eu na tenebrosa encosta,
Porque, pensando, abandonava o intento,
42 Formado à pressa, que ora me desgosta.

“Do teu dizer se atinjo o entendimento”
— Do magnânimo a sombra me tornava, —
45 “Eivado estás de ignóbil sentimento,

“Que do homem muita vez faz alma ignava,
Das honrosas ações o desviando,
48 Qual sombra, que o corcel ao medo trava.

“Desse temor livrar-te desejando,
Por que vim te direi e quanto ouvido
51 Hei logo ao ver-te mísero lutando.

“No Limbo era suspenso: eis requerido
Por Dama fui tão bela, tão donosa,
54 Que as ordens suas presto lhe hei pedido.

“Brilhavam mais que a estrela radiosa
Os seus olhos; suave assim dizia
57 De anjo com voz, falando-me piedosa:

— “De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia
No mundo gozas fama tão sonora,
60 Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,

“Amigo meu, que a sorte desadora,
Pela deserta falda indo, impedido
63 De medo, atrás os passos volta agora.

“Temo que esteja tanto já perdido,
Que tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,
66 Pelo que lá no céu dele hei sabido.

“Parte, pois, e com teu discurso belo
E quanto o salvar possa do perigo
69 Lhe acode; e me console o teu desvelo.

“Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,
De lugar venho a que voltar desejo:
72 Amor conduz-me e faz-me instar contigo.

“Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo
Repetirei louvor, que hás merecido”. —
75 “Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:

— “Senhora da virtude, a quem tem sido
Dado só que proceda a espécie humana
78 Quanto é no mundo sublunar contido,

“Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,
Que, já cumprida, houvera inda demora:
81 Em me abrir teu querer não mais te afana.

“Diz-me, porém, por que razão, Senhora,
Baixar a este centro hás resolvido
84 Do céu, a que ardes por voltar agora”.

— “Se queres tanto ser esclarecido
Eu te direi” — tornou-me — “frase breve
87 Por que sem medo às trevas hei descido.

“Somente as cousas recear se deve
Que a outrem podem ser causa de dano
90 Não das mais: a temor a causa é leve.

“De Deus favor criou-me soberano
Tal, que a vossa miséria não me empece
93 Nem deste incêndio assalta o fogo insano.

“Nobre Dama há no céu, que compadece
O mal, a que te envio; e tanto implora,
96 Que lá decreto austero se enternece.

— “Volvendo-se a Luzia, assim a exora:
“O teu servo fiel tanto periga,
99 Que ao teu amparo o recomendo agora”. —

“Luzia, sempre do que é mau imiga
Ergue-se e ao lugar foi, em que eu sentada
102 Ao lado estava de Raquel antiga.

“De Deus vero louvor!” — diz-me apressada —
“Por que não socorrer quem te amou tanto,
105 Que só por ti deixou do vulgo a estrada?

“Não lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?
Não vês que junto ao rio é combatido,
108 Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —

“Os danos, tão veloz, não tem fugido
Ninguém, nem procurado o que deseja,
111 Como eu, em tendo vozes tais ouvido;

“O trono meu deixei, por que te veja,
Fiada em teus discursos eloquentes,
114 Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —

“Assim falava e os olhos fulgentes
Com lágrimas a mim ela volvia,
117 Para apressar-me a vir assaz potentes.

“A ti vim, pois, como ela requeria;
Da fera te livrei, que da colina
120 Tão perto já, teus passos impedia.

“Que fazes, pois? Por que, por que domina
Tanta fraqueza o peito espavorido?
123 Por que ao valor tua alma não se inclina,

“Quando és pelas três santas protegido,
Que na corte do céu por ti se esmeram,
126 E gozar tanto bem lhe é prometido?” —

Quais flores, que, fechadas, se abateram
Da noite ao frio, e, quando o sol aquece,
129 Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,

Tal meu valor renova e fortalece.
Tanto ardimento o coração me aviva,
132 Que exclamei, como quem jamais temesse:

“Ó Dama em socorrer-me compassiva!
E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,
135 Cortês ao rogo e com vontade ativa,

“Por teu dizer no peito me acendeste
Desejo tal de vir, que sou tornado
138 Ao propósito, a que antes me trouxeste.

“Vai, pois nosso querer ’stá combinado.
Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”
Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado

142 Pelo caminho entrei alto e silvestre.

 

13. O pai de Sílvio, Enéias. — 28. O Vaso — São Paulo que nos Atos dos Apóstolos é chamado o Vaso de eleição. — 76. Senhora da virtude, Beatriz simboliza a teologia. — 94. Nobre Dama, Maria, mãe de Jesus, símbolo da misericórdia divina. 97. — Luzia, mártir e santa, símbolo da graça iluminante. — Raquel, filha de Labão e mulher do patriarca Jacó, simboliza a vida contemplativa.

