Eduvirges me ofereceu a mão que eu beijei respeitosamente, e Nicota me apresentou a fronte cândida, na qual toquei com a ponta dos meus lábios.
Tanta gratidão por duas assinaturas! tanto reconhecimento pelo saque e pelo endosso de uma letra, que o velho Nunes pagará em quinze dias!
Que família de anjos!
Eu nunca me senti tão feliz, como nesse dia.
Fiquei para jantar com aquela boa e santa gente.
A mesa do jantar bebi vinho no mesmo copo em que Nicota, sentada a um lado, apenas molhara os lábios; foi ela que trocou os nossos cálices, e seus pais não viram essa travessura, ou meiguice de moça inocente.
Como achei saboroso e excelente o vinho! pareceu-me sentir nele a delícia de um beijo de Nicota.
Bebi somente um cálix de vinho; aquele que Nicota divinizara com o contato da sua boca mimosa.
Se eu bebesse mais, ou de outro vinho, teria sido sacrílego.
— Sai da casa do velho Nunes, como um rei sai do templo, onde acaba de celebrar-se o ato da sua sagração.
XV
Graças a intervenção de pessoa competente, foi-me concedido, a poucos dias, o visitar a Casa de Correção: vi e apreciei tudo, e tudo ali me pareceu levado ao último apuro da perfeição.
O sistema administrativo do estabelecimento, a secretaria e livros de escrituração, as obras que se faziam, as disposições internas e até o local da casa, o método penitenciário adotado, a alimentação e tratamento dos presos, o zelo dos empregados enlevaram-me os sentidos.
Eu estava cheio de admiração, vendo e aplaudindo a sabedoria e a solicitude do governo do meu país naquela grande penitenciária, quando me levaram a correr as oficinas onde trabalhavam os condenados.
A princípio contemplei satisfeito o aspecto das oficinas, a excelência das obras que se executavam e sobretudo a importância moral do trabalho, cujo hábito regenerará os criminosos, fazendo de nocivos que eram, homens úteis à sociedade aqueles desgraçados.
Mas logo depois examinando com a minha luneta e pela visão do bem um por um todos os condenados, horrorizei-me da cegueira, da ignorância, ou da perversidade da justiça pública, dos tribunais, e dos juizes.
Será incrível; mas é verdade: não há um só daqueles infelizes condenados que não seja inocente dos crimes que lhes imputam, e todos eles, todos sem exceção, se distinguem por virtudes raras e pela moralidade mais exemplar!...
Eu estava convulso, irritado, aceso em fúria; veio-me a idéia soltar um brado de revolta, excitar as pobres vitimas à resistência, às armas, e à vingança; lembrei-me porém a tempo dos soldados que guardavam o estabelecimento e fugi das oficinas precipitadamente e bramindo de cólera.
Voltava para casa dominado por pensamentos perigosos, e revolucionários, e desejoso de uma profunda transformação social, que acabasse com os algozes, e salvasse as vítimas; mas de súbito parei: a casualidade me mostrava um grupo de cinco homens, conversando alegremente na rua, onde acabavam de encontrar-se; conheci a todos cinco: três eram desembargadores, e dois eram juízes de Direito, portanto presidentes de júri; simples aplicadores da lei, ou fiscalizadores das nulidades, e das regras legais dos processos, eram contudo magistrados, e tendo contribuído para a condenação e tormentos de tantos inocentes, os monstros ainda podiam conversar com alegria!
Fitei sobre eles a luneta mágica, estudando-os um por um para inteirar-me de todos os instintos ferozes ocultos em seus corações de tigres...
E cinco vezes caí das nuvens e fiquei adoidado na terra...
Todos esses cinco magistrados são sábios, íntegros, justiceiros, escrupulosos e até aquele momento nenhum deles tinha jamais contribuído para uma só condenação injusta nem lavrado sentença nem lado o mais simples despacho que não fossem inspirados pela sabedoria, e baseados na lei.
A minha confusão não pode ser maior: os condenados eram inocentes, os condenadores tinham sentenciado com acerto; a contradição tornara-se pois evidente!
Como explicar a contradição?
Uma de duas:
Ou provas fortíssimas, porém de falsidade infelizmente não conhecida, tinham, condenando os réus, justificado os juizes;
Ou a minha luneta mágica mentia, enganava-me com a visão do bem.
f: claro que adotei logo a primeira hipótese.
Cumpre-me dizer, que ainda assim refleti um pouco sobre o caso.
Com efeito a mocidade inexperiente é crédula demais, e deixando-se levar pelas aparências, dando fé às palavras de quem jura, sensibilizando-se diante do infortúnio, fácil em tomar o partido de quem chora e sofre, vendo em todos e em tudo o riso e o bem, porque ela é risonha e boa, deixa-se iludir e erra, presumindo ou julgando encontrar a virtude e a inocência, onde mil vezes só existe vício e crime.
Mas estas reflexões não têm cabimento no caso de que me ocupava; porque eu vi, e reconheci perfeitamente pela minha luneta mágica a inocência e a pureza de todos os condenados da Casa de Correção, embora eu visse e reconhecesse também logo depois o direito e a justiça que determinaram suas condenações.
