Pinamonte dei Bonacolsí para apoderar-se de Mântua induziu o governador Alberto de Casalodi a praticar atos violentos que revoltaram o povo contra ele. — 110. Calcas, adivinho da antiguidade. — 112. Eurípilo, outro célebre adivinho.— 116. Miguel Escotto, célebre adivinho do tempo de Frederico II. — 118. Guido Bonati, astrólogo do conde Guido de Montefeltro. — Asdente, sapateiro e adivinho de Parma.

 

 

[XXI]

No quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos públicos ou roubaram aos seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo. Os dois Poetas presenciam a tortura de um trapaceiro luquense por obra de um demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio e Dante, escoltados por um bando de demônios, tomam o caminho ao longo do aterro.

 

ASSIM, de ponte em ponte, discursando
Do que nesta comédia se não cura,
3 De outro arco acima nos subimos, quando

Detemo-nos por ver a cava escura,
Por ouvir de outros prantos vão sonido;
6 Com pasmo olhei a hórrida negrura.

No arsenal de Veneza, derretido
Como referve o pez na estação fria
9 Para reparo ao lenho combalido,

Incapaz de vogar: qual com mestria
Baixel novo constrói; qual alcatroa
12 O que teve em viagens avaria;

Qual pregos bate à popa qual à proa;
Qual remos faz, qual linho torce ou parte;
15 Qual mezena e artemão aperfeiçoa:

Assim, por fogo não, por divina arte
Betume espesso, ao fundo refervia,
18 As bordas enviscando em toda parte.

Mas no pez só na tona eu distinguia
Borbulhão, que a fervura levantava,
21 Que ora inchava, ora rápido abatia.

No fundo enquanto os olhos eu fitava,
Exclamando Virgílio: — Eia! Cuidado! —
24 Para si donde eu era me tirava.

Voltei-me então como homem, que apressado
É por saber o que fugir convenha,
27 De súbito pavor sendo atalhado,

Olha sem que por isso se detenha,
E logo atrás de nós eu vi correndo
30 Negro demônio sobre aquela penha.

Ah! que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo
Nos meneios parece e temeroso,
33 Veloz nos pés e as asas estendendo!

No dorso agudo e enorme um criminoso,
Escarranchado, em peso, carregava:
36 Dos pés prendia o nervo ao desditoso.

— “Malebranche!” já perto ele bradava —
— “Eis um dos anciões de S. Zita!
39 Mergulhai-o, pois torna à gente prava,

“Que nessa terra em grande soma habita.
Venais todos lá são menos Bonturo.
42 O no, por ouro, lá se muda em ita“.

Ao pez o arroja, e pelo escolho duro
Se torna: após ladrão tanto apressado
45 Não vai mastim, que estava antes seguro:

O maldito afundou; surdiu curvado.
Sob a ponte os demônios lhe gritaram:
48 — “Não acharás aqui Vulto Sagrado,

“Nem banhos, quais no Serchio se deparam.
Se não queres no pez star imergido.
51 A te espetar as fisgas se preparam”. —

Com croques cem mordendo esse descrido
— “Bailar” — disseram — “deves bem coberto;
54 Se puderes furtar, furta escondido”. —

Tal ordem em cozinha o mestre esperto
Aos ajudantes seus que na caldeira
57 Mergulhem naco à tona descoberto.

— “Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira
Molestar-te em te vendo, busca abrigo:
60 Num recanto o acharás desta pedreira.

“Não temas que me ofenda o bando imigo;
Muito bem sei como o furor lhe afronte;
63 Já venci de outra vez igual perigo”. —

Até o extremo então passou da ponte;
Mas, quando a sexta borda já subia,
66 Mister lhe foi mostrar serena fronte.

Qual fremente matilha, que se envia
Ao pobre, quando para esbaforido
69 E pede alívio à fome que o crucia:

De baixo arremeteu-lhe o bando infido,
Aceso em ira, os croques seus brandindo.
72 Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido!

“Os croques suspendi: até mim vindo
Me preste algum de vós atenção toda.
75 Fere, se ousais porém antes me ouvindo”.

Clamaram todos: — “Ouça — o Malacoda!”
Enquanto os mais ficavam no seu posto,
78 — “Que queres?” — disse alguém que sai da roda;

E o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto
Que as ameaças vossas superasse
81 Para aqui vir, se por celeste gosto

E supremo querer não caminhasse?
Deixa-me ir; pois a lei divina ordena.
84 Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”.

De Malacoda o orgulho já serena;
Aos pés lhe cai o croque; aos ais voltado
87 Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”.

E o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado
Estás entre os penedos cauteloso,
90 Volve a mim, do temor descativado”.