 

 

[III]

Chegam os Poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram e no vestibulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fiéis a Deus, nem rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro infernal, Caron, que passa as almas dos danados à outra margem, para o suplício. Treme a terra, lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos.

 

“POR mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
3 Por mim se vai à gente condenada.

“Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal possança,
6 Sabedoria suma e amor supremo.

No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
9 Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”

Estas palavras, em letreiro escuro,
Eu vi, por cima de uma porta escrito.
12 “Seu sentido” — disse eu — “Mestre me é duro”

Tornou Virgílio, no lugar perito:
— “Aqui deixar convém toda suspeita;
15 Todo ignóbil sentir seja proscrito.

“Eis a estância, que eu disse, às dores feita,
Onde hás de ver atormentada gente,
18 Que da razão à perda está sujeita”.

Pela mão me travando diligente,
Com ledo gesto e coração me erguia,
21 E aos mistérios guiou-me incontinênti.

Por esse ar sem estrelas irrompia
Soar de pranto, de ais, de altos gemidos:
24 Também meu pranto, de os ouvir, corria.

Línguas várias, discursos insofridos,
Lamentos, vozes roucas, de ira os brados,
27 Rumor de mãos, de punhos estorcidos,

Nesses ares, pra sempre enevoados,
Retumbavam girando e semilhando
30 Areais por tufão atormentados.

A mente aquele horror me perturbando,
Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?
33 “Quem são esses, que a dor está prostrando?” —

“Deste mísero modo” — tornou — “chora
Quem viveu sem jamais ter merecido
36 Nem louvor, nem censura infamadora.

“De anjos mesquinhos coro é-lhes unido,
Que rebeldes a Deus não se mostraram,
39 Nem fiéis, por si sós havendo sido”.

“Desdouro aos céus, os céus os desterraram;
Nem o profundo inferno os recebera,
42 De os ter consigo os maus se gloriaram”.

— “Que dor tão viva deles se apodera,
Que aos carpidos motivo dá tão forte?” —
45 “Serei breve em dizer-to” — me assevera. —

“Não lhes é dado nunca esperar morte;
É tão vil seu viver nessa desgraça,
48 Que invejam de outros toda e qualquer sorte.

“No mundo o nome seu não deixou traça;
A Clemência, a Justiça os desdenharam.
51 Mais deles não falemos: olha e passa”.

Bandeira então meus olhos divisaram,
Que, a tremular, tão rápida corria,
54 Que avessa a toda pausa a imaginaram.

E após, tão basta multidão seguia,
Que, destruído houvesse tanta gente
57 A morte, acreditado eu não teria.

Alguns já distinguira: eis, de repente,
Olhando, a sombra conheci daquele
60 Que a grã renúncia fez ignobilmente.

Soube logo, o que ao certo me revele,
Que era a seita das almas aviltadas,
63 Que os maus odeiam e que Deus repele.

Nunca tiveram vida as desgraçadas;
Sempre, nuas estando, as torturavam
66 De vespas e tavões as ferroadas.

Os rostos seus as lágrimas regavam,
Misturadas de sangue: aos pés caindo,
69 A imundos vermes o repasto davam.

De um largo rio à margem dirigindo
A vista, de almas divisei cardume.
72 — “Mestre, declara, aos rogos me anuindo,

“Que turba é essa” — eu disse — “e qual costume
Tanto a passar a torna pressurosa,
75 Se bem discirno ao duvidoso lume?” —

Tornou-me: — “Explicação minuciosa
Darei, quando tivermos atingido
78 Do Aqueronte a ribeira temerosa”.

Então, baixos os olhos e corrido
Fui, de importuno a culpa receando,
81 Té o rio, em silêncio recolhido.

Eis vejo a nós em barca se acercando,
De cãs coberto um velho — “Ó condenados,
84 Ai de vós! — alta grita levantando.

“O céu nunca vereis, desesperados:
Por mim à treva eterna, na outra riva,
87 Sereis ao fogo, ao gelo transportados.

“E tu que estás aqui, ó alma viva,
De entre estes que são mortos, já te ausenta!”
90 Como não lhe obedeço à voz esquiva,

“Por outra via irás” — ele acrescenta —
“Ao porto, onde acharás fácil transporte;
93 Lá pássaras sem barca menos lenta”.