Wells teve numerosos casamentos e ligações com mulheres de variados temperamentos, e nas suas memórias escrevia com franqueza e eloquência sobre sua vida amorosa. Gostava de praticar atividades físicas, falava bem em público, era extrovertido e cheio de energia. Sua ficção reflete a disposição problemática para a vida de quem procura conciliar uma mente crítica e um corpo exuberante. Era metido a sedutor, e era certamente um machão vitoriano (qual o britânico que não o era, sob a Rainha Vitória?), mas debateu em alto nível com feministas. Além de socialistas, conservadores, trabalhistas, internacionalistas, populistas, presidentes e reis.

Wells acreditava, mais ou menos como Edgar Allan Poe antes dele, que o conto deveria ser como uma flecha, um feixe intenso e compacto de estímulos verbais para a produção de um efeito extraordinário na mente do leitor. (Sua melhor ficção é assim; quanto mais aberto o foco, menor sua intensidade criativa.) Ele pertencia, com Anthony Boucher, à escola dos autores para quem uma história deve ter não mais do que um efeito notável. De acordo com essa premissa, seria impensável fazer um homem invisível viajar numa máquina do tempo, ou um homem dormir durante milênios para acordar e testemunhar uma invasão marciana. Uma grande ideia é o bastante.

Como narrativa, A guerra dos mundos é tão firmemente focada no acontecimento central que seu passo não se altera nem mesmo quando o narrador, que está no campo, precisa contar o que acontece em Londres nessa mesma época e recorre ao testemunho de um irmão. A narração das peripécias muda de ponto de vista, muda de ambiente, mas o foco não se altera, a atenção do narrador não esmorece.

Por outro lado, a formação básica de Wells sobre ciências e seus hábitos de leitor o levam a recorrer a diferentes áreas para construir sua narrativa. Primeiro a Astronomia, que na época em que o livro foi escrito estava cheia de teorias de todo tipo sobre Marte e a possibilidade de vida por lá. O espírito dessa época gerou especulações marcianas em autores como Camille Flammarion, e a descoberta dos supostos canais por Schiaparelli continuava alimentando especulações que os telescópios da época eram incapazes de confirmar ou desmentir.

Em segundo lugar, a biologia. No parágrafo de abertura do livro, numa imagem que lembra os poemas de Augusto dos Anjos (1884-1914), o narrador compara a humanidade às “efêmeras criaturas que fervilham e se multiplicam numa gota d’água”. A imagem reflete o grande momento vivido pela bacteriologia naqueles anos, mas é também uma maneira hábil de o autor plantar ali a semente do seu desfecho.

Uma terceira base científica é a Teoria Evolucionista. Nunca é demais reforçar a lembrança unânime de que ele foi aluno de Thomas H. Huxley, um evolucionista notável da época. No capítulo destinado à análise física dos marcianos, o narrador de Wells afirma: Muitas verdades são escritas como brincadeira, e no caso dos marcianos não restam dúvidas de que a inteligência superou o lado animal do organismo. Para mim é perfeitamente plausível que os marcianos tenham descendido de seres parecidos com os humanos, pelo gradual desenvolvimento do cérebro e das mãos (que teriam sido a origem dos dois grupos de tentáculos delicados) à custa do restante do corpo. Sem o corpo, o cérebro tornar-se-ia uma simples inteligência egoísta, sem nada do substrato emocional do ser humano.

Essa opinião, expressa no terço final do romance, joga uma luz inesperada na reação que até então predominava em nós: o horror diante do Outro, do Alienígena, de uma coisa em si que jamais compreenderemos e mal conseguiremos entender por que são hostis.

“Mas são nossos primos”, parece sugerir Wells, com a mesma piscadela com que os evolucionistas da época se referiam aos antropoides. Assim como piscava o outro olho em A máquina do tempo e dizia, apontando para os monstruosos Morlocks: “São nossos bisnetos”. O Outro somos nós mesmos, ou então são algo em que podemos nos tornar, pois o nosso aspecto como espécie não é algo definitivo. Os marcianos podem se alimentar de nós. Nosso sangue não lhes provoca rejeição. O corolário dessa ideia é a impressão de que sejam, como nós, vulneráveis a certas ameaças terrestres.

Como poderia repetir o personagem de Pogo (de Walt Kelly): “Saquei quem é o inimigo. É a gente”. Os marcianos somos nós, amanhã, quando a atmosfera do nosso planeta finalmente estiver irrespirável, quando tivermos esgotado todos os lençóis de água potável, quando o desequilíbrio entre as espécies animais e vegetais tiver precipitado sua extinção. Será a nossa vez de olhar em torno à procura de um ecossistema habitável. Certamente vamos fazê-lo um dia com os mesmos “intelectos vastos, frios e insensíveis” que Wells nos apresenta na página inicial do romance. E que de certo modo são os mesmos astrônomos marcianos que ele imagina no conto “A estrela” (1897), que observam cataclismos devastando a Terra e no fim consideram que os danos observados foram mínimos.

Os marcianos deste romance também são de algum modo precursores dos Deuses Antigos de Lovecraft, aquelas entidades extraterrestres para quem a humanidade conta tão pouco quanto os ácaros contam para nós. Mesmo assim, numa guerra tecnológica desigual, os humanos ainda conseguem produzir pequenos estragos nas supermáquinas marcianas e matar pelo menos um deles. Seria uma batalha como a das formigas contra os seres humanos.