Dante fala com vários danados, enquanto atravessam o gelo procedendo para o centro.
SE usasse rimas ásperas, rouquenhas,
Próprias do poço lôbrego e tristonho,
3 Que do inferno sustém as outras penhas,
Melhor ideia do lugar medonho
Dera; mas tal vantagem me falece.
6 O meu conceito, pois, tímido exponho.
É árdua empresa, em que o ânimo esmorece
O centro descrever do mundo inteiro:
9 Para empenho infantil ser não parece.
Das Musas se ajudar poder fagueiro,
Como a Anfião em Tebas o mostraram,
12 Fiel serei dizendo e verdadeiro.
Ó malfadada turba, a quem tocaram
Deste abismo os castigos, bruto gado
15 Sendo, fados melhores te aguardaram.
Descidos nós ao poço negregado
Das plantas muito abaixo do gigante,
18 O alto muro mirava-lhe espantado,
Quando ouvi: “Tem cuidado, ó caminhante!
Não calques de irmãos teus desventurados
21 As frontes”. Eu, voltando-me, adiante
E sob os pés, de um lago vi gelados
Os planos tanto, que os dizer podia,
24 Não de água, de cristal, porém, formados.
Do Danúbio a corrente não seria
Tanto em Áustria no inverno enrijecida,
27 Nem do Tanais, na zona sempre fria.
Do lago sobre a face empedernida
Caísse ou Tambernich ou Pietrana:
30 Não fora ao peso enorme combalida.
Qual rã, que no paul coaxando, ufana
Um pouco emerge, enquanto a camponesa
33 Sonhando está que a respigar se afana:
Tais gemiam as sombra na frieza
Té a cintura lívidas, batendo,
36 Como a cegonha, os queixos com presteza.
Para o seio a cabeça lhes pendendo,
Do frio a boca indícios claros dava,
39 Nos olhos a tristeza está-se vendo.
Quando atentei no quanto em roda estava,
Duas vi aos meus pés, em tal abraço,
42 Que, travado, o cabelo se enleava.
“Quem sois que os peitos nesse estreito laço
Apertais?” — perguntei. Então, voltando
45 Os colos para trás, um curto espaço
Me encararam; porém dos olhos quando
Lhes brotavam as lágrimas, a neve
48 Cerrou-os entre os cílios as coalhando.
Nunca dois lenhos tanto unidos teve
Cavilha: eles, de irados, se investiram,
51 Quais capros, que a marrar o furor leve.
Terceiro, a quem, geladas lhe caíram
As orelhas, com rosto baixo fala:
54 “Por que teus olhos sôfregos nos miram?
“O par desejas conhecer, que cala?
Próprio lhes fora e ao genitor Alberto
57 O vale, onde o Bisênzio faz escala.
“De um só ventre nasceram; tu, por certo,
Não acharás mais di’nos em Caína,
60 De ter de gelo o vulto seu coberto,
“Nem esse, a quem de Artus destra assassina
De um bote o peito e a sombra transpassara;
63 Nem Focácia e o que a fronte agora inclina,
“A vista me tolhendo, e se chamara
Mascheroni Sassol, bem conhecido:
66 Se és Toscano, esse nome te bastara.
“Fique, por vozes escusar, sabido
Que Pazzi eu sou e que, em Carlin chegando,
69 Serei por menos criminoso havido”.
Mil outros via roxos tiritando:
Desde então de arrepios sou tomado
72 Ante gélidos vaus, este lembrando,
E o centro demandando, em que firmado
Do universo gravita todo o peso,
75 Trêmulo havia a treva eterna entrado,
Eis, sem querer, da sorte ou por desprezo,
Entre tantas cabeças caminhando,
78 A face de um calquei no gelo preso.
“Por que me pisas?” reclamou chorando,
“De Monte Aperti ao feito por vingança
81 Inda me estás desta arte molestando?
“Mestre, espera-me aqui” — disse — “Me lança
Em dúvida este mau: solvê-la quero.
