A Luneta Mágica

 

Fonte: MACEDO, Joaquim Manuel de. A Luneta Mágica. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: 21 set. 2011.

 


 

Texto publicado originariamente em 1869.

 

Editoração eletrônica: Brasil ePub <www.brasilepub.com.br>. Este arquivo pode ser livremente distribuído, desde que citada a fonte da editoração eletrônica. Email: [email protected]

 

Joaquim Manuel de Macedo nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1820, e faleceu no Rio de Janeiro, em 11 de abril de 1882.

 

Esta obra encontra-se, no Brasil, em domínio público, conforme art. 41 da Lei federal n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

 

Sumário

 

 

 

SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE

Introdução

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

Visão do Mal

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

XXII

XXIII

XXIV

XXV

XXVI

XXVII

XXVIII

XXIX

XXX

XXXI

XXXII

XXXIII

XXXIV

XXXV

XXXVI

XXXVII

XXXVIII

XXXIX

XL

XLI

XLII

XLIII

XLIV

XLV

XLVI

XLVII

XLVIII

XLIX

L

SEGUNDA PARTE

Introdução

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

Visão do Bem

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

XVI

XVII

XVIII

XIX

XX

XXI

XXII

XXIII

XXIV

XXV

XXVI

XXVII

XXVIII

XXIX

XXX

XXXI

Epílogo

I

II

III

IV

V

VI

Primeira Parte

Introdução

I

Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.

Nasci sob a influência de uma estrela malígna, nasci marcado com o selo do infortúnio.

Sou míope; pior do que isso, duplamente míope míope física e moralmente.

Miopia física: — a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta.

E por isso ando na cidade e não vejo as casas.

Miopia moral: — sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar duas idéias minhas.

E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.

Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!... mas a convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito

Disse-me um negociante meu amigo que por essa luz da consciência represento eu a antítese de não poucos varões assinalados que não tem dez por cento de capital da inteligência que ostentam, e com que negociam na praça das coisas publicas.

— Mas esses varões não quebram, negociando assim?... perguntei-lhe.

— Qual! são as coisas públicas que andam ou se mostram quebradas.

— E eles?...

— Continuam sempre a negociar com o crédito dos tolos, e sempre se apresentam como boas firmas.

Na cândida inocência da minha miopia moral não pude entender se havia simplicidade ou malícia nas palavras do meu amigo.

II

 

Aos doze anos de idade achei-me no mundo órfão de pai e de mãe.

Eu estava acostumado a ver pelos olhos de minha mãe, a pensar pela inteligência de meu pai; fiquei, pois, nas trevas dos olhos e da razão.

Meus pais eram ricos, e deviam deixar-me, deixaram-me por certo, avultada fortuna; quanto, não sei: meu irmão mais velho que tomou conta dos meus bens, minha tia Domingas que tomou conta da minha pessoa, e minha prima Anica que se criou comigo e que é um talento raro, pois até aprendeu latim, hão de saber disso melhor do que eu.

Dizem eles que a minha fortuna vai a vapor, ignoro se para trás se para diante, porque os barcos e carros a vapor avançam e recuam à custa do gás impulsor; mas o meu amigo negociante declarou-me que por certas razões que não compreendo, nas quais, também não sei porque, entra a pessoa da prima Anica, devo confiar muito no zelo da tia Domingas.

E eu confio nela o mais possível; porque é uma senhora que anda sempre de rosário e em orações e que tendo alguma coisa de seu, apesar de tão religiosa, nua deu nem dá um vintém de esmola ao pobre que lhe bate à porta, pretextando sempre que tem muita vontade de fazer esmolas evangélicas; porem que ainda não achou meio de esconder da mão esquerda o óbulo da caridade pago pela mão direita.

Estou tão profundamente convencido da pureza dos sentimentos religiosos da tia Domingas, que desde que ela tomou conta de mim, vivo em sustos de que algum dia a piedosa senhora mande amputar a mão esquerda para conseguir dar esmolas com a mão direita, conforme o preceito evangélico de que em sua santa severidade não quer prescindir.

