deixá-los falar, e discutir; nós já sabemos como havemos de votar.

— O senhor como vota?

— Votarei de modo que o réu seja necessariamente absolvido.

— Então tem certeza de que ele é inocente?

— Deve sê-lo sem a menor dúvida.

— Por quê?...

— Porque não menos de dois compadres e de três amigos meus se empenharam para que eu o absolvesse.

— E tem razão: não posso acreditar que dois compadres e três amigos de um juiz fizessem a este a injúria de pedir-lhe uma sentença injusta, julgando-o capaz de um prejuízo e de um sacrifício de consciência.

— Deveras?...

— O que me parecia, era que semelhantes pedidos e empenhos deviam ser exclusivamente reservados para servirem de luz aos jurados pobres de espírito como eu; porque os inteligentes, como o senhor, não precisam de quem lhes dirija as consciências.

O velho pôs-se a rir, não sei de que; provavelmente eu tinha dito alguma necedade, e começava a sentir-me tomado de vexame e de confusão, quando o presidente chamou-nos a votar em resposta aos quesitos do juiz de direito.

O bom velho, meu novo amigo, exerceu naquele conselho de jurados os direitos do mano Américo; porque votou por si e por mim.

O réu foi absolvido pela maioria de dois votos, e por conseqüência o empenho de dois compadres e de três amigos e a minha miopia moral decidiram da sentença.

Sai do júri com a convicção de que ou não tenho senso comum, ou é preciso mais alguma coisa além do senso comum para que o cidadão seja bom jurado.

VIII

 

Quando cheguei a porta da rua, senti que alguém me tomava o braço: era o bom velho.

— Quero levá-lo já à casa do Reis, disse-me ele.

Apertei-lhe a mão com o. mais vivo reconhecimento e deixei-me conduzir, hesitando entre a esperança e a dúvida.

Enquanto caminhávamos, o meu condutor falava e eu o ouvia curioso:

— O estabelecimento do Reis é um representante do espírito do século: começou plebeu e já está nobre pela constância no trabalho e pelo encanto do progresso; não sei se o Reis tem sido agraciado; pouco importa o homem; mas a casa, a indústria já tem quatro condecorações nobiliárias.

— E o que faz o Reis?

— Dá, reproduz os meios conhecidos, aperfeiçoa-os e inventa novos para se fazer a paz e a guerra, a guerra, dando precisão, segurança às pontarias das peças de artilharia, a paz, oferecendo balanças e níveis de todas as qualidades, alguns dos quais devem poder marcar o peso e o nível dos interesses de quaisquer beligerantes, e além desses os mais perfeitos instrumentos para demarcação dos limites dos Estados; governa nos mares com as melhores bússolas; é senhor do sol e da lua, e de todos os planetas pelos mais fortes telescópios; conhece e domina os animais invisíveis pela força engrandecedora dos microscópios, vê o fundo tenebroso das minas, tem o cetro da física o império da química a soberania da eletricidade pela magia dos seus instrumentos, marca o tempo, prediz o calor e a chuva, e chama-se Reis porque não é um rei; mas tem o poder de muitos reis.

Eu escutava boquiaberto a concisa explicação de tão extraordinária potestade humana, e quando o bom velho se interrompeu para respirar, perguntei-lhe:

— E um homem, como este, certamente já tem sido muito aproveitado pelo nosso governo?!...

— Não; o nosso governo encomendou-lhe um dia o mais perfeito pince-nez político: o Reis fez obra de mestre, um pince-nez, que por um dos vidros deixava ler as lições do passado e pelo outro os perigos do futuro; mas o pince-nez não achou nariz de ministro, em que se ajeitasse, e foi desprezado.

— Mas então o Reis que é? é mágico?...

— Não sei; suponha que seja o diabo; o certo é que ele tem, e isso é o que mais lhe importa, o segredo de dar vista de águia aos míopes mais infelizes, aos míopes quase cegos.

— Por que meio, meu amigo?

— Por meio de vidros, e de cristais, cuja concavidade encerra sobrenatural magia; por meio de lunetas de forca excepcional.

— E o governo esquece homem semelhante?... há ministro que não se apresse a comprar uma luneta dessas?...

O velho desatou a rir: perguntei-lhe qual era o motivo da sua hilaridade, e ele me respondeu assim:

— O senhor é sem o pensar, sem o querer, cruelmente epigramático: falei-lhe em luneta para os míopes e o senhor procurou logo saber, se os nossos ministros de estado não usavam dessas lunetas!!!