Corri para Virgílio pressuroso.
Eis os demônios todos investiram:
93 Roto o concerto, pois, cria ansioso.

De Caprona os soldados, que saíram
A partido assim vi que estremeciam,
96 Quando envoltos de imigos se sentiram.

Nos sevos gestos seus se me prendiam
Os olhos, e a Virgílio vinculado
99 Os braços o meu corpo todo haviam.

Os croques inclinados: — “No costado
Fisguemo-lo” — entre si dois prorromperam.
102 E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!”

Ao que o Mestre falava desprouveram
Palavra tais, e então bradou depressa:
105 “Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram.

Depois assim nos disse: — “Andar por essa
Rocha não podereis; jaz destruído
108 Todo arco sexto sem restar-lhe peça.

Se avante quereis ir, seja seguido
Desta borda o caminho: não distante
111 Está rochedo ao passo apercebido.

“Ontem, cinco horas mais do que este instante
Mil e duzentos com sessenta e seis
114 Anos houve: é então a rocha hiante.

“Dos sócios meus na companhia ireis;
Vão ver se alguém ao banho quer furtar-se.
117 Ide em paz: molestados não sereis.

“Calcabrina, Alichino vão juntar-se
Com Cagnazzo, a decúria comandando
120 Barbariccia! E não podem separar-se

“Droghinaz, Libicocco, deste bando!
Graffiacane, o dentudo Ciriatto,
123 Farfarel, Rubicante vão marchando!

“Na ronda cada qual se mostre exato!
Sejam a salvo os dois encaminhados
126 Da ponte ao arco até agora intato!”

“Que vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!”
Se sabes ir só, vamos prontamente;
129 De guias tais dispensam-se os cuidados.

“Se tu és, como sóis, Mestre, prudente,
Não vês que os dentes seus estão rangendo,
132 Que nos encaram com furor crescente?”

“Não temas” — disse o Mestre, respondendo —
“Ranger os dentes deixa-os a seu gosto:
135 É contra os que ardem lá no pez horrendo”.

À sestra os dez então fizeram rosto;
Nos dentes cada qual mostra primeiro,
Por mofa a língua ao cabo já disposto;

139 E ele trompa fazia do traseiro.

 

38. Anciões de S. Zita, supremos magistrados de Lucca, cidade de que S. Zita é protetora. — 41. Bonturo, Bonturo Dati, magistrado mais venal do que os outros. — 42. O no, por ouro etc., por dinheiro o não se transforma emsim. — 112-114. Ontem, etc., o demônio falava cinco horas antes do meio-dia de 26 de março de 1300. Ao meio-dia teriam transcorrido 1266 anos da morte de Cristo.

 

 

[XXII]

Andando os dois Poetas pelo aterro à esquerda, veem muitos trapaceiros, que, por aliviar-se, boiam acima do piche fervendo. Sobrevêem os diabos e um deles é lacerado. É este Ciampolo, de Navarra, que consegue, depois, livrar-se das garras dos diabos, o que dá motivo a uma briga entre os demônios.

 

MARCHAR vi cavaleiros à peleja,
Travar luta, enlear-se no combate
3 E até pedir à fuga que os proteja;

Em vossa terra esquadras dar rebate
Vi, Aretinos; vi as cavalgadas,
6 Torneios, justas no mavórtico embate,

De tubas ao clangor, às badaladas,
Com sinais de castelos, de tambores,
9 Com artes novas ou entre nós usadas:

Não vi mover peões, nem corredores,
Nem baixéis, que regula a terra ou estrela,
12 De igual clarim aos sons atroadores.

Com dez demônios (que companha bela!)
Partimo-nos, porém rezar com santo,
15 Urrar com lobos discrição revela.

Minha atenção no pez se engolfa, entanto,
Por saber quanto encerra a negra cava,
18 Ali quem pena, quem derrama pranto.

Como o delfim, que da tormenta brava
O nauta avisa, o dorso recurvando,
21 Presságio do mau tempo, que se agrava.

Um lenitivo à pena, assim, buscando,
Mostrava o tergo algum dos condenados,
24 Qual relâmpago, logo se esquivando.

Como à borda de charcos enlodados
A fronte deixa à rã ver da água fora,
27 Pernas e corpo tendo resguardados:

Assim no pez a gente pecadora.
Mas, Barbariccia próximo já sendo,
30 Na resina se esconde abrasadora.

Eu vi (e ainda agora estou tremendo!)
Em cima retardar-se um desditoso
33 Qual rã, que fica, as mais desparecendo.