III

 

Aos dezoito anos de idade comecei a compreender todas as proporções da minha desgraça dupla: chorei, lastimei-me, pedi médicos para os meus olhos, e mestres para minha inteligência.

A força de muito rogar e bradar consegui que me dessem uns e outros.

Os mestres ganharam o seu dinheiro e eu quase que perdi todo o meu tempo com eles; porque bem pouco lucrei no empenho de combater a minha miopia moral.

O mais hábil dos meus professores declarou-me no fim de quatro anos que um mancebo tão rico de cabedais como eu era, podia bem reputar-se literato de avantajado merecimento, sabendo ler, escrever e as quatro espécies da aritmética.

Convencido sempre que só me diziam a verdade, e tendo conseguido saber, aos vinte e dois anos de idade, ler mal, escrever pior, e fazer com a maior dificuldade as quatro espécies da aritmética, mandei embora o hábil professor, e fiquei literato.

Os médicos falaram-me em córnea transparente, em cristalino, em raios luminosos muito convergentes, em retina, e não sei em que mais, e acabaram por dizer-me que aos sessenta, ou setenta anos de idade, eu havia de ver muito melhor.

Dos médicos alopatas recebi esta consolação de melhor visão aos setenta anos, se estivesse vivo; dos homeopatas sei se me deram o cristalino em glóbulos, ou os raios convergentes em tintura; mas o fato é que em resultado de dez conferências e de vinte tratamentos diversos não vi uma linha adiante do que via, e apenas posso gabar-me de não ter ficado cego com a luz de tanta ciência.

O meu desgosto foi aumentando com os anos.

Meu irmão, que é um santo homem, me dizia:

— Consola-te, mano; tudo tem compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas porque és míope não vês como são bonitos os bordados da farda de um ministro de estado, e portanto não te exasperas por não poder ostentá-los.

Convém saber que meu irmão saiu eleito deputado na última designação constitucional, e mandou fazer a sua libré parlamentar ainda antes de ser reconhecido representante legítimo do povo soberano que anda de paletó e de jaqueta.

Deste fato e da sua observação concluí eu em minha simplicidade que o mano Américo vive doido por ser ministro para fazer o bem da pátria.

E não é só ele; a prima Anica já sonhou três vezes com mudança de gabinete, e com correios e ordenanças à porta de nossa casa.

Inocente menina! é um anjo: os seus sonhos são piedosos como as vigílias da tia Domingas, sua mãe, e patrióticos, como os cálculos o mano deputado; ela diz com virginal franqueza que tem meia dúzia de parentes pobres a arranjar, quando o mano Américo for ministro.

Meia dúzia só!... que abnegação e que desinteresse da prima Anica!

Ela está se tornando tão profundamente religiosa como a tia Domingas.

Já fez um ponto de fé deste suavíssimo princípio: "a caridade deve começar por casa".

IV

 

O mano Américo tem sempre aberta para mim uma fonte perene de consolações; persegue-me, porém, a infelicidade de não saber apreciar bastante a sabedoria, que fala pelos lábios de meu irmão.

Já disse como ele me consolava da minha miopia física; pois bem: a sua bondade ia além; quando me ouvia tristes queixas da minha miopia moral, me apertava as mãos, e falava assim:

— Agradece a Deus esse infortúnio; estás livre de desgostos sem conta, de responsabilidades sem número, e de tormentos sem tréguas; tu não sabes pensar; mas eu penso por ti e por mim; tu mal dirigirias os teus negócios; mas eu dirijo os teus e os meus negócios; tu sofres muito menos do que eu sofro; porque eu sofro por ti e por mim.

Que alma santa a de meu irmão!