84 Eu depois correrei, se houver tardança”.
Parou; e ao pecador falei, que fero,
Duras blasfêmias proferia agora:
87 “Quem és tu, que me increpas tão severo?”
“E tu mesmo quem és, que na Antenora”
Tornou — “dessa arte as faces me espezinhas?
90 Um vivo, certo, menos cru me fora”.
“Sou vivo e posso entre as memórias minhas
Do nome teu apregoar a fama”
93 Respondi — “se te aprazem louvaminhas”.
“Só quer o olvido quem te fala” — exclama
“Vai-te! De sobra já me estás molesto.
96 Aqui não cabe da lisonja a trama”.
Travei da nuca ao pecador infesto
E disse: — “Ou perderás todo o cabelo,
99 Ou quem tu foste me declara presto!”
“Mil vezes podes arrancar-me o pelo,
De ver-me a face não terás o gosto
102 E de saber qual foi meu nome e apelo”.
As mãos lhe havia no cabelo posto;
Da guedelha uma parte arrepelara:
105 Ganindo ele abaixava sempre o rosto,
Quando outro brada: “Ó, Boca, isso não para?
Pois os queixos bater não te é bastante?
108 Já lates! Que demônio em ti dispara?”
“Não mais, ímpio traidor” — no mesmo instante
Respondo — “exijo; o que de ti stou vendo
111 Contarei por te ser mais infamante”.
“Vai! Se saíres deste abismo horrendo,
Quanto queiras refere, do apressado,
114 Que de língua assim foi, não te esquecendo.
“Ouro chora, que a França lhe há doado.
Eu vi — podes dizer — Boso Duera
117 De outros muitos no gelo acompanhado.
“Se perguntarem quem aqui mais era,
Olha e terás ao lado Beccaria,
120 A quem Florença degolar fizera.
“Gian del Soldanier, há pouco eu via
Além com Ganellon e Tribaldello.
123 Que abriu Faenza, enquanto se dormia”.
Deixâmo-lo; mas súbito de gelo
Postos em furna vi dois condenados:
126 Cabeça de uma a de outra era cabelo.
Como a pão se agarrando os esfaimados,
Por cima um no outro os dentes aferrava
129 Onde a cerviz e o crânio estão ligados.
Qual Tideu, que a dentadas lacerava
De Menalipo a fronte enraivecido,
132 Ele o cérebro e os ossos mastigava.
“Tu, que, de ódio tão sevo possuído,
Te encarniças feroce no inimigo,
135 “Dize — exclamo — por que foi produzido.
“Se eu souber que a justiça está contigo
E houver da culpa e réu conhecimento,
No mundo a compensar-te ora me obrigo,
139 Se não perder a língua o movimento”.
11. Anfião, foi auxiliado pelas Musas na edificação dos muros de Tebas. — 27. Tanais, o rio Don, na Rússia. — 55-60. O par etc, filhos de Alberto degli Alberti, os quais brigaram e se mataram reciprocamente. — 61. Nem esse Mordrec, filho do rei Artur, morto pelo pai. — 63. Focaia, dei Cancellieri matou alguns parentes do partido inimigo. — 65. Mascheroni Sassuol, florentino, assassinou traiçoeiramente um seu primo. — 68. Pazzi, Comicion dei Pazzi matou o seu primo Ubertino. — Carlin, Carlino dei Pazzi traiu os seus companheiros, entregando várias fortalezas aos florentinos Negros. — 88. Antenora, onde são punidos os traidores da pátria, de Antenor, troiano, que favoreceu os gregos que sitiavam Troia. — 106. Boca, Bocca degli Abati, na batalha de Montaperti (1260) causou a derrota dos florentinos, passando ao inimigo. — 116. Boso Duera, traiu o rei Manfredo, por ter recebido dinheiro de Carlos d’Anjou. — 119. Beccaria, de Pavia, legado pontifício na Toscana, foi decapitado pelos florentinos, na suposição de ter favorecido os gibelinos. — 121. Gian del Soldanier, gibelino, que em 1266 chefiou uma rebelião em Florença. — 122. Ganellon, Gano de Mogunça, traidor de Carlos Magno. — Tribaldello, faentino, traiu a sua cidade natal Faenza.
