— 41. De Polenta a águia forte etc., a família de Polenta, que tinha uma águia por emblema, dominou Ravena e Cérvia. — 46. Mastinos de Verruchio, Malatesta e Malatestino de Verruchio, senhores de Rímini. — 48. Montagna, prisioneiro guelfo que Malatestino mandou matar. — 49 Lamone e Santerno, as cidades de Faenza e Imola. — 52. A cidade etc. Cesena. — 70. O papa, Bonifácio VIII. — 86. Em Latrão etc., os Colonenses moravam perto da igreja de S. João em Latrão. — 89. Contra Acre, que os Sarracenos tomaram aos cristãos em 1291. — 94. Como foi de Sirati etc., conforme uma lenda Constantino foi curado da lepra por São Silvestre, que morava numa gruta do monte Sirati. — 102. Palestrina, onde os Colonenses se tinham retirado. — 105. O meu antecessor, Celestino V.

 

 

[XXVIII]

No nono compartimento os Poetas encontram os semeadores de cismas e escândalos civis e religiosos. Dante vê Maomé, que o encarrega de uma embaixada para o herege rei Dolcino; fala também com outros danados.

 

DIZER o sangue e as chagas espantosas,
Que eu vi neste lugar, quem poderia,
3 Em livre prosa e em vezes numerosas?

Nenhuma língua, certo, bastaria;
Fraca a palavra, inábil nossa mente
6 Para horror tanto compreender seria.

Quando junta estivesse toda gente,
Que lá da Apúlia na infelice terra,
9 Perdera o sangue seu na luta ingente

Dos romanos por mãos; e em crua guerra
A que tantos de anéis deixou vencida,
12 Como refere Lívio, que não erra;

E a que fora por golpes abatida,
Quando a Roberto Guiscardo resistia;
15 E a que tem sua ossada inda espargida

De Ceperan no campo, onde traía
Cada Apulhês; e que no Tagliacozzo
18 O Velho Alard sem combater vencia:

Das feridas o aspecto lastimoso
Não fora, qual no fosso nono imundo
21 Apresentava o bando criminoso.

Qual tonel, que aduelas perde ao fundo,
Estava um pecador, que roto eu via
24 Das fauces ao lugar que é menos mundo.

As entranhas pendiam-lhe; trazia
Patentes os pulmões e o saco feio,
27 Onde o alimento de feição varia.

A contemplá-lo estava de horror cheio,
Eis me encara e me diz, abrindo o peito:
30 “Vê como eu tenho lacerado o seio!

“Mafoma sou, quase pedaços feito;
Antecede-me Ali, que se lamenta:
33 Do mento à testa o rosto lhe é desfeito.

“Todos, que a dor aqui tanto atormenta,
De escândalos, de cismas inventores,
36 Pendidos têm, qual vês, pena cruenta.

“Demônio deixo atrás que os pecadores
Aos fios passa de cruel espada.
39 Da multidão nenhum aos seus furores

“No giro escapa da afrontosa estrada.
Cerrar-se em todo cada golpe horrendo
42 Antes que torne a olhar-lhe a face irada.

“Mas quem és, que, na rocha te detendo,
Estás dessa arte a dilatar a pena,
45 Que Minos te aplicou, teus crimes vendo?”

— “Não é morto; sentença o não condena” —
Torna o Mestre — “não vem por seu castigo,
48 Mas, para ter experiência plena.

“Descendo ao mais profundo vai comigo,
Que morto sou, dos círculos temidos:
51 Tão certo é como falo ora contigo”.

Ouvindo mais de cento dos punidos,
De espanto a me encarar se demoraram,
54 Dos seus próprios tormentos esquecidos.

— “A Frei Dolcino diz, pois não findaram
Teus dias e hás de ao sol tornar em breve,
57 Se desejos de ver-me o não tomaram,

“Que se aperceba; pois, cercando-o, a neve
Dará triunfo à gente de Novara,
60 A quem vencê-lo assim há de ser leve”.

