Dante encontra Pedro des Vignes, de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em relação aos suicidas. Vê depois o senense Lano e o paduano Jacob de Sant’Andréa. Ouve, enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males da sua pátria.

 

NÃO stava ainda Nesso do outro lado,
Quando nós por um bosque penetramos,
3 Dos vestígios de passos não marcado.

Não fronde verde, mas escura, ramos
Não lisos, mas travados e nodosos,
6 Não pomos, puas com veneno achamos.

Por silvados mais densos, mais umbrosos,
Do Cecina a Corneto, a besta brava,
9 Não foge, agros deixando deleitosos.

Das Hárpias o bando aqui pousava.
Que expeliram de Strófade os Troianos,
12 Vaticinando o mal, que os aguardava.

Asas têm largas, colo e rosto humanos,
Garras nos pés, plumoso e ventre enorme,
15 Soam na selva os uivos seus insanos.

E disse o Mestre: “Convém já te informe
Que o recinto segundo vais entrando,
18 Onde verás spetáculo disforme,

“Até que ao areal chegues infando.
Atenta! E darás fé à narrativa,
21 Que fiz, ainda lá no mundo estando”.

Em toda parte ouvi grita aflitiva:
Como não via quem assim gemesse,
24 Parei e a torvação se fez mais viva.

Creio que o Mestre cria então que eu cresse
Que esses lamentos enviava aos ares
27 Uma turba, que aos olhos se escondesse;

Pois disse-me: “De um tronco se quebrares
Um só raminho, ficarás ciente
30 Desse erro em que se enleiam teus pensares”. —

O braço estendo então e prontamente
Vergôntea quebro. O tronco, assim ferido
33 “Por que razão me arrancas?” diz fremente.

De sangue negro o ramo já tingido,
“Por que me rompes?” — prosseguiu gemendo —
36 Assomos de piedade nunca hás tido?” —

“Fui homem, hoje o lenho, que estás vendo!
Mais compassiva a tua mão seria
39 Se alma aqui fosse de um dragão tremendo”.

Como acha verde, quando se incendia
Num extremo s’estorce, no outro estala,
42 Chiando e a umidade fora envia:

Daquela arvora assim brotava a fala,
E o sangue; a minha mão já desprendera
45 O ramo, e, entanto, o horror no peito cala.

“Se de antes ele acreditar pudera”
Lhe torna o sábio Mestre “alma agravada,
48 O que eu nos versos meus lhe descrevera,

“Por te ferir sua mão não fora alçada.
Não crera eu mesmo, e tanto que o induzira
51 Ao feito, que me pesa e desagrada.

“Diz-lhe quem foste e as dúvidas lhe tira.
O mal te compensando, a fama tua
54 Há de avivar no mundo, a que retira”. —

E o tronco: “Alívio tanto à dor, que atua,
Causais, que de bom grado eu já explico:
57 Ao triste dai que a mágoa exprima sua.

Fui quem do coração de Frederico
As chaves tive e usei com tanto jeito,
60 Fechando e desfechando que era rico

“Da fé com que a mim só rendeu seu peito
No glorioso cargo fui constante,
63 Força, alento exauri por seu proveito.

“A torpe meretriz, que, a todo instante
Ao régio paço olhos venais volvendo,
66 Morte comum, das cortes mal flagrante,

“Contra mim ódio em todos acendendo,
Por eles acendeu iras de Augusto,
69 Que honras ledas tornou-me em luto horrendo.

“Ressentindo-me então do mundo injusto,
Por fugir seus desdéns, buscando a morte,
72 Comigo iníquo fui eu, que era justo.

“Pelo tronco em que peno desta sorte,
Que jamais infiel hei sido, juro,
75 Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,

“De vós o que voltar à luz adjuro
Que a memória me salve ao nome honrado,
78 Que vulnerou da inveja o golpe duro”. —

O vate inda esperou. — “Pois se há calado”. —
Disse-me “fala, se tu mais desejas
81 E pede-lhe: do tempo és apressado”. —

Tornei: “Tu mesmo inquires quanto vejas
Mais convir-me; que eu sinto-me inibido
84 Por mágoas, que em minha alma são sobejas”.

Ele então: “— Se o desejo teu cumprido
For por este homem, nobremente usando,
87 Te apraza, encarcerada alma, ao pedido

“Nosso atender, e como nos mostrando
Se liga ao tronco o esp’rito e se é factível
90 Soltar-se um dia, o vínculo quebrando”. —

Soprou de rijo o lenho; e perceptível
Aquele som desta arte nos dizia:
93 — “Resposta breve dou quanto é possível.

“Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
96 Ao círc’lo sete Minos logo a envia.

“Na selva tomba e aonde acaso veio,
E como o seu destino lhe consente,
99 Aí, qual grão germina de centeio,

“Vai crescendo até ser árvore ingente:
As Hárpias, que a fronde lhe devoram,
102 Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.