[XXXIII]
O conde Ugolino della Gherardesca conta a Dante a sua trágica morte na torre dos Gualandi. Na Ptoloméia o Poeta encontra o frade Alberico de Manfredi, o qual lhe explica que a alma dos traidores cai no Inferno logo depois de consumada a traição e que um diabo toma conta do corpo até chegar o tempo do seu fim no mundo.
DO fero cevo os lábios desprendendo,
Na coma o pecador os enxugava
3 Desse crânio, a que estava atrás roendo.
“Queres de infanda mágoa” — começava —
Renove a dor, que, só pensando a mente,
6 Antes que falte, o coração me agrava.
“Mas se a voz minha deve ser semente,
Que ao traidor, que eu devoro a infâmia brote.
9 Falar, chorar, verás conjuntamente.
“Não sei quem sejas, não sei como note
Tua presença aqui, por Florentino
12 Te ouvindo a língua, é força que te adote.
“Saber deves que fui Conde Ugolino,
Que Arcebispo Rogério aquele há sido:
15 Direi qual nos juntou cruel destino.
“Contar não hei mister como iludido
Por minha confiança, em cárcer posto.
18 Fui morto por maldade deste infido.
“Não conheces, porém, que atroz desgosto
O meu fim precedera: atenção presta,
21 Quanto ofendido fui verás exposto.
“Por vezes da prisão por breve fresta,
Torre da fome — após o meu tormento,
24 Que há de a outros ainda ser funesta
“Brilhava a lua em pleno crescimento,
Quando o véu do futuro horrível sonho
27 Rasgou, do exício meu pressentimento.
“Este, como senhor, então suponho
Ao monte, que ver Lucca a Pisa obstava
30 Lobo e pequenos seus correr medonho.
“Magros cães, destros, feros açulava
Dos Galandis, Sismondis e Lanfrancos
33 A companha, que à frente cavalgava.
“Em breve o pai e os filhos, lassos, mancos,
Já dos famintos galgos mal feridos,
36 Dar pareciam últimos arrancos.
“Desperto ao primo alvor; dos meus queridos
Filhos que eram comigo, choro soa:
39 Pedem pão, stando ainda adormecidos.
“És cruel, se a tua alma não magoa
O prenúncio da dor, que me aguardava:
42 Se não choras, que pena há que te doa?
“Despertaram; e a hora já chegava
Em que alimento escasso nos traziam:
45 O sonho a cada qual nos aterrava.
“Da horrível torre à porta então se ouviam
Martelos cravejar: eu mudo e quedo
48 Nos filhos encarei, que esmoreciam.
“Não chorava; era o peito qual penedo.
Choravam eles, e Anselmuccio disse:
51 Assim nos olhas, pai? Do que hás tu medo?”
“Nem lágrimas, nem voz dei, que se ouvisse,
No dia e noite, que seguiu-se lenta,
54 Até que ao mundo novo sol surgisse.
“Quando a luz inda escassa se apresenta
No doloroso carcer, meu semblante
57 Nos quatro rostos seus se representa.
“Mordi-me as mãos de angústia delirante.
Eles, cuidando ser a fome o efeito,
60 De súbito e com gesto suplicante,
“Disseram: “Menos mal nos será feito
Nutrindo-te de nós, pai; nos vestiste
63 Desta carne: ora sirva em teu proveito”.
“Contendo-me, evitei lance mais triste.
Em silêncio dois dias se passaram. ..
66 Ah! por que, terra esquiva, não te abriste?
“Do quarto dia os lumes clarearam:
Gaddo caiu-me aos pés desfalecido:
69 “Pai me acode!” os seus lábios murmuraram.