E todavia quando isso ouço, lembra-me que o mano Américo foi o testamenteiro e inventariante nomeado por meus pais, e que até hoje está de posse das minhas heranças, que ele emprega e zela, certamente só em meu proveito, mas sem me dizer como, nem jamais dando-me contas; e portanto pensando, negociando e sofrendo por mim o meu pobre irmão!

Dói-me tamanho sacrifício! ah! se eu conseguisse tomar para mim metade dos trabalhos e sofrimentos do mano Américo... a minha metade só... para ele não sofrer por mim!

Porém se por acaso manifesto de leve esse desejo, alvoroça-se o amor fraternal, meu irmão se enternece, me abraça e diz:

— Inocente Simplício! não serei tão egoísta que te abandone às ciladas dos homens sem consciência, que devorariam a tua fortuna. A minha dedicação é na verdade pesada; mas é um dever e Deus a abençoa.

Vejo-me, pois, obrigado a ficar devendo ao mano Américo o favor de tomar conta da minha fortuna, e de empregá-la por mim. E como é ingrata a humanidade! já cheguei a suspeitar que a dedicação do mano é mais suave do que ele diz.

A primeira vez que me confessar hei de perguntar ao padre, se Deus abençoa tais dedicações fraternais; é este um ponto que deve ser esclarecido para que seja mais doce a submissão dos irmãos míopes.

V

 

Minha tia também me faz ouvir consolações, e sempre conforme as suas idéias religiosas.

Para ela a minha miopia física é um imenso beneficio da providência, que assim menos exposto me deixou às tentações do diabo, que ataca o pecador pelos olhos; e a minha miopia moral ainda mais precioso dom, porque dos pobres de espírito é o reino do céu.

A lógica piedosa da tia Domingas seria capaz de levá-la a rezar para que eu me tornasse surdo, mudo e paralítico a fim de ser completa a minha bem-aventurança na terra.

Em conseqüência deste receio nunca disse amém às consolações místicas de minha tia.

Ainda tenho uma terceira fonte de consolações; essa, porem, ao menos é mais poética.

A prima Anica é perdida pelos apólogos; quando pode explicar-se por meio deles, não se explica de outro modo: o apólogo é o seu capricho de moça.

Além disso ninguém como ela se empenha tanto e mais habilmente em agradar-me; sabendo que quase não vivo pelos olhos, procura recomendar-se, açucarando a voz, e usando de perfumes suavíssimos.

As vezes e quando tem ocasião faz-me também ouvir apólogos.

Um dia em que como de costume lastimava a minha desdita, que então nem me deixava distinguir as flores do jardim, onde ambos passeávamos, colheu ela duas flores, uma rosa d'Alexandria, e uma angélica, e deu-mas para que eu as reconhecesse.

Aproximei muito dos olhos as duas flores para apreciar suas cores e um espinho da rosa feriu-me a ponta do nariz, e aí ficou preso.

— Repara no que te ensina a rosa, disse Anica; repara e compreende quanto te pode aproveitar a miopia: as flores que mais almejas distinguir e admirar não são as do nosso jardim, são as que enfeitam e enchem de magia os salões das sociedades, que não freqüentas, são as jovens formosas com que sonhas em sonhos doidos de amor ainda mais doido; essas, porém, assemelham-se à rosa d'Alexandria, tem espinhos que te despedaçariam o coração.

Anica interrompeu-se por breves instantes para suspirar; eu ouvi o suspiro, e ia perguntar-lhe, na minha simplicidade, se estava incomodada, quando ela continuou, dizendo:

— Contenta-te, pois, com a angélica que é suave ao tacto e que te pode embalsamar a vida do retiro com o perfume do amor e da virtude.

Fiquei mudo: tinha compreendido o apólogo apesar da minha miopia moral.

Anica faz talvez um esforço para vencer o pudor e perguntou-me:

— Sabes quem é a angélica?...

Instintivamente me fingi mais pobre de espírito do que sou, e respondi perguntando:

— A angélica? pois não é aquela flor que me deste?...