“Hemos de ir onde os corpos nossos moram,
Como as outras, mas sem que os revistamos,
105 Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.

“Arrastados serão por nós: aos ramos
Pendentes ficarão nesta floresta
108 Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos”. —

Ouvíamos ainda a sombra mesta,
De mais dizer cuidando houvesse o intento.
111 Eis sentimos rumor, que nos molesta.

Assim monteiro, à caça pouco atento,
Do javardo e dos cães ouve o estrupido
114 E das ramadas o estalar violento.

Súbito vejo à esquerda, espavorido,
Fugindo esp’ritos dois nus, lacerados,
117 Ramos rompendo ao bosque denegrido.

“Ó morte!” um clama — “acode aos desgraçados!”
O segundo, que tardo se julgava:
120 “Ninguém, ó Lano, os pés tanto apressados

“De Toppo nas refregas te observava!”
Porém, de todo já perdido o alento,
123 Numa sarça acolheu-se que ali stava.

Corria, enchendo a selva, em seguimento
De famintas cadelas negro bando,
126 Quais alões da cadeia ao todo isento

A sombra homiziada se enviando,
A fez pedaços a matilha brava,
129 E logo após levou-os ululando.

Então meu Guia pela mão me trava,
Conduz-me à sarça, que se em vão carpia
132 Pelas roturas, que o seu sangue lava.

“Ó Jacó Santo André!” triste dizia —
“Podia eu ser-te acaso amparo certo?
135 Em mim por crimes teus que culpa havia?” —

Disse-lhe o Mestre, quando foi mais perto:
“Quem és tu, que o teu sangue e mágoas exalas
138 Por golpes tantos, de que estás coberto?” —

Tornou-lhe: “Ó alma que dessa arte falas
E tu que o dano vês, que me separa,
141 Da fronde minha, agora amontoá-las

“Dignai-vos junto à rama, que as brotara.
Na cidade nasci que por Batista
144 Deixou prisco patrão, que da arte amara

“Sempre pelos efeitos a contrista.
E se do Arno na ponte não restasse
147 Um vestígio, que traz seu culto à vista

“Talvez ela à existência não tornasse,
E quem das cinzas, que Átila há deixado,
Levantou-a os esforços malograsse.

151 “Na minha própria casa hei-me enforcado”. —

 

58. Fui quem do coração de Frederico etc., Pedro des Vignes, secretário de Frederico II que se suicidou por ter sido acusado de trair o seu rei. — 118. Um clama etc., Lano de Siena, que morreu em Pieve del Toppo, na batalha entre Senenses e Aretinos. — 119. O segundo etc., Giacomo di S. Andrea, morto por Ezzelino de Romano. — 143. Por Batista etc., Florença, antes de tornar-se cidade protegida por S. João Batista, tinha como protetor Marte, do qual restava uma estátua sobre a ponte Vecchio.

 

 

[XIV]

O terceiro compartimento no qual agora chegam os Poetas é um campo de areia ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra Deus, contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneo, que desafia a Deus. Seguindo, Dante e Virgílio chegam a um regato sanguíneo. Deste e dos outros rios do Inferno Virgílio narra a origem misteriosa.

 

DE amor do pátrio ninho comovido,
Essas dispersas folhas reunindo,
3 À sarça as dei, que tinha a voz perdido.

Ao limite, dali, fomos seguindo,
Em que parte o recinto co’ terceiro,
6 Onde a justiça horrível stá punindo.

Para expressar-lhe o aspecto verdadeiro,
Eu digo que à charneca então chegamos,
9 De plantas nua em seu espaço inteiro.

Da dor a selva a cerca dos seus ramos,
Como o fosso a torneia sanguinoso:
12 Ali, rente co’a borda, os pés firmamos.

O plaino era tão árido e arenoso,
Como o que de Catão os pés outrora
15 Na jornada calcaram fadigoso.

Ó vingança de Deus, quem não te adora
Nos tremendos efeitos meditando,
18 Que eu próprio olhei, que a minha voz memora!

De almas nuas eu via infindo bando,
Por modos diferentes torturadas,
21 Miseráveis, mesquinhas pranteando.

Jaziam sobre o dorso umas deitadas,
Outras, dobrando os membros, se assentavam,
24 Muitas andavam sempre aceleradas.

Maior a turba destas se mostrava,
Menor a que, prostrada no tormento.
27 Maior dor nos lamentos denotava.

Largas flamas com tardo movimento
Choviam do areal em todo o espaço,
30 Qual neve em serra, quando é mudo o vento.

Na Índia sobre o exército, já lasso,
Fogos cair viu Alexandre outrora,
33 No chão ardendo livres de embaraço.

Que aos pés no solo os calquem sem demora
Suas falanges avisado ordena:
36 Matá-los um por um fácil lhes fora.

