— 125-32. Salvo etc., por ironia — Strica, Nicoló Salimbene, Caccio de Asciano e Bartolomeu dei Folcacchieri, alcunhado o Abbagliato foram todos de Siena e conhecidos como dissipadores de dinheiro. — 136. Capocchio de Siena, alquimista que foi queimado vivo.

 

 

[XXX]

No décimo compartimento são punidos outras espécies de falsários. Os falsificadores de moedas, tornados hidrópicos, são constantemente atormentados por furiosa sede; entre eles está mestre Adão de Brescia, o qual narra que, à instigação dos condes Guidi, falsificou o florim de Florença. Os que falaram falsamente são perseguidos por febre ardentíssima. O canto termina com uma altercação entre mestre Adão e o grego Sinon. Virgílio repreende Dante pois este para, escutando as injúrias que os dois trocam entre si.

 

QUANDO Juno, de Semele ciosa,
Contra o sangue tebano se inflamava,
3 Como o provou por vezes impiedosa,

Tanta insânia Atamante perturbava,
Que a esposa ao ver, ao colo seu trazendo
6 Os filhos dois, que a ele encaminhava,

Gritou: “Redes tendamos! Já stou vendo
Leoa e leõzinhos da embosacada!”
9 Disse e, raivoso, os braços estendendo

De um, Learco, travava e de pancada
Rodou-o e o percutiu em penedia.
12 Ao mar lançou-se a mãe com outro abraçada

Quando a fortuna a cinzas reduzia
A pujança de Troia, em tudo altiva,
15 E com seu reino o morto rei jazia,

Hécuba triste, mísera, cativa,
Depois de morta Polixena vira,
18 Do Polidoro seu em plaga esquiva,

Súbito quando o corpo descobrira
Uivou qual cão, de angústia possuída.
21 Tanto a pungente dor nalma a ferira!

Mas em Tebas ou Troia destruída
Homens ou feras nunca revelaram
24 Raiva, em tantos extremos desmedida,

Como almas duas lívidas, que entraram
Nuas correndo, os dentes amostrando,
27 Quais cerdos, que à pocilga se esquivaram.

Uma alcançou Capocchio e, lhe cravando
No colo as presas, rábida, arrastava
30 Sobre o ventre na rocha o miserando.

Mas o de Arezzo, que tremendo estava
“É Gianni Schicchi” — disse — esse raivoso:
33 De outros a pena o seu furor agrava!”

“Possas livrar-te do outro esp’rito iroso!”
Falei — “Se não te causa assim fadiga,
36 Diz quem seja, antes de ir-se o furioso”.

“Aquele é” — respondeu — “uma alma antiga;
É Mirra infame, que paixão impia
39 Instigou ser do pai a sua amiga.

“Para o seu crime consumar fingia
De outra pessoa as formas e o semblante.
42 Igual ardil usara Schicchi um dia:

“Para em prêmio alcançar égua farfante:
Contrafez Buoso morto e ao testamento
45 Falso a norma legal deu, que é prestante”.

Aos dois raivosos estivera atento
Até que de ante os olhos se apartaram;
48 De outros volvi-me ao cru padecimento.

Num do alaúde as formas se notaram
Se as pernas lhe tivessem cerceado
51 Na parte, em que do tronco se separam.

Da grave hidropisia molestado,
Que tanto o humor vicia e tanto ofende,
54 Que o rosto estreita e faz o ventre inchado,

A boca ter cerrada em vão pretende,
Qual hético de sede ressequido.
57 A quem um lábio se alça e o outro pende.

“Ó vós, que ao negro abismo haveis descido
(Não sei por que razão) de pena isentos,
60 Olhai” — disse — “prestando atento ouvido,

“De mestre Adam miséria e sofrimentos
Tive abastança; agora, ai! desejando
63 De água uma gota, passo mil tormentos,

“Dos ribeiros, que ao Arno, murmurando
Do Casentino lá na verde encosta
66 Se vão, por moles álveos inclinando,

“Na mente a imagem sempre tenho posta.
Não em vão: mais me seca e me fustiga
69 Que o mal, de que esta face é descomposta.

“Quer Justiça, que austera me castiga,
Que o teatro, onde hei crimes cometido,
72 Mais me acendendo anelos, me persiga.

“Lá demora Romena, onde hei fingido
Em falso cunho a imagem do Batista;
75 Assim meu corpo o fogo há consumido.