A simplicidade de um pobre de espírito está sempre exposta às falsas interpretações dos maliciosos.

Eu não era capaz de pôr em dúvida a vidência, a ciência e a sapiência de um homem que chega a ser ministro de estado.

O fato é a presunção do direito, e para mim a infalível resolução do problema.

Não pode haver cidadão que seja chamado a tomar, e que tome sobre seus ombros a imensa responsabilidade do governo do Estado sem que seja reconhecido e se reconheça na altura de tão grandiosa missão.

Em minha inocência não posso pensar de outro modo.

Para mim quem e ministro de estado é sábio, ou pelo menos estadista.

É por isso que até hoje, quando me diziam, que no carro que passava, ia um ministro de estado, eu tirava o meu chapéu e me conservava descoberto em sinal de respeito até que me asseguravam que o próprio ordenança do ministro já estava longe.

Porque no próprio ordenança eu ainda admiro e venero os reflexos da sabedoria do ministro.

IX

 

Chegamos, disse-me o velho.

Um tremor nervoso agitou-me o corpo todo; mas ajudado pelo meu amigo subi dois degraus de pedra e achei-me no armazém do Reis.

Não pude distinguir nem a casa, nem o dono dela; não precisei porém de olhos para sentir imediatamente a amabilidade do Reis.

O bom velho expôs as proporções da minha miopia física e pediu remédio para ela; ouvi logo abrir gavetas, e em breve começou o ensaio das mais fortes lunetas de vidro côncavo.

Reis desprezou os vidros dos números mais altos das vinte e duas forças: principiou por fazer-me experimentar um do grau quatro e perdeu completamente o seu tempo: deixou de lado os vidros côncavos do grau três e deu-me uma luneta da forca número dois, e ainda assim não pude ler o titulo de um livro que me apresentou, senão depois que cheguei o livro a duas polegadas de distancia dos olhos.

— É muito míope disse ele.

E desceu enfim ou antes subiu ao vidro do grau número um, o último, o non plus ultra dos vidros côncavos, e recuou espantado, ouvindo-me dizer que não via mais nem menos.

— É incrível! exclamou.

— É portanto?... perguntei tão abatido que nem pude acabar a frase.

— Não tenho recurso que lhe aproveite, respondeu-me com tristeza profunda.

Deixei cair a cabeça sobre o peito: a extrema esperança que eu concebera poucas horas antes, acabava de apagar-se completamente; tive vontade de chorar e murmurei em tom queixoso:

— E todavia eu vinha tão cheio de confiança! esperava tanto!

— Que quer?... o poder humano que é o poder da ciência, ainda não foi além dos instrumentos que inutilmente experimentou.

— Ah! é que o meu amigo chegou a fazer-me acreditar que o senhor era mais do que um simples homem, era uma espécie de ente sobrenatural, um mago, um realizador de impossíveis principalmente em matéria de instrumentos óticos.

— O seu amigo que é também meu, exagerou muito as minhas pobres condições; eu não creio na magia; mas se lhe apraz consultar um pretendido mágico, é coisa fácil.

— Como?...

— Mandei contratar na Europa um artista de merecimento superior para os trabalhos das minhas oficinas, e chegou-me no ultimo paquete um armênio de habilidade extraordinária; mas que me desagrada por ter pretensões a muito sabido em magia.

— Ainda uma esperança! exclamei; eu me abraço com a mais tênue, com a mais dúbia, e até mesmo com a mais louca. Onde está o armênio?...

— Em um pequeno gabinete no fundo da casa, e ai dorme de dia e trabalha de noite e sempre só: é um maníaco.

— Poderia eu falar-lhe?

— Vou mandá-lo chamar.

— Entender-me-á ele?...

— Fala perfeitamente todas as línguas em que lhe falam.

X

 

Entramos para a casa das oficinas; porque o armênio não gostava de mostrar-se no armazém.

Vou dizer com inteira verdade o que ouvi e o que o bom velho meu amigo viu e me referiu miudamente tanto nesta ocasião, como à hora da meia-noite no gabinete misterioso,

Passados apenas alguns minutos o armênio apareceu.