Perto ali stava Grafiacane iroso:
Fisgou-o na enviscada cabeleira,
36 E alçou, qual lontra, ao ar o criminoso.

Sabia os nomes da caterva inteira;
Ouvindo-os, atentei nos escolhidos:
39 Distingui-los podia de carreira.

“Eia! depressa os teus ferrões compridos
No costado lhe crava, ó Rubicante!”
42 Os demônios gritaram-lhe incendidos.

“Ó Mestre” — disse — “inquire insinuante
Quem seja aquele mísero e mesquinho
45 Que em mãos caiu da turba petulante”.

Moveu-se o Mestre e, à cava já vizinho,
Perguntou-lhe em que terra ele nascera.
48 — “Em Navarra” — tornou-lhe — eu tive o ninho.

“De um fidalgo ao serviço me pusera
Minha mãe, quando o pai meu devastara
51 Fazenda e a própria vida com mão fera.

“D’El-rei Tebaldo eu na privança entrara:
Vendia os seus favores fraudulento;
54 Sofro a pena do mal, que praticara”.

Então os dentes lhe cravou cruento,
De javardo quais presas, Ciriatto:
57 Armam-lhe a boca, servem de instrumento:

Nas mãos de imigo seu caíra o rato:
Barbariccia, entre os braços o estreitando,
60 — “Alto!” — lhe diz — “A mim cabe seu trato”.

E o rosto para o Mestre meu voltando,
Falou: — “Pergunta, se ainda mais desejas
63 Antes que o tenha lacerado o bando”.

“Algum dos pecadores, com quem stejas”
Virgílo interrogou — “Latino há sido?”
66 Tornou: — “Vou contentar-te no que almejas.

“No pez deixei alguém por tal havido...
Ah! não temera, estando lá coberto,
69 Ser de unhas e farpões ora ferido”.

— “É demais!” — Libicocco diz, que perto
Estava; e um braço ao triste dilacera,
72 Do croque ao golpe, aquele algoz esperto.

Às pernas Draghignaz também quisera
Do mísero investir; o cabo iroso
75 Acesos olhos volve e os dois modera.

Cessa um pouco o rumor e pessuroso
Pergunta o Mestre àquela sombra aflita,
78 Que do golpe olha o efeito doloroso:

“Quem foi essa alma, como tu prescita,
Que, por vires à tona, hás lá deixado?”
81 Responde o pecador: — “Foi Frei Gomita

De galura, nas fraudes consumado
Que do seu amo a imigos poupou dano,
84 E, traidor, foi por eles premiado.

“Por ouro os deixou ir, como de plano
Confessa; e em tudo o mais provou ter foro
87 Nas tretas, ser nos dolos soberano.

“Miguel Zanche, o Juiz de Logodoro,
Com ele ostenta, em práticas frequentes
90 De crimes, em Sardenha, o seu tesouro.

“Ai! vede como esse outro range os dentes!
Iria por diante; mas receio
93 Na pele a fúria dos ferrões pungentes”.

Atenta o cabo de olhos no meneio
Com que a ferir se apresta Farfarello.
96 “Vai daí!” — lhe gritou — “pássaro feio!”

— “Se Toscanos, Lombardos tens anelo
De ver e ouvir” — o triste prosseguia —
99 “Traça darei, com que satisfazê-lo.

Suspendam Malebranche essa porfia;
Não temam sócios meus dura vingança,
102 Que eu, sentado, um só não, muitos faria

“De lá surdir, segundo a nossa usança,
Ao sinal de assovio, que de ausente
105 Perigo ao vir à tona dá fiança”.

Cagnazzo alça o focinho, de repente,
E, abanando a cabeça, diz — “Cuidado!
108 Astúcia é por lançar-se ao pez fervente”.

Ele, que em cópia ardis tinha guardado,
Tornou: — “Sutil astúcia, na verdade,
111 Causar aos meus tormento redobrado!”

Dos outros contra o aviso, por vaidade,
Alichino lhe disse: — “Se abalares,
114 Não provarei de pés agilidade,

“Hei de, voando, te agarrar nos ares.
Vamos do cimo e à riba retiremos:
117 Maravilha, se a tantos enganares!“

Leitor, logração nova contemplemos.
Já todos volvem de outro lado a vista:
120 Quem mais avesso assim primeiro vemos.

O Navarro estudara-o como invista;
E arrancando, de súbito, ao betume
123 Se arroja e a liberdade então conquista.

Da afronta sentem todos o azedume,
Inda mais quem motivo dera ao feito,
126 Gritando: — “Preso estás!” — salta do cume,

Porém do medo se avantaja o efeito
Ao das asas: um baixa ao fundo presto,
129 No ar sustém-se o outro, alçando o peito.

