Disse depois: “É tempo de deixar-se
A selva; os passos meus sempre acompanha,
Pela margem caminho há para andar-se.

142 Do fogo ali se extingue toda sanha”. —

 

32. Alexandre, alusão a uma aventura de Alexandre Magno. — 55. Cíclopes, gigantes com um só olho no meio da testa, que fabricavam armas para Júpiter. — 56. Mongibello, o vulcão Etna, na Sicília. — 63. Capaneu, um dos sete reis que sitiaram Tebas. — 79. Bulicame, fonte de água quente perto de Roma. — 101. Réia, mulher de Saturno e mãe de Júpiter. — 103-105. Velho de Creta, símbolo da humanidade e, segundo outros, da monarquia, que, em princípio boa e reta, vai depois degenerando.

 

 

[XV]

Prosseguindo os Poetas, encontram um grupo de violentos contra a natureza. Entre estes está Brunetto Latini, que reconhece o discípulo e lhe pede para aproximar-se dele, a fim de conversarem. Falam de Florença e das desventuras reservadas a Dante. Brunetto dá ao Poeta ligeiras notícias a respeito das almas que estão danadas com ele e foge para reunir-se a elas.

 

POR uma dessas margens empedradas
Imos: vapor do rio resguardava
3 Das chamas o álveo e as bordas elevadas.

Como do mar temendo a força brava
De Bruge a Cadsand, Flamengos fazem
6 Os diques, com que o mal se desagrava;

Ou como o dano atalha, que lhe trazem
Do Brenta as invasões de Pádua a gente,
9 Se em Quiarentana os gelos se desfazem,

Assim as bordas desse rio horrente,
Posto altura e grossura lhes não desse
12 Iguais, quem quer que fosse artista ingente.

A selva já distante de nós era
Tanto, que eu divisá-la não podia,
15 Quando os olhos por vê-la atrás volvera,

Eis encontramos multidão sombria,
Que a margem costeava, nos olhando,
18 Como sói caminhante, ao fim do dia,

Que vai, por lua nova, outro encarando:
Para nos ver os cílios contraindo,
21 Qual a agulha o artesano aparelhando.

Assim, de mira à turba nós servindo,
Conhecido fui de um que me travava
24 Da roupa — “Ó maravilha!” — repetindo.

Quando o seu braço para mim se alçava,
Atentei-lhe no rosto requeimado;
27 Posto que demudado, não vedava

Que de mim fosse nas feições lembrado.
À sua face inclinando a mão, lhe digo,
30 — “Messer Brunetto! vós aqui!” — torvado.

“Filho meu! complacente sê comigo!
Vir Brunetto Latini ora consente,
33 Deixando a turba, um pouco assim contigo!” —

Tornei: — “muito vos rogo; e que me assente
Convosco se quereis, prazendo ao guia
36 Dos passos meus, assentirei contente”. —

— “Se um momento um de nós” — me respondia —
Aqui parasse, imóvel anos cento,
39 Pelo fogo ferido jazeria.

“Caminha: que eu te irei no seguimento.
Depois hei de juntar-me à companhia
42 Dos que pranteiam no eternal tormento”. —

Eu da estrada a descer não me atrevia
Por ir com ele; mas a fronte inclino
45 Reverente; e, falando prosseguia.

— “Que fortuna” — me disse — “ou que destino
Antes da morte aqui te há conduzido?
48 De quem recebes na jornada ensino?”

— “Antes de haver da idade o tempo enchido
Sobre a terra na vida sossegada;
51 Num vale” — respondi — “fiquei perdido.

“Ontem costas lhe dei por madrugada;
Ele acudiu-me, quando atrás voltava,
54 E me conduz assim por esta estrada”. —

— “Se bem vaticinei, quando gozava,
Da vida bela, glorioso porto
57 Te há de o teu astro conduzir” — tornava.

“Se antes do tempo eu não stivesse morto.
Vendo que tanto o céu te era benigno,
60 Te dera nos trabalhos o conforto.

“Mas esse ingrato povo é tão maligno,
Que outrora de Fiesole viera
63 E tem de penha o coração ferino,

“Em ti, por seres bom, mal considera.
É justo: que entre acerbos sovereiros
66 Crescer doce figueira não se espera.