“Morreu; e, qual me vês, eu vi, perdido
O sizo, os três, ao quinto e ao sexto dia,
72 Um por um se extinguir exinanido.
“Apalpando os busquei — cego os não via
Dois dias, os seus nomes repetindo:
75 Da fome mais que a dor, pôde a agonia”.
Calou-se e os torvos olhos retorquindo,
Como de antes cravou no crânio os dentes
78 E os ossos, qual mastim, foi destruindo.
Ah! Pisa, opróbrio aos povos residentes
Na bela terra, onde o si ressona!
81 Pois te não vêm punir vizinhas gentes.
Presto a Capraia mova-se e a Gorgona
Do Arno à foz, entupindo-lhe a saída
84 Teu povo assim pereça, que se entona.
E se foi a Ugolino atribuída
De entregar teus castelos à maldade,
87 Por que à prole em tal cruz tirar a vida?
Tebas moderna! Pela tenra idade
Ugoccione e Briga tá insontes eram
90 E os irmãos, em que usaste a feridade.
Seguindo além, os olhos se of’receram
Outros, que em gelo têm duro tormento:
93 Destes os rostos para trás penderam.
Lhes causa o pranto ao pranto impedimento;
E a dor, que desafogo em vão procura,
96 Lhes cresce, recalcada, o sofrimento.
As lágrimas coalhando em neve dura
Formam nos olhos seus vítrea viseira,
99 E todo o espaço interior se obtura.
Conquanto quase a faculdade inteira
De sentir no meu rosto se embotasse
102 Dês que era nessa perenal geleira,
Cuidei que um sopro me tocara a face.
“Do que este sopro” — inquiro — “se origina?
105 Se aqui não há vapor, donde ele nasce?”
E o Mestre: “Irás onde a resposta di’na
Os teus olhos darão; e ali chegando
108 O que virem do sopro a causa ensina”.
Dos tristes padecentes um gritando,
Nos disse: “Almas cruéis, almas danadas
111 (Pois que no extremo abismo estais penando)
“Tirai-me aos olhos gélidas camadas,
Por desafogo dar-me ao peito aflito,
114 Antes de eu ter as lágrimas coalhadas”.
“Se o lenitivo queres, que tens dito,
Teu nome diz: se não me desobrigo,
117 Desça eu do gelo ao pelágio maldito”.
Respondeu logo: “Eu sou frei Alberigo,
Pelos pomos famoso do mau horto:
120 Aqui recebo tâmara por figo”.
“Oh!” — disse — “porventura tu stás morto?”
“Não sei como é meu corpo lá no mundo”,
123 Tornou “e se vivendo tem conforto.
“Este condão possui sem ter segundo
Ptoloméia: aqui star alma é frequente
126 Antes que a mande Atropos ao profundo.
“E por que mais de grado e prontamente
Estas vidradas lágrimas romovas,
129 Sabe que apenas de traição a mente
“Inquina-se, como eu, por funções novas
Passa o corpo a demônio, que o governa
132 Té completar da vida últimas provas:
“Rui a alma, entanto, à lôbrega cisterna,
Talvez na terra folgue o corpo ledo,
135 Cuja sombra após mim trêmula inverna.
“Se és recém-vindo, sabe que esse tredo
É Branca d’Ória: há prolongados anos
138 Jaz enleado no infernal enredo”.
“Este é” tornei “mais um dos teus enganos:
Desfruta alegre Branca d’Ória a vida
141 E come e bebe e dorme e veste panos”.
“Dos Malebranche em cava denegrida,
Não era“ disse ainda “em pez viscoso
144 Alma de Miguel Zanche submergida,
“E um demônio esse infame criminoso
Deixou no corpo; o mesmo um seu parente,
147 Que de traição foi sócio proveitoso.
“Das mãos auxílio presta ora clemente,
Me abrindo os olhos!” Tal não fiz; que errara
150 Com tal vilão me havendo cortesmente.
Ah! Genoveses! raça impura e avara,
Que nos costumes tem mancha tamanha!