“Se a sombra achasse aqui, se aqui já exista,
De Guido ou de Alexandre ou seu germano!
78 Fonte-Branda esquecera ante essa vista.

“Mas um já veio, se induzir-me a engano
Os raivosos, que giram, não quiseram.
81 Que importa? Para andar em vão me afano.

“Se os meus pés transportar-me inda puderam,
De um sec’lo ao cabo, espaço de uma linha,
84 Já postos a caminho se moveram,

“A fim de o ver na multidão mesquinha
Do val, que milhas onze em torno amplia,
87 Com largura, que de uma se avizinha.

“Star lhes devo em tão triste companhia:
Florins cunhei, aos três obedecendo,
90 Nos quais quilates três de liga havia”.

“Quem são” — lhe disse — os dois que ora estou vendo?
Quais no inverno mãos úmidas fumegam,
93 À destra tua próximos jazendo”.

“Já stavam quando vim: eles se entregam,
Dês que desci, a quietação completa;
96 E creio, assim a eternidade empregam.

“Uma acusou José, falsária abjeta,
Outro é Sinon, de Troia o Grego tredo:
99 Lançam por febre essa fumaça infecta”.

Anojado um do par, que estava quedo,
Por ver em vozes tais afronta e ofensa,
102 À pança o punho lhe vibrou sem medo:

Soou, qual de zabumba a pele tensa.
O braço Mestre Adam lhe envia à face
105 E assim lhe dá condi’na recompensa.

“Inda que” — disse — os membros meus enlace
Moléstia, que me tolhe o movimento,
108 Presteza a destra tem, com que rechace”.

“Foste” — o outro tornava — “mais que lento
Quando forçado ao fogo caminhavas.
111 Só presto eras no ofício fraudulento”.

“É certo; mas verdade não falavas”
O hidrópico diz — “quando exigiram
114 Em Troia essa verdade, que ocultavas”.

“Se os lábios meus perjúrio proferiram,
Tu falsaste moeda: eu fiz um crime,
117 Aos teus nunca em demônio iguais se viram”.

“Do cavalo a façanha inda te oprime”
— Responde o que a barriga tinha inchada —
120 Sobre o teu nome infâmia o mundo imprime”.

“Arda em sede tua língua já gretada!”
Grita o Grego — “Hajas de água saniosa
123 O ventre impando, a vista embaraçada!”

“Escancaras a boca venenosa”
O moedeiro diz — “por mal somente;
126 Se sede eu tenho e a pança volumosa

“Ardes tu e a cabeça tens fervente.
Por lamberes o espelho de Narciso
129 A um aceno correras de repente”.

Atento estava aos dois mais do preciso,
Eis Virgílio me fala: — “Oh! toma tento!
132 Quase que eu contra ti me encolerizo!”

Iroso assim falar neste momento
O Mestre ouvindo, voltei-me corrido:
135 Ainda sinto rubor em pensamento.

Como quem sonha danos ter sofrido,
Que em sonho espera que sonhando esteja
138 E anela que o que é já não tenha sido,

A mente, sem dizer, falar deseja.
Desculpas aspirando à falta sua;
141 Stá desculpada e cuida que o não seja.

“Menos rubor lavara a culpa tua”
Disse o Mestre — “se houvera mor graveza:
144 Fique-te a mente da tristeza nua.

“E quando queira o acaso que à torpeza
De iguais debates se ofereça ensejo.
De que eu steja ao teu lado faz certeza,

148 Que é ter querendo ouvi-los, vil desejo”.

 

1-2. Juno etc., por ciúme de Semele, tebana, mãe de Baco, vingou-se de toda a sua estirpe, tornando louco a Atamante, rei de Tebas, o qual matou um dos filhos, e no entanto a mulher com outro filho se lançou ao mar. — 16. Hécuba, viúva de Príamo, ao ver mortos todos os seus filhos, pela dor foi transformada em cadela. — 32. Gianni Schicchi, florentino, de acordo com o filho do morto, fingiu-se de Buoso Donati moribundo, ditando o testamento. — 38. Mirra, filha de Cinira, rei de Chipre, apaixonou-se pelo pai. — 61. Adam, de Brescia, falsificador de moedas. — 77. Guido etc., dos condes Guidi, induziu mestre Adam a falsificar o dinheiro de Florença. — 97. Falsária abjecta etc., mulher de Putifar, que acusou injustamente a José. — 98. Sinon de Troia, que com as suas mentiras induziu os troianos a introduzirem na cidade o cavalo de madeira.