Era um homem alto, magro e com os ossos muito salientes: trazia os cabelos crescidos, o rosto contraído, a face macilenta enegrecida pela fumaça; suas mãos enormes estavam empoeiradas, e seus dedos coroados por grandes unhas pareciam garras; vestia calças e blusa de pano vermelho.

— Que pretendem de mim? perguntou ele em português.

Não me animei a falar; o bom velho, meu amigo, também não ousou fazê-lo: foi o Reis quem falou por mim, expondo a minha Infelicidade, e a desesperada esperança que eu concebera.

O armênio se aproximou de mim, considerou-me durante alguns instantes, examinou-me os olhos, apalpou-me os ossos do crânio, e mostrando-se compadecido, disse:

— Não te quero mal, e o dia é mau; hoje é sábado, e os gênios

sinistros predominam: escolhe outro dia, e eu te darei a vista.

O Reis fez um movimento denunciador da sua incredulidade.

O armênio encarou-o fixamente, e depois perguntou-lhe:

— Duvida sempre?

— Não duvido, tenho a certeza de que a sua magia não é impostura somente porque é lamentável mania.

O armênio desatou a rir; devia ser um rir medonho, porque foi longa e estridente gargalhada, e porque, segundo me disse o velho, ele não tinha um único dente.

— De que ri assim?... inquiriu o Reis.

— Do triunfo e do mal: duvidam do meu poder, e vou prová-lo: eis o triunfo; infiltrarei o ceticismo na alma de um inocente mancebo eis o mal.

Tive um ímpeto de coragem, avancei um passo e perguntei-lhe:

— Dar-me-ás a vista?...

— Sim, e mais penetrante do que a desejas.

— Como?

— A experiência te responderá.

— E tu por que não?...

— Que te importa?... já o disse: terás vista mais penetrante do que desejas e pensas; queres?

— Por que modo a terei?

— Dando-te eu uma luneta mágica.

— Quando?

— Hoje mesmo e amanhã, na hora em que acabará o dia de hoje para começar o dia de amanhã, à meia-noite;

— E o teu prêmio?

— Será a tua próxima convicção de que é melhor ser cego, do que ver demais.

— Aceito.

— É o mal.

— Aceito.

— É o gelo no coração!

— Aceito.

— E o ceticismo na vida!

— Aceito.

— Por que, criança?...

— Porque eu quero ver.

— Veras demais!

— Aceito.

— Volta à meia-noite.

XI

 

Quando, de volta da casa do Reis, me achei a sós na solidão do meu quarto, comecei a sentir espinhos na consciência, temores de incorrer em grande pecado por ir procurar na magia remédio contra a minha miopia física.

Mas na luta do desejo ardente de ver bem i distintamente, e dos meus escrúpulos religiosos que acabavam de despertar, eu me reconheci tão fraco e tão pecador como Eva, porque pela ambição da vista deixava-me sempre escravo das promessas do armênio, como Eva se deixou escrava dos conselhos infernais da serpente pela ambição da ciência do bem e do mal.

Hesitei: meditei, e desconfiado da minha miopia moral, resolvi-me a consultar a opinião das três consciências mais sãs que eu conhecia no mundo.

A consciência do mano Américo, o homem que vivia por si e por mim, o tipo do desinteresse e da abnegação.

A consciência da prima Anica, a jovem símbolo do amor mais dedicado, e sem sombras do egoísmo.

A consciência da tia Domingas, a velha religiosa e santa, que vivia a rezar, e que era toda misticismo.

Dirigi-me ao mano Américo e perguntei-lhe:

— Se encontrasses um mágico que te oferecesse um talismã com a virtude de te assegurar a vitória em todas as eleições de deputados, e de te fazer subir ao ministério, que farias?

Meu irmão respondeu-me logo:

— Para servir a minha pátria, e dedicar-me todo a ela, eu aceitaria o talismã, e o traria sempre comigo.

Achei-me a sós com Anica, e apressei-me a consultá-la:

— Se houvesse um feiticeiro, que por artes diabólicas possuísse e te quisesse dar o segredo da formosura e da vida em constante primavera até cem anos de idade, que farias?

— Abraçava o feiticeiro, tomava-lhe o segredo e pedia-lhe que te desse, mesmo por artes diabólicas, melhores olhos para que visses a minha formosura encantada.

Fui ter com a tia Domingas e fiz-lhe a seguinte pergunta:

— Se lhe aparecesse um homem suspeito de se ter vendido ao demônio, e lhe apresentasse o bilhete de loteria em que uma hora antes houvesse saído a sorte grande, que faria?

