—
“Não te agastes, Caronte! Desta sorte
Se quer lá onde” — disse-lhe o meu Guia —
96 “Quem pode ordena. E nada mais te importe”.
Sereno, ouvido, o gesto se fazia
Da lívida lagoa ao nauta idoso,
99 Quem em círculos de fogo olhos volvia.
As desnudadas almas doloroso
O gesto descorou; dentes rangeram
102 Logo em lhe ouvindo o vozear raivoso.
Blasfemaram de Deus e maldisseram
A espécie humana, a pátria, o tempo, a origem
105 Da origem sua, os pais de quem nasceram.
Todas no pranto acerbo, em que se afligem,
Se acolhem juntas ao lugar tremendo,
108 Dos maus destinos, que se não corrigem.
Caronte, os ígneos olhos revolvendo,
Lhes acenava e a todos recebia:
111 Remo em punho, as tardias vai batendo.
Como no outono a rama principia
As flores a perder té ser despida,
114 Dando à terra o que à terra pertencia,
Assim de Adam a prole pervertida,
Da praia um após outro se enviavam,
117 Qual ave dos reclamos atraída.
Sobre as túrbidas águas navegavam;
E pojado não tinham no outro lado,
120 Mais turbas já no oposto se apinhavam.
“Aqui meu filho” — disse o Mestre amado —
“concorrem quantos há colhido a morte,
123 De toda a terra, tendo a Deus irado.
“O rio prontos buscam desta sorte,
De Deus tanto a justiça os punge e excita,
126 Tornando-se o temor anelo forte!
“Alma inocente aqui jamais transita,
E, se Caronte contra ti se assanha,
129 Patente a causa está, que tanto o irrita”.
Assim falava; a lúrida campanha
Tremeu e foi tão forte o movimento,
132 Que do medo o suor ainda me banha.
Da terra lacrimosa rompeu vento,
Que um clarão respirou avermelhado;
Tolhido então de todo o sentimento,
136 Caí, qual homem que é do sono entrado.
37. De anjos etc., que não tomaram posição na luta entre os fiéis e os rebeldes a Deus. — 59-60. Daquele etc., Celestino V que renunciou ao papado, tendo por sucessor Bonifácio VIII, inimigo de Dante e do seu partido. — 136. Caí etc. Dante perdendo os sentidos, atravessa o Aqueronte, sem saber de que modo.
[IV]
Dante é despertado por um trovão e acha-se na orla do primeiro círculo. Entra depois no Limbo, onde estão os que não foram batizados, crianças e adultos. Mais adiante, num recinto luminoso, vê os sábios da antiguidade, que, embora não cristãos, viveram virtuosamente. Os dois poetas descem depois ao segundo círculo.
DESSE profundo sono fui tirado
Por hórrido estampido, estremecendo
3 Como quem é por força despertado.
Ergui-me, e, os olhos quietos já volvendo,
Perscruto por saber onde me achava,
6 E a tudo no lugar sinistro atendo.
A verdade é que então na borda estava
Do vale desse abismo doloroso,
9 Donde brado de infindos ais troava.
Tão escuro, profundo e nebuloso
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,
12 Não distinguia no antro temeroso.
“Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!” —
O Poeta então disse-me enfiando —
15 “Eu descerei primeiro, tu segundo”. —
Tornei-lhe, a palidez sua notando:
“Como hei-de ir, se és de espanto dominado,
18 Quando conforto estou de ti sperando?” —
“Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
21 Piedade, medo não, como hás cuidado.
“Vamos: longa a jornada exige pressa”.
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro
24 Em que o abismo a estreitar-se já começa,
Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
27 Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.
Pesares sem martírio os motivavam
De varões e de infantes, de mulheres
30 Nas multidões, que ali se apinhoavam.
“Conhecer” — meu bom Mestre diz — “não queres
Quais são os que assim vês ora sofrendo?
33 Antes de avante andar convém saberes
“Que não pecaram: boas obras tendo
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,
36 Portal da fé, em que és ditoso crendo.
“Na vida antecedendo o Cristianismo,
Devido culto a Deus nunca prestaram:
39 Também sou dos que penam neste abismo.
“Por tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos: a pena é desesp’rança,
42 Desejos, que para sempre se frustaram”.
Ouvi-lo, em dor o coração me lança,
Pois muitos conheci de alta valia,
45 A quem do Limbo a suspenção alcança.
“Ó Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para ter da certeza o firme esteio
48 À fé, que os erros todos desafia,
“Por seu merecimento ou pelo alheio
Daqui alguém ao céu já tem subido?”
51 Da mente minha ao alvo o Mestre veio,
E falou-me: “Des’pouco aqui trazido,
Descer súbito vi forte guerreiro;
54 De triunfal coroa era cingido.
“Almas levou — do nosso pai primeiro,
Abel, Noé, Moisés, que legislara,
57 Abraam, na fé, na obediência inteiro,
“Davi, que sobre o povo hebreu reinara,
Israel com seu pai e a prole basta,
60 E Raquel, por quem tanto se afanara.
“Para a glória outros muitos mais afasta
Do Limbo; e sabe tu que antes não fora
63 Salvo quem pertencera à humana casta”.
Andávamos, enquanto isto memora,
Sem parar, pela selva penetrando,
66 Selva de almas, que aumenta de hora em hora,
E da entrada não longe ainda estando,
Eis um clarão brilhante divisamos
69 Das trevas o hemisfério alumiando.
Dali distantes ainda nos achamos
Não tanto, que eu não discernisse em parte
72 Que à sede de almas nobres caminhamos.
“Ó tu, que és honra da ciência e da arte,
Quem são” — disse — “os que, aos outros preferidos,
75 Privilégio tamanho assim disparte?”
Falou Virgílio: “— Assim são distinguidos
Do céu, que atende à fama alta e preclara,
78 Com que foram na terra engrandecidos”.
Eis voz escuto sonorosa e clara:
“Honrai todos o altíssimo poeta!