Deixamos o jardim: eu saia dele com um espinho de roseira na ponta do nariz, e Anica provavelmente com o espinho da minha indiferença no seio.

Senti que chegara a ser cruel; mas eu nem sabia se Anica era bonita ou feia; porque nunca pudera ver-lhe distintamente o rosto: se fosse bonita não seria o seu amor a mais doce consolação para mim?

Tive uma idéia inspirada metade pela gratidão, metade pela curiosidade maliciosa, a idéia de ver se Anica era bonita ou feia, se me seria possível amá-la. Chegando a sala, sentei-me e pedi à prima que me tirasse o espinho da ponta do nariz.

A inocente moça prestou-se a fazer a fácil operação: armou-se da tesoura mais delicada que achou, com os macios dedos da mão esquerda segurou-me o nariz, com a mão direita dirigiu a ponta da tesoura, e cuidadosamente ocupada em extrair-me o espinho, chegou seu rosto tão perto dos meus olhos que mais não era possível.

Durante três ou quatro minutos vi, distingui, apreciei suficientemente o rosto de Anica... não era o rosto com que eu sonhava, não era o das descrições das heroinas dos romances que me tinham lido... não era.

O rosto da prima Anica e muito respeitável; mas em consciência esta muito longe de ser angélico.

A prova de que é muito respeitável esta em que não tive necessidade de expelir de minha alma o menor desejo desrespeitoso, achando-se esse rosto por alguns minutos ainda mais peito dos meus lábios, do que dos meus olhos.

A prova concludentíssima de que Anica não é angélica, está em que a operação me pareceu tão dolorosa como demorada.

Anica tivera a bondade de fazer-me ouvir a significação moral do seu apólogo da rosa d'Alexandria e da angélica. O apólogo não lhe aproveitou; mas a culpa disso não esta em mim.

Ofereço agora, não a Anica, porque me pesaria molestá-la, porém às senhoras a quem o caso possa interessar, a moralidade da história da extração do espinho da ponta do meu nariz.

É uma pequenina história que também pode correr, como apólogo.

A moralidade é esta:

Moça que não for bonita não se preste a extrair espinho da ponta do nariz de homem míope.

VI

 

No princípio do ano corrente de 186... o excelente sistema de governo que nos rege, deu-me o sinal da minha regeneração civil; e política.

Sem que o mano Américo, a tia Domingas e a prima Anica disso previamente soubessem, fui incluído na lista dos jurados da minha freguesia; quando chegou-nos a notícia do fato consumado houve em nossa casa uma espécie de consternação.

Até que ponto chega o amor dos parentes, a influência do sangue da família! meu irmão, minha tia, e minha prima sobressaltaram-se ante o perigo que eu corria por me haverem reconhecido dotado de senso comum!

Era certamente porque o mano Américo via que não lhe era possível ser também jurado por si e por mim. Eu ia começar a ficar exposto as ciladas do mundo e dos homens sem consciência.

O juiz de direito que presidira a revisão da lista dos jurados, resolvera um problema até então intrincadíssimo, declarando que eu podia ser jurado, e que por conseqüência eu tinha senso comum, condição exigida pela lei.

Eu fui alheio a tudo isso: estava mesmo convencido pelo mano Américo e pela tia Domingas que ate o senso comum me faltava; confesso, porém, que mudei de opinião com íntima e mal disfarçada alegria.

Um juiz de direito não pode julgar de modo torto: ao menos tem a seu favor a presunção de direito, que em falta de todos os outros fundamentos é fundamento que supre todos os outros; para mim que não sei aprofundar as coisas, um juiz de direito é sempre tão infalível na ciência do direito, como um padre na ciência do latim.

Por conseqüência fiquei convencido de que tinha senso comum.

Ninguém faz idéia do profundo contentamento que me deu esta convicção.

E não era para menos.