“Velha fama os diz cegos, sempre useiros
Na soberba, na inveja, na avareza.
69 Deles te esquiva; em vícios são vezeiros.

“Te guarda a sorte de honras tal grandeza,
Que hás de ser dos partidos cobiçado;
72 Mas das garras lhes fica longe a presa.

“Ceve em si própria o fiesolano gado
Os instintos brutais; não toque a planta,
75 Que inda haja em tal nateiro germinado,

“E em que a semente ressuscite santa
Dos romanos, que ali restaram, quando
78 Teceu-se o ninho de malícia tanta”. —

— “Se o céu” — tornei — “meus votos escutando,
Deferisse, da vida o lume agora
81 Ainda aos olhos vos raiara brando;

“Que a doce imagem vossa inda memora
Saudosa a mente e o paternal desvelo
84 Com que me heis ensinado de hora em hora

“Como homem faz-se eternamente belo.
Enquanto eu vivo for, agradecido
87 Ao mundo bem patente hei de fazê-lo.

“O vaticínio vosso, reunido
A outro, há de explicar-me sábia Dama,
90 Quando à sua presença houver subido.

“E como a consciência me não clama,
Sabei que, quando a sorte avessa esteja,
93 A todo o mal sou prestes, que ela trama.

“O que ouvi não cuideis novo me seja:
Volva-se a roda como a sorte a lança,
96 Lavre a terra o vilão como deseja”. —

Então meu douto Mestre, que se avança,
Girando à destra e me encarando, disse:
99 “Bem compreende quem tem boa lembrança!” —

Não me vedou, porém, que eu prosseguisse
Na prática; e a Brunetto os mais famosos
102 Pedi que dos seus sócios referisse.

— “Alguns convém saber, mais numerosos
Em silêncio deixar louvável sendo:
105 Míngua o tempo aos discursos copiosos.

“Sabe, em suma, que clérigos havendo
Todos sido e letrados mui famosos.
108 Se mancharam num só pecado horrendo.

“Vão na turba daqueles desditosos
Acúrio e Prisciano; alguns protervos
111 Se ver quiseres, por tal lepra ascosos.

“Olha o que, como quis servo dos servos,
Pra Bacchiglione foi do Arno mudado
114 E ali deixou seus deformados nervos.

“Não mais dizer, nem ir posso ao teu lado,
Pois do areal já vejo de repente
117 Vapor novo surgir afogueado.

“Não devo andar com bando diferente.
O meu Tesouro eu muito te encomendo:
120 Nele inda vivo, e rogo isto somente”. —

Voltou-se; e foi tão rápido correndo,
Como os que correm pelo pálio verde
No campo de Verona, parecendo

124 Mais ser quem vence do que ser quem perde.

 

30. Messer Brunetto, Brunetto Latino, autor do “Tesouro”, e mestre de Dante. — 62 Fiesole, pequena cidade perto de Florença. — 110. Acúrcio, Francesco d’Accursio, jurisconsulto bolonhês. Prisciano, gramático de Cesaréia — 112. Olha o que, etc. Andréia de Mozzi, bispo de Florença e, depois, de Vicência.

 

 

[XVI]

Perto do limite do terceiro compartimento do sétimo círculo os Poetas encontram outro bando de almas de sodomitas, no qual se destacam três ilustres compatriotas de Dante. Reconhecendo-o, falam da decadência das virtudes políticas e civis de Florença. Chegam, depois à orla de outro precipício, onde a um sinal de Virgílio, sobe, voando pelos ares, uma figura estranhíssima.

 

EM lugar stava já donde se ouvia
Rumor, igual de abelhas ao zumbido,
3 De água, que noutro círculo caía:

Eis três sombras partir vi comovido,
Correndo, de uma turba que passava
6 Debaixo do martírio desmedido.

Vinham a nós, e cada qual gritava:
“Detém-te; por teus trajos se afigura
9 Seres alguém da nossa terra prava”. —

Ah! que chagas nos membros, na figura
O fogo lhes abria, novas e antigas!
12 Só recordando, eu sinto mágoa pura.