Assim baixava, para agravo à pena,
Lume eterno que à areia se prendia,
39 Como à isca a fagulha mais pequena.

Cada qual sem repouso se estorcia,
A um lado e a outro os braços revolvendo
42 A cada chama, que do ar chovia.

“Mestre” — falei — “que vais tudo vencendo,
Somente exceto a legião furente,
45 Que em Dite a entrada estava-nos tolhendo,

“Diz quem seja a grã sombra, que não sente,
Ao parecer, o incêndio, e não domado
48 Pela chuva, já rápido, insolente?” —

Reconhecendo o próprio condenado
Que da minha pergunta fora objeto,
51 “Morto sou qual fui vivo!” clama irado.

“Que Jove canse o armeiro seu dileto,
De quem tomou fremente o agudo raio
54 Para em mim saciar rancor abjeto;

“Que os seus cíclopes sintam já desmaio
De Mongibello na oficina negra,
57 Aos gritos — “Bom Vulcano, acode ou caio!” —

“Como fez na peleja lá de Flegra;
Que me fulmine de ódio e sanha cheio:
60 No gozo da vingança em vão se alegra”. —

Virgílio então, com voz, como não creio
Lhe ter ouvido, sonorosa e forte,
63 Bradou-lhe: “Capaneu, pois no teu seio

“Não mitiga a soberda a própria morte,
Sofre mor pena; igual não há castigo
66 Ao que a raiva te inflige desta sorte!” —

Para mim se voltou; com gesto amigo
Falou: — “Dos Reis que Tebas sitiaram
69 Foi um; de Deus se declarara imigo.

“Os crimes seus no inferno se agravaram;
Já disse-lhe, as blasfêmias, os furores
72 Digno prêmio em seu peito lhe deparam.

“Vem agora após mim; pelos fervores
Não caminhes da areia incandescente;
75 Da selva ao longo evitas-lhe os ardores”. —

Fomos andando, cada qual silente,
Até onde jorrar do bosque eu via
78 Rubro arroio, que lembro inda tremente.

Do Bulicame qual o que saía,
Das pecadoras em serviço usado:
81 Tal pela adusta areia este corria.

As margens e orlas são de cada lado
Feitas de pedra e assim também seu leito:
84 Caminho ali notei ao passo azado.

“De quanto aqui te conhecer hei feito,
Depois que atrás deixamos essa porta,
87 A cujo ingresso todos têm direito,

“Não se há mostrado à tua vista absorta
Maravilha que iguale a desta veia,
90 Em que a flama adurente fica morta”. —

O Mestre diz e assim desejo ateia
De rogar-lhe me preste esse alimento,
93 Que excitado, o apetite haver anseia.

“Do mar em meio jaz” — ouvi-lhe atento —
“Destruído país, Creta afamada.
96 Com seu rei foi do mal o mundo isento.

“Alça-se ali montanha outrora ornada
De fontes e verdor: chama-se Ida:
99 Erma está, como cousa desprezada.

“Foi ao filho pra berço preferida
De Réia, que abafava o seu vagido
102 Fazer mandando grita desmedida.

“Nas entranhas do monte um velho erguido
Está: voltando à Damieta as costas,
105 Como a espelho, olha Roma embevecido.

“De ouro faces e fronte são compostas,
De pura prata são braços e peito,
108 Enéias do busto as partes bem dispostas.

“De ferro estreme tudo o mais foi feito,
O pé direito exceto, que é de argila,
111 Mas o corpo sustém, sendo imperfeito.

“Salvo do ouro, do mais sempre destila
De lágrimas por fenda crebro fio,
114 Que fura a gruta e rápido desfila.

“Aos negros vales vem correndo em rio,
Forma Stige, Aqueronte e Flegetonte,
117 Desce depois neste canal esguio

“Até do inferno o fundo, aonde é fonte
Do Cocito. O que o rio acaso seja
120 Verás: mister não é que ora te conte”. —

— “Se desde o nosso mundo ele serpeja,
Dize, ó Mestre, a razão por que a torrente
123 Só neste abismo lôbrego se veja”. —

“É circular este lugar horrente,
E posto haja vencido extenso trato,
126 Descendo tu à esquerda, inteiramente

“Não hás feito inda ao círc’lo o giro exato.
Não revele o teu rosto maravilha.
129 Novas cousas em vendo e estranho fato”. —

Ainda eu perguntei: — “Por onde trilha
O Flegetonte e o Letes? De um te calas,
132 E do outro a veia é dessa origem filha”. —

Tornou: — “Muito me agrada quanto falas;
Da água rubra o fervor, porém, solvera
135 Uma dessas questões, que me assinalas.

“Do inferno fora o Letes ver espera:
Na linfa sua as almas vão lavar-se
138 Depois que a penitência o perdão gera”.