O nosso código é necessariamente muito sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral, porque segundo tenho ouvido dizer, muitos dos que têm feito e dos que fazem leis, muitos dos que as deviam mandar e mandam executar, e muitos dos que têm por dever aplicar as leis, não poderiam ser jurados por falta do bom senso!

Dizem-me isso, e asseguram-me que o bom senso é senso raro.

Eu não entendo estas coisas; mas atendendo ao que me dizem, chego a crer que foi por essa razão que a lei não impôs a condição do bom senso nem para que o cidadão fosse jurado, nem para que fosse magistrado, deputado, senador, ministro, e conselheiro de estado.

Asseveram-me ainda que se assim não fosse, que, se se exigisse a condição do bom senso para o exercício daquelas altas delegações e cargos do Estado, haveria quatro quintas partes do mundo oficial inteiramente fora da lei.

Já confessei que não entendo destes graves assuntos; como, porém, acredito piamente em tudo quanto me dizem, sinto-me cheio de orgulho pela convicção legalmente autorizada de que tenho senso comum, e apoderado de irresistível vaidade com a presunção de que sou igual a muitos magistrados, deputados, senadores, ministros e conselheiros de estado, pela falta de bom senso ou senso raro.

VII

 

Na primeira convocação do júri o meu nome foi o primeiro que saiu da urna. Este sucesso deu que pensar e que falar em casa.

A tia Domingas levou um dia inteiro a repetir: "o primeiro na primeira. . . "; passou assim o dia sem rezar, nem sei se rezou de noite; mas na manhã seguinte propôs-me comprar de sociedade comigo um bilhete de loteria.

Eu não cabia em mim de contente; o mano Américo hesitava, porém enfim conveio em que eu entrasse no exercício do meu direito de cidadão jurado.

Creio que meu irmão procedeu assim pelo respeito que consagra às leis, como me assegurou, embora a prima Anica me dissesse em particular que o segredo da sua condescendência esteve no receio de pagar multas... por mim.

As senhoras são de ordinário muito maliciosas; acham graça em sê-lo: Anica tem esse defeito; mas, diga ela o que quiser, eu penso que o mano Américo é simples e puro, como Adão antes de comer do fruto proibido.

Compareci oportunamente ao tribunal de que a sorte me fizera membro: a sorte estava declarada por mim: logo no primeiro processo o meu nome foi ainda o primeiro que saiu da urna, e não pareci suspeito nem ao advogado do réu, nem ao da justiça pública.

Prestei a maior atenção à leitura do processo, às testemunhas e aos debates, e quando entrei para a sala secreta achava-me plenamente convencido pelo promotor de que o réu merecia a forca; pelo advogado do réu de que este era credor de uma coroa cívica, e pelo juiz de direito que resumira a acusação e a defesa, de que o réu tinha jus à forca e a coroa.

Na consulta secreta sentei-me junto de um bom velho que, vendo-me completamente as escuras em uma questão de atenuantes e agravantes, quis iluminar o meu espírito, fazendo-me ler uns artigos do seu Manual dos Jurados.

Não tive remédio, senão confessar-lhe as enormes proporções da minha miopia física Ler era para mim um martírio: pedi-lhe que me lesse os artigos do seu Manual.

Pobre moço, disse-me ele; já procurou o Reis?...

— O Reis? quem e o Reis?

— Quem é o Reis?... pois um míope ignora quem seja o Reis?... c Reis é o homem-luz, o homem-fonte de visão para os míopes se ele não o fizer ver, é porque o senhor é cego.

— Mas eu sou quase cego.

— O Reis anula-lhe o quase, e dá-lhe o dom da vista perfeita; o Reis é o graduador de vidros miraculosos. O senhor tem sido deixado em abandono por sua família

— Pelo que me diz, começo a ter desconfianças disso.

— Escute: eu vou contar-lhe maravilhas em relação ao Reis

— Mas o processo?

— Que nos importa semelhante massada?...