153 Quem da face da terra vos lançara!
Junto ao pior esp’rito da Romanha
De entre vós um traidor vi tanto imundo,
Que a alma sua em Cocito já se banha,
157 Enquanto o corpo vida finge ao mundo.
13. Conde Ugolino, della Gherardesca, de Pisa, foi acusado pelo arcebispo de Pisa, Ruggiero degli Ubaldini, de ter traído a sua cidade natal. Preso com dois filhos e dois netos numa torre, onde todos morreram de fome. — 29.Monte, San Giuliano, entre Pisa e Luca. — 32. Galandis etc., famílias pisanas. — 118. Frei Alberigo, Manfredi, de Faenza, convidou dois parentes seus a comerem na sua casa e, no fim do jantar, ao pedir que trouxessem a fruta, os criados penetraram na sala e mataram os hóspedes. — 137. Branca d’Ória, genovês, convidou o sogro Miguel Zanche a comer em sua casa e matou-o para usurpar o castelo de Logodoro.
[XXXIV]
Na Judeca estão os traidores dos seus senhores e benfeitores. No meio está Lúcifer, que com três bocas dilacera três entre os mais horrendos pecadores: de um lado Judas, do outro Bruto e Cássio, que mataram a Júlio César. Virgílio, ao qual Dante se agarra, desce pelas costas peludas de Lúcifer até o centro da terra. Dai seguindo o murmúrio de um regato, saem e avistam as estrelas no outro hemisfério.
VEXILIA regis prodeunt inferni
Contra nós; pra diante os olhos tende
3 Disse o Mestre, se a vista já discerne”.
Como quando no ar névoa se estende,
Ou ao nosso hemisfério a noite desce,
6 Um moinho distante a atenção prende.
Um edifício igual verme parece.
Tanto era o vento, que eu busquei guarida
9 Atrás do Mestre, que outra não se of’rece.
À parte era chegado, onde imergida
Cada alma em gelo está (tremo escrevendo),
12 Bem como aresta no cristal contida.
Erguidas umas stão, outras jazendo
Qual sobre a fronte ou sobre os pés firmada
15 Qual com seus pés o rosto arco fazendo.
Quando distância tal foi superada,
Que aprouve ao Mestre me tornar patente
18 A criatura bela ao ser formada,
Se afastando de mim, disse: “Detém-te!
Eis Satanás! Eis o lugar horrendo
21 Em que deves te armar de esforço ingente!
Quanto assombrei-me aquele aspecto vendo
Não inquiras leitor: não te expressara
24 Com verbo humano o que encarei tremendo.
Não morto, porém vivo não ficara.
Qual me achava te pinte a fantasia,
27 Se morte ou vida em mim se não depara!
Do aflito reino o imperador eu via:
Do gelo acima o seio levantava.
30 A um gigante igualar eu poderia,
Se um gigante a um seu braço eu comparava!
Do todo vede a proporção qual fora,
33 Quando tão vasta a parte se ostentava!
Quem foi tão belo, quanto é feio agora,
Contra o seu criador a fronte alçando
36 Vera causa é do mal, que o mundo chora.
Qual meu espanto há sido em contemplando
Três faces na estranhíssima figura!
39 Rubra cor na da frente está mostrando;
Das outras cada qual, da pádua escura
Surdindo, às mais ajunta-se e se ajeita
42 Sobre o crânio da infanda criatura.
Entre amarela e branca era a direita;
A cor a esquerda tem que enluta a gente
45 Do Nilo às margens a viver afeita.
Via asas duas sob cada frente,
Tão vastas, quanto em ave tal convinham:
48 Velas iguais não abre nau potente.
Plumas, como em morcego, elas não tinham;
De contínuo agitadas produziam
51 Os três gélidos ventos, que mantinham
Os frios, que o Cocito enrijeciam.