Para partir um pé Mafoma alçara
Ao tempo, em que palavras tais dizia:
63 Baixou-o e foi-se, apenas rematara.

De guela golpeada outro acorria;
Té as celhas nariz tendo truncado,
66 Uma orelha somente possuía.

Como os mais, contemplando-me pasmado,
Aos mais se antecipou e, escancarando
69 O canal, que de sangue era inundado,

“Ó tu” — falou-me — “que não stás penando,
Que outrora hei visto em região latina,
72 Se eu não erro, aparências aceitando,

“Recorda-te de Pier de Medicina
Se tornar-te for dado ao belo plano,
75 Que de Vercello a Marcabó se inclina.

“E aos dois nobres varões dize de Fano,
Misser Angiolello e Misser Guido,
78 Se o futuro antevendo, eu não me engano,

“Que do baixel, que os haja conduzido,
De Católica ao pé, ao mar lançados
81 Serão por ordem de um tirano infido.

“Por Gregos, por piratas perpetrados,
Entre Chipre e Maiorca ao infame feito
84 Não viu Netuno crimes igualados.

“O traidor, que de um olho tem defeito,
Dessa terra opressor, que um companheiro
87 Meu tivera em não vê-la mor proveito,

“Irão a seu convite prazenteiro
Para acordo; mas votos de Foscara
90 Não fará por temer vento ponteiro”.

“Revela-me” tornei-lhe — “e me declara,
Desse favor, que deprecaste, em troca,
93 Quem de ver essa terra se pesara”.

As mãos de um pecador alçando à boca,
Escancarou-a e disse-me gritando:
96 — “É este; a voz, porém, se lhe sufoca.

“Exulado, ele foi quem, dissipando
Hesitações de César, lhe afirmava
99 Que a ocasião perdia demorando”.

Oh! quão pávido Cúrio se mostrava,
Tendo cortada a língua na garganta,
102 Que outrora tanta audácia aconselhava!

Dos decepados braços alevanta
Outro os cotos ao ar caliginoso:
105 Banha-lhe o sangue a face, que me espanta.

Gritou: — “Memora Mosca desditoso!
Fui quem disse: — O seu fim tem cousa feita!
108 Fatal dito, à Toscana, ai! bem danoso!”

“E à tua raça, que à morte foi sujeita!”
Atalhei. Sobre a dor, dor se acendendo
111 Em desesp’rança se partiu desfeita.

Aquela multidão stava atendendo,
Cousa assombrosa eis vejo, que inda hesito
114 Em narrar, provas outras eu não tendo.

Da consciência já me alenta o grito,
Sócia fiel, que o homem torna forte,
117 Sob o arnês da verdade, sempre invicto.

Eu via, e cuido ver na mesma sorte
Apropinquar-se um corpo sem cabeça,
120 Por entre os outros da infeliz coorte,

Caminha, alçando-a pela coma espessa,
Da mão pendente a modo de lanterna:
123 Gemendo, os olhos seus nos endereça.

Servia ele a si próprio de luzerna,
Eram duas em um, era um em duas:
126 Como ser pode, sabe o que governa.

Chegado ao pé da ponte, das mãos suas
Um ao alto a cabeça levantava
129 Para lhe ouvirmos as palavras cruas.

“Vê meu duro castigo!” — assim falava —
“Tu, que os mortos visitas, sendo em vida:
132 Outro já viste igual ao que me agrava?

“Eu sou — faz minha história conhecida,
Voltando à luz — Bertran de Born, que há dado
135 Ao jovem Rei consulta, em mal tecida.

“Pai e filho inimigos hei tornado:
As iras de Absalão mais não movera.
138 Contra Davi Aquitofel malvado.