Assim mergulha o pato na água lesto,
Quando avista o falcão: perdida a presa,
132 Se torna o caçador cansado e mesto.

Calcabrina, da raiva na braveza,
Após o sócio voa, por ter briga,
135 Se a alma como deseja, vence empresa.

Vendo que ao fundo o malfeitor se abriga,
As garras volta contra o companheiro:
138 Furor à luta sobre o lago o instiga.

As unhas o outro, gavião ligeiro,
Lhe crava e, entrelaçando-se espantosos,
141 Tombam ambos no pez, de corpo inteiro.

Separa o grão fervor os dois raivosos;
Em vão, porém, subir-se pretenderam,
144 Que as asas prendem borbulhões viçosos.

Os outros vendo o caso, se doeram:
Envia quatro o cabo diligente;
147 E de croques armados acorreram.

De um lado e de outro chegam velozmente.
Tendem farpões aos sócios enviscados,
Cozidos já naquela crusta ardente,

151 E desta arte os deixamos atalhados.

 

48-54. Em Navarra etc., Ciampo de Navarra, o qual serviu na corte do rei Tebaldo II de Navarra. 81. Frei Gomita, vicário de Ugolino Visconti, por dinheiro deu liberdade aos inimigos do seu senhor. — 88. Miguel Zangue, vicário do rei Enzo em Logodoro.

 

 

[XXIII]

Prosseguem os dois Poetas o seu caminho, descartando-se dos diabos. Vendo-os, porém, voltar novamente, Virgílio abraça-se com Dante e deixam-se resvalar pelo declive do precipício. Encontram os hipócritas vestidos de pesadas capas de chumbo dourado. Falam com dois frades, Catalano e Loderigo, bolonheses. Um dos frades, inquirido por Vigílio, indica-lhe o modo de subir ao sétimo compartimento.

 

EM silêncio, a companha má deixada,
Seguíamos, após um do outro andando,
3 Como frades menores em jornada.

Meu pensamento à rixa se voltando,
A fábula de Esopo relembrava,
6 Em que ao rato arma a rã laço nefando.

Se aqueles casos dois eu confrontava,
Como issa e mo, iguais me pareciam,
9 Quando o princípio e fim seus recordava.

E, como os pensamentos se associam,
Outros logo daquele me brotaram,
12 Que em dobrado temor a alma envolviam.

Pensava: — esses demônios que passaram,
Por causa nossa, tal vergonha e dano,
15 Do fato certamente se enojaram.

Se a maldade agravar rancor insano,
Eles no encalço nos virão ferozes,
18 Qual cão, que a lebre aboca enfim no plano.

Aguardando os horríficos algozes,
Arrepiam-se as carnes e o cabelo.
21 — “Ó Mestre meu, as garras temo atrozes!”

Exclamo: — “Ache depressa o teu desvelo
Para nós contra o bando amparo e abrigo.
24 Após os passos nossos cuido vê-lo”.

“Se espelho eu fora, a imagem tua, amigo,
Tanto não refletira claramente,
27 Quanto às ideias na tua alma sigo.

“Agora iguais me estão surgindo à mente,
Concordes tanto nas feições, em tudo,
30 Que um parecer entre ambos há somente.

“À destra inclina a encosta, ou eu me iludo:
Por lá baixando à mais vizinha cava,
33 Teremos contra assaltos seus escudo”.

Não acabava, quando a turba prava
Assoma: de asas pandas se enviando
36 Contra nós, não mui longe a divisava.

De súbito nos braços me tomando,
Qual mãe, que ao despertar se vê cercada
39 De furiosas flamas, e, apertando

Ao seio o filho, foge acelerada,
E ao pudor véus esquece angustiosa,
42 Só por salvar aquela prenda amada:

Lá do cimo da riba alta e fragosa
Resvala o Mestre pela penha dura,
45 Muralha de outra cava tenebrosa.

Água não corre mais veloz da altura
Por canal a impulsar de engenho a roda,
48 Quando, vizinha aos cubos, se apressura,

Do que a descer o Guia meu se açoda,
Como a filho estreitando-me ao seu peito,
51 Não como a companheiro a quem se engoda.

Da cava, apenas atingira o leito,
Quando ao cimo os demônios se mostraram:
54 Mas de iras suas malogrou-se o efeito.

Por lei da Providência terminaram
Funções, que exercem na caverna quinta,
57 Toda vez que o recinto seu deixaram.

Gente, que de brilhante cor se pinta
Vemos, que a tardo passo em torno andava;
60 Chorava e em forças parecia extinta.