— Somente pelo gosto de enganar o demônio, comprava o bilhete, e recebendo o prêmio, gastava metade em obras de misericórdia.

Estas respostas sossegaram o meu espírito meu irmão que é a virtude cívica, a prima Anica que é a pureza original, a tia Domingas que é a piedade zelosa, não acham que seja pecado aproveitar-se alguém, com intenções inocentes, dos favores da magia, da feitiçaria, e até do inimigo do homem.

A educação, os exemplos, as lições da família formam o caráter do menino e preparam o seu futuro.

Eu já estou na lista dos jurados, e já fiz parte de um conselho julgador; mas ainda sou menino pela minha miopia moral: consultei toda a família sobre o meu caso de consciência e todos os meus parentes votaram pela transação com a magia em proveito do interesse pessoal.

Serenaram pois os meus escrúpulos, e fiquei resolvido definitivamente a ir ao gabinete do armênio à meia-noite em ponto.

O bom velho, meu amigo, ficara de esperar-me perto da nossa rasa para levar-me à do Reis.

Não me despi, nem me deitei e quando ouvi o sinal de onze e meia horas dado pelo sino de S. Francisco de Paula, sai do meu quarto, fui de manso até a porta da rua que um escravo fiel me abriu, e logo depois tomei o braço do bom velho que me esperava e seguimos para o nosso destino.

XII

 

Encontramos o Reis a porta do seu armazém. Entramos.

Faltavam dez minutos para a meia-noite.

— Vamos ter com o armênio, disse o Reis.

E passou adiante para dirigir-nos.

Nunca maldisse tanto da minha miopia física porque achava-me possuído da mais viva curiosidade, desejava e não me era dado ver o que se ia passar, e apenas posso hoje relatar o que o bom velho meu amigo, e o Reis também desde esse dia muito meu amigo, me contaram muitas vezes com todos os pormenores.

Avançamos por um longo corredor; o velho levava-me pela mão e a mão do velho estava enregelada e trêmula.

O Reis repetiu duas vezes:

— Isto não passa de uma comédia, que nos fará rir amanhã: a verdadeira magia está nas maravilhosas realidades das ciências físicas

Mas a voz do Reis estava um pouco alterada e como se o seu coração palpitasse forte, e apressadamente por nervosa agitação.

Chegamos ao fim do corredor, e o Reis levantava a mão para bater a uma porta que nos ficava ao lado esquerdo, quando esta imediatamente se abriu.

Os meus dois companheiros recuaram um passo; eu não recuei porque não vi coisa alguma.

— Como é bom não ver! disse uma voz Cavernosa.

XIII

 

O gabinete do armênio estava todo pintado de negro, tendo em branco os caracteres especiais de todos os dias da lua marcados pelas vinte duas chaves do Tarot e pelos sinais dos sete planetas; no meio do teto também negro via-se a figura do pentagrama em vermelho vivíssimo.

No fundo do gabinete uma mesa servia de altar da magia; junto a ela uma pele de leão tapizava o chão, imenso pano vermelho cobria completamente a mesa, e nesse pano eram mais de cem as figuras cabalísticas pintadas em negro

Sobre o altar maldito descansavam os instrumentos da magia e entre outros a vara mágica, a espada, a taça e a lâmpada; a um lado, no chão, estava a trípode. Globos, triângulos, a figura do diabo, a estrela de seis raios, o abracadabra, as combinações do triângulo, e uma infinidade de símbolos enchiam a mesa e o gabinete.

O armênio mágico vestia a roupa própria do sábado, simples túnica cinzenta com caracteres bordados em seda cor de laranja, tendo ao pescoço uma medalha de chumbo com o sinal cabalístico da Saturno e as palavras ou nomes — Amalec, Aphiel, Zarabiel, e trazia na cabeça um barrete triangular de cor branca com o pentagrama em cor negra.

— Entrai, disse o armênio, tudo está pronto.

Entramos no gabinete, que estava cheio de luz; o armênio sentou-se na tripeça e nós ficamos de pé; ele se concentrava; nós tremíamos.

De súbito o armênio levantou-se, como cedendo a impulso irresistível, e quando ele se levantou os sinos deram o sinal de meia-notie.

— É a hora, disse ele, e tomando a espada, brandiu-a no ar, e as luzes se apagaram.

