Esta é uma imagem usada pelo narrador deste romance, e uma ideia a que Wells voltaria depois, desde a sociedade de organização insetoide de Os primeiros homens na Lua (1901) até a ameaça ecológica de outro Monstro Legião em “O império das formigas” (1905).
Tudo na obra do autor nos adverte do que podemos chamar “a mentalidade marciana”. Em suas obras filosóficas e de especulação histórica, Wells tentou imaginar para o futuro uma civilização mais humanista do que a nossa, no sentido de ver cada ser humano não apenas como um animal provido de força de trabalho ou um número numa estatística. Um modo de viver onde se reconheça que o trabalho e o consumo são termos de uma equação mais complexa, e não a fórmula essencial da vida. Wells sempre questionou a Ordem e a Autoridade como meio e fim. Existe algo de wellsiano no modo como Orwell considera os direitos básicos do ser humano em 1984 (privacidade, autonomia de decisões, amor e sexo).
A visão de Wells era limitada? Por certo. Num prefácio a outra edição deste romance (New York, Fawcett, 1968), Isaac Asimov comenta com bom humor o fato de Wells dizer que a Terra foi invadida, mas toda a destruição descrita por ele se restringir a Londres e arredores, ao sul das Ilhas Britânicas. Diz o Doutor: A Grã-Bretanha constitui cerca de 1/2300 da superfície da Terra, e no entanto todas as naves alienígenas, depois de disparadas, caem exatamente ali. Quando a população de Londres começa a fugir da cidade, tomada pelo pânico, Wells diz: “Era o começo do fim da civilização, do massacre da humanidade” – embora nenhuma outra nação pareça ter sido afetada. E quando a Grã-Bretanha finalmente se prostra diante dos invasores, a segunda parte do livro se intitula “A Terra sob o domínio dos marcianos”.
Mas é deste aparente provincianismo que resulta uma das qualidades da ficção de Wells: sua ligação viva, emotiva, complexa, com o lugar onde estava e as pessoas com quem convivia. Ele nunca foi escritor de gabinete (ou, mais modernamente, de pesquisas virtuais). A região de Woking cuja destruição ele narra na primeira parte do livro era a mesma por onde ele costumava andar a pé ou de bicicleta (já em 1896 ele publicava The Wheels of Chance, sobre o hábito de viajar de bicicleta). Ali ele conhecia as estradas, as pontes, as pequenas fazendas, os atalhos, os povoados. Percorria os vilarejos, dormia nas hospedarias, provavelmente bebia nos bares e namorava, conversava com pessoas. Metia-se em todas as situações banais que em princípio nada têm a ver com literatura, mas acabam fornecendo o lastro de verossimilhança humana, de vida real, que falta a muitos escritores mais especulativos, abstratos.
Talvez seja este o grande inimigo, já que o inimigo é a gente. O inimigo é tudo quanto nos faz esquecer que somos gente. Wells sabe que, se os marcianos, com seus intelectos “vastos, frios e insensíveis”, ainda não são uma ameaça externa, nem por isso deixam de nos ameaçar de dentro de nós mesmos.
No capítulo 7 do Livro I, o narrador diz: Talvez eu seja um homem de temperamento raro. Não sei até que ponto minha experiência é comum. Às vezes sinto-me estranhamente desligado de mim e do mundo ao meu redor; parece que assisto a tudo de fora, de um lugar incrivelmente remoto, fora do tempo, fora do espaço, fora da tensão e da tragédia que nos cercam.
Essa capacidade de distanciamento é o que em alguns momentos nos salva, mas em outros pode nos transformar em monstros pilotando máquinas.
BRAULIO TAVARES

INTRODUÇÃO
EM MEADOS DO SÉCULO XVII, UM HOLANDÊS, FILHO DE UM CESTEIRO, fez uma descoberta alarmante. Seu nome era Antony van Leeuwenhoek. Ele havia polido suas próprias lentes e construído um microscópio. Enquanto Galileu observava as estrelas e Isaac Newton media a órbita da Lua, Van Leeuwenhoek olhava na direção oposta, para o diminuto.
Ao observar uma gota d’água de um lago, ele a descobriu cheia de seres vivos, de “animálculos”: “Nestes últimos eu vi duas perninhas próximas à cabeça e duas pequenas barbatanas na parte traseira do corpo [...] E o movimento da maioria desses animálculos na água era tão veloz e tão diverso, para cima, para baixo, em todas as direções, que era maravilhoso de se ver...”.
Finalmente, alguém descobrira vida desconhecida!
Muito antes do século XVII, a mente humana fora fartamente povoada por duendes de todos os tipos, e continua sendo. Ali não faltam fantasmas e vampiros. Mas descobrir esses “animálculos” minúsculos, secretos, aparentemente hostis, numa gota d’água era algo novo e perturbador. A água! A água, o símbolo da pureza, infestada por criaturas nunca antes sonhadas! Lá se ia a paz de espírito, e dávamos mais um passo em direção ao nosso neurótico mundo moderno.
O jovem H. G. Wells frequentou o laboratório de biologia daquela que em 1884 se chamava Normal School of Science. Um eco de seu aprendizado ressoa nas primeiras linhas do conto “The Stolen Bacillus” [O bacilo roubado]: “‘Isto’, disse o bacteriologista, encaixando um vidro sob o microscópio, ‘é um preparado do célebre bacilo da cólera — o germe da cólera’”.
A ideia da ubiquidade dos “germes” tomou conta da mente de Wells.
Herbert George Wells nasceu em 1866 numa família de classe média baixa. Seus pais tinham uma loja de louças em Bromley, Kent. Aos sete anos, “Bertie” quebrou a perna e passou semanas de cama, período em que recebeu cuidados e livros. “Esse tombo foi uma das maiores felicidades da minha vida”, disse ele.
Embora a população de Bromley tivesse saltado de 20 mil para 50 mil habitantes nas décadas de 1860, 1870 e 1880, os novos moradores não pareciam querer comprar louças.
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