Capa e capuz trazia, que ocultava
Seus olhos, dessa forma de vestidos
63 De Colônia entre os monges mais se usava.

De ouro por fora, dentro guarnecidos
De chumbo: comparando a peso tanto,
66 De palha os de Fred’rico eram tecidos.

Por toda a eternidade, ó duro duro manto!
Com tais almas, à sestra, caminhamos,
69 Atentos escutando o triste pranto.

Tanto as oprime o peso, que as passamos
No lento caminhar; e a cada instante
72 De nova companhia ao lado estamos.

“Mostra-me — eu disse ao Guia, suplicante —
Algum por nome ou feitos afamado;
75 Busca, sem te deter, Mestre prestante!” —

Tendo vozes toscanas escutado,
Um atrás nos gritou: — “Cessai da pressa,
78 Com que ides a correr pelo ar cerrado!

“Cousa talvez direi, que te interessa”.
Volta-se o Mestre e diz-me: — “Agora espera;
81 Para o passo igualar-lhes não te apressa”.

Cessando, vejo um par que se acelera;
Seus gestos dizem que acercar-se aspiram,
84 Malgrado a estrada e o peso, que os onera.

Aqueles dois, já próximos, remiram
Com vesgos olhos, sem falar, meu rosto;
87 Depois entre eles vozes tais se ouviram:

“O que respira ainda em vida é o posto?
Se mortos ambos são, por que motivo
90 Da plúmbea capa evadem-se ao desgosto?”

E disseram: — “Toscano, que, inda vivo,
Vens de hipócritas ver o grêmio triste,
93 Dizer quem sejas, não recusa esquivo”.

— “Nasci na grã cidade, à qual assiste
Com suas belas margens o Arno ameno,
96 E o corpo, em que hei crescido, lá persiste.

“Quem sois que da aflição tanto veneno
Na face amargo pranto denuncia?
99 Qual penar tendes de esplendor tão pleno?”

“Tanto chumbo se encobre” — um me dizia —
Destas capas sob o ouro, que oscilamos,
102 Qual balança, que ao peso hesitaria.

“De Bolonha e Godente, nos chamamos
Um Loderigo e o outro Catalano:
105 Juntos ambos Florença governamos,

“Por que ficasse a paz livre de dano.
Em vez de um regedor; do que hemos sido
108 O Gardingo dá prova e desengano”.

“Ó irmãos” — comecei — “o mal nascido...”
Atalhei-me: jazendo um condenado
111 Com puas três em cruz via estendido.

Em vendo-me estorceu-se angustiado.
Altos suspiros arrancou do peito.
114 Catalano acercou-se apressurado.

“Este” — disse — “que geme em duro leito,
Que a um homem dessem morte, aconselhara
117 Aos Fariseus, do povo por proveito.

“Através do caminho é nu, repara:
De quem passa, desta arte, ele conhece
120 O peso, quando por calcá-lo para.

“Igual martírio o sogro seu padece,
Assim como cada um desse concilio,
123 Semente pra os Judeus de horrenda messe”.

Maravilhar-se então mostrou Virgílio,
Posto em cruz o prescito contemplando
126 Com tanto opróbrio lá no eterno exílio,

Voltou-se a Catalano assim falando:
“Dizei, se assim vos apraz e é permitido,
129 Se à direita há vereda, onde, passando,

Deste recinto vamo-nos temido,
Sem que os anjos perversos obriguemos
132 Caminho a nos mostrar não conhecido”.

Tornou: — “Mais perto do que julgas temos
Rochedo, que, do muro se estendendo,
135 Dá ponte a cada val, em que gememos.

“Este não cobre, outrora se rompendo;
Mas subir podereis pela ruína,
138 Que do declive ao fundo se está vendo”.

Ouvindo, o Guia um pouco a fronte inclina
E diz: — “Bem más explicações nos dava
141 Quem tanto os pecadores amofina”.

Logo o frade: “Em Bolonha me constava
Que o demônio, entre os vícios com que stenta,
144 De ser pai da mentira se ufanava”.

A passo largo o Mestre já se ausenta;
Ira ressumbra o rosto carregado.
Deixa a turba, que em capas se atormenta,

148 As pegadas seguindo-lhe apressado.

 

8. “Mo” e “issa” advérbios que, ambos, significam: agora. — 66. De Frederico etc., em comparação, as capas que Frederico II mandara colocar nos presos eram levíssimas. — 104. Loderigo e Catalano, frades que foram chamados a governar Florença, depois da derrota de Manfredo (1266) e que se aproveitaram da sua posição, causando um motim no qual foi incendiada a casa dos Uberti, perto do Gardingo.