81A sombra sua torna, que ausentara”.
Quatro sombras notei, quando aquieta
O rumor, que a nós vinham: nos semblantes
84 Nem prazer, nem tristeza se interpreta.
E disse o Mestre, após alguns instantes:
“Aquele vê, que, qual monarca ufano,
87 Empunha espada e os três deixa distantes.
É Homero, o poeta soberano;
O satírico Horácio é o outro, e ao lado
90 Ovídio, em lugar último Lucano.
Como lhes cabe o nome assinalado
Que soou nessa voz há pouco ouvida,
93 Me honrando, honrosa ação têm praticado”.
A bela escola assim vi reunida
Do Mestre egrégio do sublime canto,
96 Águia em seu voo além dos mais erguida.
Discursado entre si tendo algum tanto,
A mim volveram gracioso o gesto:
99 Sorriu Virgílio, dessa mostra ao encanto.
Mais foi-me alto conceito manifesto,
Quando acolher-me ao grêmio seu quiseram,
102 Entre eles me cabendo o lugar sexto.
Té o clarão comigo se moveram,
Prática havendo, que omitir é belo,
105 Sublime no lugar, onde a teceram.
Chegamos junto a um fúlgido castelo
Sete vezes de muro alto cercado:
108 Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.
Passei-o a pé enxuto; acompanhado
Entrei por sete portas, caminhando
111 De fresca relva até ameno prado.
Graves, pausados olhos meneando
Stavam sombras de aspecto majestoso,
114 Com voz suave rara vez falando.
A um lado, sobre viso luminoso
Subimo-nos: de lá se divisava
117 Dessas almas o bando numeroso.
No verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias sombras: inda me extasia
120 O prazer com que vê-los exultava.
Eletra vi de heróis na companhia,
Enéias com Heitor e guarnecido
123 Grifanhos olhos César nos volvia.
Pentesiléia vi e o rosto ardido
De Camila, e sentado o rei Latino
126 Junto a Lavinia estava enternecido.
Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado
129 De todos demorava Saladino.
Alçando os olhos, de respeito entrado,
O Mestre vejo dos que mais se acimam
132 Em saber, de filósofos cercado.
Todos com honra e acatamento o estimam.
Aqui Platão e Sócrates estavam,
135 Que na grandeza mais se lhe aproximam.
Demócrito, o atomista, acompanhavam
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.
138 Empédocle e Diógenes falavam,
Dióscoris, o que a natura outrora
Sábio estudara, Orfeu, Túlio eloquente,
141 Sêneca, o douto, que a moral explora,
Lívio, Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu, Galeno e o Avicena;
144 Averróis, nos comentos sapiente.
Resenha não me é dado fazer plena
De todos; longo o assunto está-me urgindo,
147 E a ser omisso muita vez condena.
A companhia então se dividindo,
Comigo o Mestre outra vereda trilha,
Do ar sereno ao ar, que treme, vindo:
151 Chegados somos onde luz não brilha.
95. Mestre egrégio etc., Homero, príncipe da poesia épica. — 121. Eletra, mãe de Dardano, fundador de Troia. — 122. Enéias, príncipe troiano, filho de Anquise e de Vênus. — Heitor, filho de Príamo, rei de Troia. — 124.Pentesiléia, rainha das Amazonas, morta por Aquiles. 125. — Camila, filha de Metabo, rei latino. — O rei Latino, rei dos aborígenes, pai de Lavínia, que foi mulher de Enéias. — 127. Márcia, mulher de Catão Uticense. —Lucrécia, mulher de Colatino que, ao ser violada por Sesto Tarquínio, se matou. — 128. — Cornélia, mãe dos Gracos. — Júlia, filha de César e mulher de Pompeu. — 129. Saladino, sultão do Egito e da Síria, que conquistou Jerusalém. — 131. O mestre etc., Aristóteles. — 140. — Orfeu de Trácia, poeta e músico. — Túlio, eloquente, Marco Túlio Cícero. — 143. Ptolomeu, o autor do sistema do mundo que se chamou sistema ptolemaico. — Galeno e Avicena, famosos médicos, o primeiro de Pérgamo, no Ponto, o segundo árabe.
[V]
No ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz.
DESCI desta arte ao círculo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
3 Onde o pungir da dor é mais profundo.
Lá stava Minos e feroz rangia:
Examinava as culpas desde a entrada,
6 Dava a sentença como ilhais cingia.
Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
9 Com perícia em pecados consumada.
Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
12 Pelas voltas da cauda graduando.
Sempre muitas se lhe acham na presença;
Cada qual tem sua vez de ser julgada,
15 Diz, ouve, cai, se some sem detença.
Minos, logo me vendo, iroso brada,
Do grave ofício no ato sobrestando:
18 — “Ó tu, que vens das dores à morada;
“Olha como entras e em quem stás fiando:
Não te engane do entrar tanta largueza!”
21 — “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”
“Vedar não tentes a fatal empresa:
Assim se quer lá onde o que se ordena
24 Se cumpre.
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