O mestre, que escutara — “Não prossigas!
Cumpre-te” — disse, o rosto me voltando, —
15 “Aguardando, lhes dar mostras amigas.

“Não estivesse o fogo dardejando,
Como o lugar requer, te caberia
18 Mais pressa do que estão manifestando”. —

Paramos. Renovando a vozeria
Um círc’lo junto a nós os três formaram,
21 Em que as mãos cada qual dos três unia.

Como atletas, que, nus, de óleo se untaram,
Mas, antes de lutar, dos adversários
24 No fraco atentam, no seu prol reparam:

Eles, se revolvendo em giros vários,
Olhavam-me em tal modo colocados,
27 Que os colos aos seus pés stavam contrários.

“Se a miséria, em que somos trateados,
Se o triste aspecto da tostada face
30 Te move a desdenhar súplices brados,

“Nossa fama o teu ânimo traspasse;
E pois, dize quem és que, ufano, o inferno
33 Calcas antes que a vida se finasse.

“Este, por quem os passos meus governo,
Escoriado e nu, que ora estás vendo,
36 Mais do que o crês no mundo foi superno.

“Da famosa Gualdrada o neto sendo,
Chamou-se Guido Guerra, e foi na vida
39 Por esforço e prudência reverendo.

A Tegghiaio Aldobrandi, que em seguida
Me vai, por sua voz, por seus bons feitos
42 Devera ser a pátria agradecida.

Eu que também da pena sofro efeitos
Jacopo Rusticucci fui: da esposa
43 O maior mal causaram-me os defeitos”. —

Se houvesse amparo à chuva pavorosa
(Virgílio o consentira), eu me lançara
48 Entre eles, da alma na expansão piedosa;

Porém naqueles fogos me abrasara,
Sobrepujou temor vivo desejo,
51 Que de abraçá-los súbito me entrara.

“Não desdém, mas piedade neste ensejo,
Que não se extinguira, me tem movido”
54 Lhes disse — “o padecer em que vos vejo,

“Tanto que o Senhor meu há proferido
Palavras, que a presença me indicaram
57 De almas quais sois neste lugar temido.

“Da vossa terra sou: sempre exaltaram
Meu apreço e o dos que vos conheceram
60 Ações que os nomes vossos tanto honraram.

“Por meu Guia veraz esperançado,
Deixo o fel por doçura permanente
63 Tendo primeiro o centro visitado”. —

“Que no teu corpo a vida longamente
Persista!” — a sombra disse. — “Dure a fama
66 Do nome teu com lume resplendente!

“Na pátria nossa inda revive a flama
Da honra, do valor, que ali brilhara,
69 Ou de todo a expeliu ódio que infama?

“Pois Guilherme Borsiere, que baixara,
Há pouco, e vai chorando nesta ardência,
72 Cruciou-nos contando o que notara”. —

“Íncolas novos, súbita opulência,
— Florença, orgulho e vícios te acenderam,
75 De que tu própria temes a influência!” —

Gritei alçando a fronte: e os três, que me eram
Atentos, à resposta se encararam,
78 Como se essas verdades lhes prouveram.

“Se tão pouco te custa” — me tornaram —
“Sempre aos outros expor teu pensamento,
81 Feliz tu! Vozes tais assaz te honraram.

“E, pois, voltando a luz do firmamento,
Se alfim saíres desta estância horrente,
84 Quando — “Lá fui!” — disseres, de contente,

“Nos olvidar não deixa a humana gente”. —
Então, rompendo o círculo, fugiram,
87 Como se asas tiveram, velozmente.

Em menos tempo aos olhos se esvaíram
Do que proferir amen se gasta.
90 Logo aos passos do Mestre os meus seguiram.

Dali distância curta nos afasta,
Eis da água os sons ouvimos, tão de perto,
93 Que a voz forçar para se ouvir não basta.

Como o rio que, no álveo próprio aberto,
Em Veso nasce e vai para o oriente,
96 Ao lado esquerdo do Apenino, e ao certo

Aquaqueta se chama, da eminente
Parte enquanto não desce, mas, tomando
99 Nome diverso em Forli de repente,

Rebomba e cai pela quebrada, quando
Acerca-se a S.