“Laços tais como eu, pérfido, rompera,
Meu cérebro assim levo desunido
Desse princípio, que no corpo impera:

142 Por lei sou, pois, de talião punido”.

 

14. Roberto Guiscardo, combatendo contra os Sarracenos, conquistou o reino de Nápoles. — 15. De Ceperan, onde Manfredo foi derrotado por Carlos d’Anjou. — 17. Tagliacozzo, onde morreu Corradino. — 31. Mafoma, Maomé, fundador do Islamismo. — 32. Ali, parente de Maomé. — 55. Frei Dulcino, cismático, pertencente à seita dos Irmãos Apostólicos. — 73. Pier de Medicina, por dinheiro fomentou a discórdia entre os senhores da Romanha. — 76-90. E aos dois etc., Pier de Medicina prediz a morte violenta de Messer Guido del Cassero e de Messer Angiolello de Carignano. — 106. Mosca dei Lamberti, induziu à matança de Buondelmonte dei Buondelmonti, dando inicio à luta em Florença entre guelfos e gibelinos. — 134. Bertran de Born, poeta e guerreiro francês, infiltrou a discórdia entre o rei Henrique II da Inglaterra e seu filho. — 137-38. As iras de Absalão, Arquitofel induziu Absalão a rebelar-se contra o seu pai, o rei Davi.

 

 

[XXIX]

Chegando ao décimo compartimento, os Poetas ouvem os lamentações dos falsários, que aí são punidos com úlceras fétidas e enfermidades nauseantes. Em primeiro lugar estão os alquimistas, entre os quais Griffolino e Capocchio.

 

MEUS olhos tanto inebriado haviam
A turba enorme e o seu cruel tormento,
3 Que alívio em pranto procurar queriam.

“Por que assim” — diz Virgílio — “estás atento?
Por que a vista dos tristes mutilados
6 Prende-te ainda o duro sofrimento?

“Tal não fizeste em antros já passados.
Estão, se os resenhar é tenção tua,
9 Por milhas vinte e duas derramados.

“Já sob os nossos pés evolve a lua;
É-nos escasso o tempo concedido:
12 O que ainda hás de ver detença exclua”.

“Talvez se houveras” — torno — “conseguido
Ver o motivo, por que eu tanto olhava,
15 Mais demora tivesses permitido”.

Já se partia; e eu logo caminhava,
Enquanto assim falava-lhe em resposta,
18 Acrescentando: “Lá, naquela cava,

“Onde a vista cuidosa estava posta,
Da stirpe minha um spírito carpia
21 Por culpa, a que mor pena está disposta”.

“Não te confranjas mais” — responde o Guia —
“Nos males, que padece, cogitando.
24 De aí cuida; estar nesse antro merecia.

“Ao pé da ponte o vi, que, te indicando,
O dedo alçava em cominante gesto:
27 Geri del Bello estavam-no chamando.

“Eras absorto no semblante mesto
Daquele que senhor foi de Altaforte:
30 Quando atentaste, se ausentara presto”.

“Ó Mestre” — eu disse — “a violenta morte
Que ainda não punia justa vingança
33 De quem naquela afronta era consorte,

“Deu causa a usar, ao ver-me, essa esquivança
Talvez e ao seu silêncio: assim pensando
36 Maior piedade do seu mal me alcança”.

Ao rochedo chegamos praticando,
Donde outro vai divisa-se: o seu fundo
39 Todo se vira, a luz não lhe faltando.

Subidos do final claustro profundo
De Malebolge à ponte, onde os conversos
42 Já distinguia do recinto imundo.

Lamentos e ais feriram-me diversos;
De mágua tanta o peito assetearam,
45 Que os ouvidos tapei aos sons adversos.

Tão penetrante dor denunciaram,
Como se da Marena e da Sardenha
48 Enfermos no verão se incorporaram.

De outros à turba, que remédio venha
Nos hospitais buscar de Valdichiana.
51 Odor surdia, igual ao que já tenha 

Corrupto corpo, e se gangrena o dana.
Baixando à sestra até a riva extrema
54 Mais claramente da caverna insana

Então vimos o fundo, onde a Suprema
Infalível Justiça, a raça ímpia
57 Dos falsários em pena infinda prema.