Ficamos em completa escuridão; mas sentimos e compreendemos que o armênio se movia e laborava, como se estivesse vendo tudo à luz do sol ao meio-dia.

No fim de alguns minutos a lâmpada mágica lançou e manteve uma tênue flama que começou pálida e fraca, pouco e pouco foi se tornando intensa e rubra, e da qual o armênio retirou a ponta da espada, que pareceu tê-la acendido.

Logo depois ele tomou a lâmpada entre suas mãos e deu alguns passos para os quatro lados do gabinete, parando breves instantes em cada um dos lados, e estendendo os braços de cada vez na direção de um dos quatro pontos cardeais, feito o que tornou a pôr a lâmpada no seu lugar, e sobre ela colocou uma peça de ferro composta de três hastes que se firmaram na mesa e que na sua parte superior se aproximavam e eram ligadas por um anel de três correntes de ouro retorcidas, em cima do qual ele depositou um simples vidro côncavo do grau mais fraco.

Em seguida ouvimo-lo exorcizar em latim os espíritos elementares, e falar e evocar as ondinas, as salamandras, os silfos e os gnomos; empregou assim meia hora pelo menos a entender-se com invisíveis e duvidosos ou quiméricos seres.

Apenas acabou de falar, lançou sobre o fogo pequenas porções de diagrídio, escamônea, pedra-ume, enxofre e assa-fétida.

Resistimos às ondas do ativo perfume que inundou o gabinete.

A flama da lâmpada tornara-se viva, brilhantíssima, derramando tanta luz como se mil bicos de gás iluminassem a pequena sala.

A operação mágica adiantava-se, o armênio começou a exaltar-se e bradou com força: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel!...

E a flama da lâmpada redobrou de intensidade, como se obedecesse à voz do mágico.

O gabinete parecia já arder em ondas de luz tão deslumbrante e vivíssima que se diria o fulgor dos relâmpagos demorado, continuado, sem intermitência.

De repente uma faisca se desprendeu da flama da lâmpada e foi, como pequena seta de fogo vivo, cravar-se e estremecer no fundo da concavidade do vidro que estava sobre o anel de ouro; uma tênue bolha de vidro fervente agitou-se em torno da faisca que sem apagar-se tomou a forma microscópica de uma salamandra, o gênio elementar do fogo que banhava-se no fogo, brincava no fogo, aspirava e respirava fogo.

Mas o armênio tocou com a ponta da espada na faisca que fazia ferver a bolha de vidro no fundo da concavidade, e disse com acento dominador:

— Fica aí!

A salamandra microscópica dobrou-se, como fugindo à ponta da espada, e o fogo da lâmpada de rubro que era se tornou pálido.

— Fica ai! tornou ele com voz mais forte ainda.

E a salamandra foi se mergulhando na bolha de vidro fervente, e a flama da lâmpada principiou a vacilar.

— Fica aí! bradou o armênio pela terceira vez.

E a salamandra desapareceu de todo na bolha do vidro que se abateu e sumiu-se sem deixar vestígios, nem depressão nem ruga na concavidade polida, e a espada que firme conservara a sua ponta, onde brilhara a faisca mágica, obedecendo à mão do armênio se retirou.

Imediatamente a flama da lâmpada se extinguiu, como ao sopro de um gênio invisível; reinou outra vez no gabinete profunda escuridão, e logo ao começarem as trevas, pareceu que um suspiro quase imperceptível movera o ar, mas tão de leve, tão sutilmente, como c vôo de uma borboleta.

Era talvez a queixa extrema da salamandra presa; porque ainda se ouviu a voz do armênio, que disse com império de senhor:

— Fica aí, escrava!

Pouco depois iluminou-se de novo o gabinete do armênio, que lançando algumas gotas de um liquido perfumado sobre o vidro que expusera à operação cabalística, retirou este completamente frio do anel de ouro, onde o havia colocado.

Sem dizer-nos uma só palavra, sem parecer ocupar-se da nossa presença, o armênio armou o vidro em um aro de ouro, e no ponto em que o aro circular se liga ao anel destinado ao cordão pendurador, imprimiu sinistro selo, uma letra cabalística, com um sinete de forma triangular, e enlaçou no anel da luneta um cordão finíssimo, em que se entrançavam cabelos de todas as cores, e de diversos animais.