Chorava por seis olhos, por três mentos
54 Pranto e sanguínea espuma se espargiam.
Qual moinho, com dentes truculentos
Cada boca um prexito lacerava:
57 Padecem três a um tempo assim tormentos.
Mas ao da frente a pena se agravava,
Porque das garras o furor constante
60 Do dorso a pele ao pecador rasgava.
“O que esperneia em dor mais cruciante”
O Mestre disse: “É Juda Iscariote:
63 Prende a cabeça a boca devorante.
“Dos dois, que estão pendendo, coube em dote
A negra face Bruto: sem gemido
66 Se estorce da dentuça a cada bote.
“O outro é Cássio, de membros bem fornido.
Mas a partir a noite insta, assomando:
69 Aqui já tudo havemos conhecido”.
Do Mestre o colo enlaço por seu mando.
Ele em lugar e tempo apropriado,
72 De Lúcifer as asas se alargando,
Ao peito hirsuto havia-se agarrado;
Depois de velo em velo descendia
75 Entre os ilhais e o lago congelado.
Chegado àquela parte, em que se unia
Da coxa o extremo dos quadris à altura,
78 Com grande ofego e mor abalo o Guia
Pôr a fronte onde os pés firmou procura,
Como quem sobe às crinas agarrado:
81 Assim tornar cuidei do inferno à agrura.
“Segura-te! Por tais degraus alado”
Lasso Virgílio já disse anelante,
84 “Deste império do mal serás tirado”.
De uma rocha então sai por fresta hiante;
Sobre a borda me assenta cauteloso;
87 Depois a mim se acerca vigilante.
Olhos alcei julgando curioso
Ver Lúcifer, qual de antes o deixara;
90 De pernas para o ar vi-o em seu pouso!
De que enleio a minha alma se tomara,
Deixo ao vulgo pensar pouco instruído,
93 Que o ponto não compreende, em que eu passara.
“Eia! Vamos!” o Mestre diz querido,
“Longa jornada e mau caminho temos;
96 E a meia terça o sol já tem corrido”.
De paço em salas nós de andar não temos;
Mas de antro natural em solo duro
99 Os passos nossos dirigir devemos.
“Antes que eu deixe em todo o abismo escuro
Erro, em que estou, meu Mestre, desvanece”
102 Disse erguendo-me um pouco mais seguro.
“Onde o gelo? Por que nos aparece
Assim Lúcifer posto? E já tão presto,
105 Cessando a noite, o sol nos esclarece?”
“Tu cuidas ser, do que ouço é manifesto
Lá no centro, onde ao pelo me prendera
108 Do que atravessa o mundo, verme infesto.
“Ali stiveste, enquanto descendera
Ao voltar-me do ponto além tens sido,
111 Que o peso atrai na terreal esfera.
“Foste àquele hemisfério transferido,
Que se opõe ao que a terra está lançado,
114 Em cujo excelso cume há padecido;
“Quem nasceu, quem viveu sem ter pecado
Sobre uma esfera estreita os pés agora,
117 Da Judeca ao reverso, tens firmado.
“É noite lá; nós temos luz nesta hora;
E o que nos velos seus nos deu a escada
120 Na postura se firma, em que antes fora.
“Caiu aqui da altura sublimada,
E a terra, que se alçava entumescente,
123 Do mar fez véu e veio de enfiada
“Para o nosso hemisfério de repente.
Também fugiu de medo, a que se avista;
126 Vácuo deixando aqui, fez monte ingente”.
Lá no profundo há um lugar, que dista
Tanto de Belzebú, quanto se estende
129 Seu sepulcro: ali não penetra a vista.
Revela-o som de arroio, que descende
Por brecha do rochedo, que escavara,
131 Em torno serpeando, e pouco pende.
Para voltar do mundo à face clara
Nessa vereda escusa penetramos:
135 De nós nenhum de repousar cuidara.
Virgílio e eu, logo após, nos elevamos,
Té que do ledo céu as cousas belas
Por circular aberta divisamos:
139 Saindo a ver tornamos as estrelas.
1. Vexilas etc. — Aparecem os vexilos do rei do Inferno. É o primeiro verso de um hino da Igreja. — 38. Três faces etc., Lúcifer tem três faces em contraposição à Trindade divina.
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