 

 

[XXXI]

Dando as costas ao oitavo círculo, caminham os Poetas para o centro, onde se abre o poço pelo qual se desce ao nono. Em torno do poço estão os gigantes rebeldes, cujas figuras horrendas Dante descreve. Um deles, Anteu, a pedido de Virgílio, toma nos braços os dois poetas e suavemente os depõe sobre a orla do último reduto internal.

 

A LÍNGUA, que me havia vulnerado
E a vergonha nas faces me acendera,
3 O bálsamo aplicava ao mal causado:

Assim de Aquiles e seu pai fizera,
Dizem, outrora a lança portentosa:
6 Sarava o corpo, que cruel rompera.

Damos costas à estância desditosa,
Sem proferir palavra atravessando
9 Sobre a borda, que em torno jaz fragosa.

Noite não sendo e dia não reinando,
Pouco distante eu divisar podia,
12 Eis som de trompa escuto, retumbando

Tão alto, que o trovão transcenderia,
Donde irrompera contra a parte andava
15 E sôfrego a um só ponto olhos prendia.

A de Orlando tão forte não soava
Na derrota fatal, que a santa empresa
18 De Carlos Magno o desbarato dava.

Já assim por diante: eis a grandeza
De muitas e altas torres me aparece.
21 “Qual é” — digo — “essa vasta fortaleza?”

“Pois de tão longe e em trevas te apetece
Julgar” — Virgílio diz — “um erro agora
24 Imaginando estejas acontece.

“Verás ali chegado, sem demora,
Quanto a distância a vista nos engana:
27 O passo acelerar convém por ora”.

Da mão travou-me e em voz suave e lhana
O Mestre prosseguiu: “Antes que avante
30 Passes, dessa ilusão te desengana.

“O que torre imaginas é gigante.
Da cinta aos pés imergem-se no poço,
33 E alçam bustos em torno ao espaço hiante”.

Quando o sol gasta o nevoeiro grosso,
Pouco a pouco se mostra e é discernido
36 Quanto oculta o vapor ao olhar nosso:

Vendo assim por esse ar escurecido,
Da borda mais e mais me apropinquando,
39 Fugia o erro, o horror tinha crescido.

Como torres em roda se elevando,
Montereggion guarnecem de coroa:
42 Assim do poço a margem circundando,

Torreiam com metade da pessoa
Os horríveis gigantes, que ameaça
45 Do céu ainda Jove, quando troa.

Distingo a cara de um (e me transpassa
O medo), logo os braços, peitos e parte
48 Do ventre, que da borda a altura passa.

Bem fez a natureza, quando essa arte
De tais monstros criar há descurado,
51 De iguais agentes desarmando Marte.

Se ainda a selva e mar têm povoado
Do elefante e baleia, sutilmente
54 Quem pensa justa e sábia a tem julgado.

Mal seria aos humanos permanente,
Se perspicaz engenho encaminhasse
57 Maligno instinto em robustez ingente.

Larga e comprida, pareceu-me a face,
Qual de S. Pedro, em Roma, a brônzea pinha:
60 A proporção nas outras partes dá-se.

O corpo, que da borda acima vinha,
Tanto ao ar elevava a grã figura,
63 Que três Frisões, por lhe atingir a linha

Da cerviz, não fariam tanta altura,
Porquanto eu esmava em trinta grande palmos
66 Do colo ao pescoço a válida estatura.

Rafael mai amècch zabi almos
A pavorosa boca assim bradava;
69 Não podia entoar mais doces salmos.

Disse-lhe o Mestre: “Ó alma bruta e brava!
Tange a trompa, se queres lenitivo
72 À paixão, que te acende ardente lava.

“A roda busca do pescoço altivo
O loro, a que se prende alma confusa!
75 Vê que te cruza o vasto peito esquivo”.

Depois a mim: “De quanto fez se acusa,
É Nemrod; por tomar estulta empresa
78 O mundo uma linguagem só não usa.

“Deixêmo-lo: falar-lhe é vã despesa.
Como idioma de outros não compreende,
81 A quem o escuta o seu move estranheza”.

Vamos então caminho, que se estende
À sestra. Outro, de besta quase a tiro,
84 Está mais fero, o ar mais alto fende.