Estava terminada a mágica operação. O armênio me entregou a luneta, e disse-me então:

— Triunfo, e faço mal; mas posso prevenir o mal: criança! tu és inocente e bom, eu me compadeço de ti; escuta.

Recebi tremendo, a luneta, que ainda apenas sentia pelo tacto e não tinha visto pelos olhos, e escutei o armênio, que continuou a falar-me:

— Dou-te uma luneta mágica; veras por ela, quanto desejares ver, verás muito: mas poderás ver demais. Criança! dou-te um presente que te pode ser funesto: ouve-me bem! não fixas esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três minutos; três é o número simbólico, e para ti será o número simples, o da visão da superfície e das aparências; não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto, ou aborrecerás o mundo e a vida.

Eu estava todo trêmulo, e não sabia que dizer.

O armênio disse ainda:

— Esta luneta é a maravilha da magia: por ela verás demais no presente, e poderias ler no futuro; mas o teu coração é bom, e a tua alma é pura, criança; além do número de três minutos está a visão do mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; porque a visão do mal é a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta além do número de treze minutos é a vidência do futuro, e essa eu ta impeço, Cashiel! Schaltiell Aphiel! Zarabiel! eu ta impeço, criança louca: essa luneta fixada além de treze minutos se quebrará em tuas mãos!

E tendo assim falado, empurrou-nos rudemente para fora do gabinete, e trancou-nos a porta.

Voltamos espantados e mudos pelo extenso corredor; o que se tinha passado era tão maravilhoso que nos estava impondo a eloqüência sublime do silêncio.

Chegados ao armazém os meus dois amigos, o bom velho e o Reis, convidaram-me a experimentar logo, ali mesmo, e à luz do gás a minha luneta mágica.

— Não, disse-lhes eu; esta luneta é a minha extraordinária esperança de luz, a luz da noite, se a dá a lua, é emprestada, se a dá a arte dos homens, é artificial; quero, devo esperar o dia, a luz da natureza, quero esperar a aurora, e o sol.

Um homem que espera pela luz, espera pela vida. Eu ainda duvidava do poder mágico do armênio; não quis apagar minha dúbia esperança na mesma hora, na mesma noite em que ela nascera.

Despedi-me do Reis e sai com o bom velho, que ainda se prestou a acompanhar-me.

Quando entrei em minha casa, davam os sinos o sinal de três horas da madrugada.

Pouco falta para romper a aurora e brilhar o sol.

Em breve experimentarei se vejo, como e quanto vejo.

Agora vou fazer por dormir, se puder dormir.

 

Fim da Introdução à Primeira Parte

Visão do Mal

 

I

 

Não me foi possível dormir. Fiquei velando ansioso a esperar pelo dia, como o preso que espera ouvir soar a hora, em que lhe assegurarão a liberdade.

Procurei abreviar o tempo, ocupando o meu espírito naturalmente lembraram-me os conselhos que me dera o armênio.

Refleti.

O mágico me recomendara que me abstivesse de fixar a minha luneta sobre o mesmo objeto por mais de três minutos; porque além de três minutos ela me daria a visão do mal, em que a salamandra cevaria a vingança da sua escravidão encantada.

Deverei eu obedecer neste ponto o conselho do armênio?... compreendo que pobre de espírito como sou, arrisco-me a errar gravemente, querendo deliberar por meu próprio entendimento, e por isso até hoje o mano Américo, que é sábio e justo, sempre tem pensado por mim.

Todavia está me parecendo que ver o mal que se contém em um homem, em uma mulher ou em qualquer objeto pode antes ser útil do que nocivo, porque em todo o caso me servirá para fugir do mal.

Eu não entendo bem o que o armênio chama visão do mal; se porém é simplesmente o que significam as duas palavras, chego a presumir, que a visão do bem há de por força ser mais suave; mas a visão do mal necessariamente mais proveitosa ao homem que faz na terra a viagem difícil e perigosa da vida.

Ora, o que o armênio me proibiu, foi a fixidade da minha luneta por mais de treze minutos, foi a visão do futuro, sob pena de quebrar-se a luneta em minhas mãos, e a semelhante calamidade nunca por certo me hei de expor; ele porém não me proibiu, apenas me aconselhou que me abstivesse da visão do mal.

Assim, pois, o que mais acertado e prudente devo supor, é, se a luneta mágica não for malvada zombaria ou presente da loucura, experimentar uma vez a visão do mal; porque em todo caso conservo c direito e arbítrio de limitar-me daí em diante à simples visão da superfície e das aparências, como diz o mágico.