“De Egina quando o povo adoecia,
E o ar maligno aos animais a morte
60 Trazendo, os próprios vermes extinguia,

Deserta sendo a terra de tal sorte
Que às formigas (poetas o afirmavam)
63 Deveu a antiga gente o alento forte:

Cenas tais mais tristeza não causavam
Do que almas ver, que essa prisão sombria
66 Em rumas várias lânguidas juncavam.

Qual sobre a espalda de outro se estendia,
Qual sobre o ventre seu, qual se arrastando
69 Na dolorosa estrada se estorcia.

Silentes, passo a passo caminhando,
Vemos, ouvimos míseros prostrados,
72 Em vão para se erguerem se esforçando.

Sentados dois, um no outro recostados,
Quais torteiras que juntas se aquecessem,
75 Vi do alto aos pés de pústulas manchados

Os criados, que os amos seus apressem,
Ou que estejam velando de mau grado
78 Almofaça não vi que assim movessem,

Como cada um se agita acelerado,
Com implacáveis unhas se mordendo,
81 De raivoso prurido atormentado.

Iam da pele as crostas abatendo,
Como a faca do sargo arranca a escama
84 Ou de peixe, na casca mais horrendo.

“Ó tu” contra um dos dois Virgílio exclama,
Que os dedos teus convertes em tenazes
87 Por desmalhar do corpo a extrema trama,

“Diz-me se entre estas almas contumazes
Existe algum Latino; eternamente
90 Sejam-te as unhas de servir capazes!”

“Latinos somos” — torna diligente
Um dos dois padecentes lacrimoso,
93 “Mas tu quem és? Em declarar consente”.

— “Eu sou que” — diz Virgílio ao desditoso
“De círc’lo em círc’lo este homem vivo guia
96 Por lhe mostrar o abismo pavoroso”.

Já cessa o mútuo arrimo, que os unia:
A mim volveu-se cada qual tremendo;
99 Turba imitou-os, que em redor ouvia.

Acercou-se-me o Guia assim dizendo:
“Quanto quiseres tu agora dize”.
102 Eu logo comecei lhe obedecendo:

“Nunca a memória vossa finalize!
Na primeira mansão da humana raça!
105 Mas por sóis numerosos se abalize!

“Quem sois? E donde? De o dizer a graça
Fazei: a vossa pena, imunda é certo,
108 De responder-nos pejo vos não faça.

“De Arezzo fui” disse um “de Siena Alberto
Morte me deu nas chamas, truculento,
111 Por feito a que não fora o inferno aberto.

“Dissera, em gracejar só pondo o intento.
“Alçar-me aos ares posso velozmente”.
114 Essa arte, por ter curto o entendimento,

“Houve ele de saber desejo ardente.
Como o não fiz um Dédalo, à fogueira
117 Mandou-me quem seu pai foi certamente.

“Mas das cavas caí na derradeira
Por sentença de Minos rigorosa:
120 Foi meu crime a alquimia traiçoeira”.

E ao Vate eu disse: “Nunca tão vaidosa
Gente, pôde alguém ver como a de Siena?
123 Nem a de França há sido tão sestrosa!”

O segundo leproso então me acena
Dizendo: “Salvo Stricca, homem poupado,
126 Que todo o excesso em desprender condena!

“Salvo Nicoló, aquele que inventado
Do cravo tinha a rica especiaria,
129 O seu uso deixando enraizado!

“Salvo Caccia de Ascian e a companhia,
Com quem vinhas e bosques esbanjava
132 E o Abbagliato as chanças esgrimia!

“Para que saibas quem desta arte agrava
Contra os de Siena o teu severo asserto,
135 No meu triste semblante os olhos crava.

“De que ora vês Capocchio já estás certo,
Que alquimista, os metais falsificara,
Sabes como eu, se em recordar acerto,

139 Natura, hábil bugio, arremedara”.

 

27. Geri del Bello, primo do pai de Dante, morto a traição por um da família Sachetti. — 58. Egina etc. Segundo Ovídio, Egina, despovoada por pestilência, foi repovoada pelas formigas que se transformaram em homens. — 109. De Arezzo etc., Griffolino de Arezzo, alquimista, que foi mandado queimar por Alberto de Siena.