Que mão cativa o monstro, que admiro
Dizer não sei: o seu direito braço
87 Ao dorso preso vi, e ao peito diro

O outro, de grilhão no estreito laço,
Que com círculos cinco lhe cercava
90 Do enorme corpo o descoberto espaço.

“Esse réprobo” — diz Virgílio — “ousava
Medir forças com Jove soberano:
93 Eis o fruto do orgulho, que o danava!

“Era Efialto: executou seu plano,
Quando aos Deuses gigantes aterraram.
96 Jamais os braços mover pode o insano”.

“Os meus olhos, ó Mestre, assaz folgaram,
De Briaréu se vissem desmarcado
99 As formas” vozes minhas lhe tornaram.

“Anteu verás”, — me diz — muito afamado:
Stá solto, fala e nos demora perto,
102 Há de ao fundo levar-nos de bom grado.

“Remoto esse outro fica, e tem por certo
Que em grilhões e estatura àquele iguala:
105 Mais fero em vulto, em mal é mais esperto”.

Jamais um terremoto a torre abala
Em convulsões tão rápido, tão forte,
108 Como Efialto a mover-se. Eu já sem fala,

Assombrado, cuidei ter perto a morte;
E de pavor sem dúvida expirara,
111 Se ele preso não fosse, e de tal sorte.

Presto ao lugar seguimos, onde para
Anteu: fora a cabeça, em cinco braças
114 À borda sobreleva, o que separa.

“Tu, que no val feliz, aonde as graças
E as palmas de Cipião colheu da glória,
117 Quando Aníbal vexavam só desgraças,

“Mil leões apresaste por memória;
Que, aos irmãos se ajudaras na alta guerra,
120 Se crê triunfo registrasse a história

“Dos fortes filhos da fecunda Terra!
Ao fundo transportar-nos sê servido,
123 Onde ao Cocito o frio as águas cerra:

“Te hemos a Tifo e a Tício preferido.
Dar pode este varão o que mais se ama:
126 Curvando-te compraz ao seu pedido.

“No mundo pode restaurar-te a fama,
Pois vive e ainda longa vida espera,
129 Salvo se a Graça antes do tempo o chama”.

Falara o Mestre. Anteu não considera:
Toma-o logo nas mãos, que lesto of’rece
132 E a que sentira Alcide a força fera.

Quando entre os dedos seus Virgílio vê-se,
Diz-me: “Faze-te prestes, que eu te abrace!”
13S Ao Mestre o meu querer pronto obedece.

Quem Carisenda, em seu pendor olhasse,
Cuidara, ao passar nuvem, que iminente
138 Ruína ao lado oposto ameaçasse:

Tal Anteu parecia de repente
Do corpo ao menear; quando o inclinava,
141 Estrada eu preferia diferente.

Mas de leve no fundo nos pousava,
De Judas e de Lúcifer assento.
A postura deixando, que o dobrava,

145 Qual mastro empertigou-se num momento.

 

4-6. Assim etc., a lança de Peleu e do seu filho Aquiles curava as feridas que produzia. — 16-18. A de Orlando etc., a trompa de Orlando, ferido em Roncisvalle foi ouvida a oito milhas de distância por Carlos Magno. — 41.Montereggion, castelo do val d’Elsa. — 63. Prisões, habitantes da Frísia, de elevada estatura. — 67. Rafael, etc., palavras cujo significado é ignorado [NE: No original: «Raphèl mai amècche zabi almi»]. — 77. Nemrod, que edificou a torre de Babel, da qual adveio a confusão das línguas. — 94. Efialto, um dos gigantes que moveram guerra aos deuses. — 98. Briareu, gigante com cem mãos. — 100. Anteu, gigante que lutou com Hércules. — 124. Tifo e Tício, outros gigantes. — 136. Carisenda, torre pendente de Bolonha.

 

 

[XXXII]

Os dois Poetas se encontram no círculo, em cujo pavimento de duríssimo gelo estão presos os traidores. O círculo é dividido em quatro partes; na Caina, de Caim, que matou o irmão, estão os traidores do próprio sangue; na Antenora, de Antenor, troiano que ajudou os Gregos a conquistar Troia, os traidores da pátria e do próprio partido; na Ptoloméia, de Ptolomeu, que traiu Pompeu, os traidores dos amigos; na Judeca, de Judas, traidor de Jesus, os traidores dos benfeitores e dos seus senhores.