Foi isto o que refleti, e o que pela primeira vez resolvi por mim sem consultar o mano Américo.

E de novo nesta noite maravilhosa veio-me a lembrança de Eva e reconheci a minha procedência legitima da primeira pecadora; mas em vez de achar na procedência e no primeiro pecado lição contra a desobediência, achei somente desculpa da minha curiosidade talvez temerária.

II

 

A frescura das auras matinais anunciou-me que se aproximava a aurora.

A janela do meu quarto se abre para o jardim e olha para o oriente; lancei-me para a janela abençoada e com a minha luneta na mão deixei-me ficar em pé, imóvel, contando nalma os instantes que iam passando vagarosos.

Eu respirava as exalações deleitosas das flores do jardim, e sentia nos meus cabelos e no meu rosto a doce impressão dos sopros da madrugada.

De súbito perguntei a mim mesmo em quem ou em que faria o ensaio, a experiência do encanto da minha luneta.

Embora eu tivesse acabado de recorrer à magia, o meu coração estava sempre e todo voltado para o céu.

Lembrou-me logo ver uma flor, que e símbolo de pureza; mas rejeitei esta idéia; porque a flor é apenas ornamento da terra.

Preferi ver a aurora que também é flor; mas é rosa do céu.

A aurora! eu nunca tinha visto a aurora! ouvira ler vinte, cem descrições da formosa precursora do sol, e chorara vinte, cem vezes por não poder admirar a diva matutina que recebe diário culto dos turíbulos das flores e da música dos passarinhos.

f: a aurora, é a rosa do céu que, antes de tudo mais, quero ver... se puder ver; e a aurora que é pura, que é o sorrir do sol mandado de longe à terra, é a aurora que eu contemplarei por mais de três, por dez minutos sem temer a visão do mal: porque no seio e através da aurora só poderei ver o sol, que é majestade pela luz, vida pelo calor, providencia pela regulação do movimento dos planetas.

III

 

E estremeci, ouvindo o canto dos passarinhos no jardim, e o ruído e a festa da natureza, saudando o despontar da aurora.

Era tempo; mas demorei-me ainda, aspirando mais luz, mais brilhante alvorecer no horizonte; o meu coração palpitava com força, a minha alma estava nadando em mar de esperanças e de temores: enfim minha mão se ergueu convulsa... fixei a luneta...

Oh! felicidade!... oh, supremo gozo!... eu vi!... eu adorei a aurora!

Ah! contemplei esse quadro ao mesmo tempo gracioso e magnífico de rosas de fogo suave, esse rubor da virgem do oriente acendido pelo beijo de fogo brando que o sol na face lhe imprime!

Como é bela, esplêndida, fresca, sublime a aurora! não se descreve: é como o primeiro despertar de noiva formosa no leito nupcial, mistura de glória e pejo, de pudicícia e de flamas que fazem corar... é o indizível... o céu abrindo-se à terra.

Eu estava embevecido a olhar a aurora pela minha luneta mágica, admirava, apreciava uma a uma todas as pétalas daquela rosa do oriente que resume mil rosas, todas as nuanças daquelas tintas de fogo saídas dos pincéis dos ralos do sol...

Esqueci o tempo a olhá-la... sem dúvida eu ia já além de três minutos. . .

E de repente as rosas fulgurantes foram se apagando... vi uma nuvem negra, feia, horroroso, preparando em seu seio tempestade violenta, senti a trovoada e o raio, as trevas perto da luz, o estridor abafando o trinar das aves...

Vi o sol, mas não senti nem a luz da majestade, nem o calor que fecunda, vi os raios de ardor desastroso que crestam as plantas e preparam a miséria e a fome; vi raios que pela insolação tinham de produzir a loucura, vi raios que forjados para vibrar sobre os tanques de águas estagnadas, e sobre os pauis, iam levantar, espalhar miasmas e com eles derramar a peste e a morte sobre os homens, vi o sol — não formoso — mas cheio de manchas; vi o sol — não fonte de vida — mas senti a sua força atrativa forjando só os terremotos, os cataclismos, o horror...

Recuei assombrado... a luneta mágica abandonada pela mão que a sustinha, caiu-me no peito... nada mais vi, exclamei porém com dor profunda:

— Meu Deus!... como a aurora e enganadora e falsa!...