Confesso que esta aparente contradição confundiu-me; já porém a expliquei sem quebra da confiança que deposito na visão do bem que tenho pela minha luneta mágica.
XVI
Um jovem da minha idade, grande coração, e alma cândida, Damião chama-se ele, excelente amigo, com quem me relacionei na casa de Esmeralda, levou-me anteontem por curiosidade minha, e a despeito das suas judiciosas observações, a uma casa, onde jogam o lansquenê três vezes por semana cavalheiros da mais fina educação.
O dono da casa é casado com uma senhora amabilíssima que toca piano como Hertz, e tem uma cunhada na primavera dos anos, que possui surpreendente voz de contralto, canta como a Stoltz, e é faceira, e linda; o seu nome é Hermínia, e não posso esquecê-lo mais; porque ela é a trigésima quarta senhora, por quem me sinto perdido de amor, e que me tributa igual sentimento.
Ninguém me censure por este muçulmanismo de amor platônico: sou escravo da visão do bem e amo sem querer amar.
Aproveitei duas horas deliciosas ouvindo tocar e cantar; todos porém jogavam, Damião mo fez notar, aconselhando-me que saísse ou jogasse.
Compreendi que o dever da cortesia me ordenava entrar no jogo.
Joguei pois e ganhei a principio; mas em breve a fortuna mudou e perdi não só quanto ganhara, como todo dinheiro que na carteira levava.
Consolei-me do prejuízo, observando que o meu amigo Damião fora de todos o que mais lucrara com as minhas perdas, que se elevaram a quinhentos mil-réis.
Quando não tive mais dinheiro para perder, deixei o jogo, e como as senhoras já se haviam recolhido, sai, e saiu comigo um outro jogador infeliz, que deixara aos carteadores do lansquenê o duplo do que me custara a minha curiosidade.
— São gatunos, arranjadores de maço, são refinados ladrões! disse-me ele.
— Para que tal suspeita? respondi; queixemo-nos da fortuna adversa; eu observei e estudei com escrupuloso cuidado todos aqueles jogadores, e posso assegurar que são homens honrados, e que jogaram com exemplar lisura, e nem o meu amigo Damião seria capaz de trazer-me a uma casa que não fosse muito moralizada e honesta.
— Damião?!!! ora é boa! esse é conhecido como trapaceiro e gatuno de profissão.
Coraram-me as faces, e irritado perguntei:
— Em tal caso como se explica a sua condescendência, jogando com semelhante homem?
— Tem razão, tornou-me ele; tem mil vezes razão; mas eles sabem atrair e endoidecer os mancebos inexperientes, como nós, com a paixão do jogo que é fatal, e com os belos olhos dessas duas sereias, que uma toca, outra canta, e ambas servem ao vício.
— Que está dizendo? que calúnia!... duas senhoras pudicas, recatadas! . . .
O meu companheiro de infelicidade ao jogo desatou estrepitosa gargalhada, e depois exclamou sem baixar a voz:
— O senhor é ainda mais simples do que eu! Tenha cuidado...
— A esposa, e a cunhada...
— Não há esposa, nem cunhada, fique-o sabendo, e não torne mais a esta casa maldita. Essas duas mulheres são também cartas do jogo aladroado, são damas dos baralhos do lansquenê, e ganham sua quota ou porcentagem do barato que rende o jogo em cada noite, além dos lucros das conquistas que fazem, namorando os tolos como eu.
E assim dizendo, o jogador infeliz retirou-se apressado.
Eu também encaminhei-me para a minha casa, meditando sobre a injustiça dos homens.
Aquele jogador irritado pelos prejuízos que tivera, não hesitara em caluniar os perclaríssimos cavalheiros com quem acabava de jogar, e duas jovens senhoras, tipos de delicadeza, de fina educação, e de virtudes sem mancha, conforme eu a vi, amei, e adorei pela visão do bem.
No jogo alguém havia de perder, e alguém havia de ganhar.
Chamar ladrão e gatuno, a quem ganha no jogo, é desconhecer as condições, a fortuna, as eventualidades do jogo.
Deste modo e com juízos tais não há inocência, nem probidade, que escape aos aleives do jogador infeliz.
Ainda bem que eu perdi. Estou livre de qualquer suspeita injuriosa, e nunca mais em minha vida tornarei a jogar.
Mas o que em suma, e em caso algum admito é que os botes da calúnia cheguem até os anjos.
Hermínia e sua irmã são duas flores, principalmente Hermínia e uma flor, um botão de rosa do paraíso.
XVII
Ontem achei a prima Anica pensativa e triste; à mesa do almoço olhava-me melancólica, e como que levemente ressentida do meu proceder; por duas vezes pareceram-me os seus olhos nadando em mal contidas lágrimas.
Sai de casa magoado, triste, e convencido de que eu era cruel, que não sabia apreciar o merecimento de Anica.
Compreendi que me era preciso consolá-la: é tão fácil consolar a pobre donzela que ama! Basta um sinal que dê testemunho de lembrança, uma flor que indique amoroso sentimento.
Eu tenho os meus direitos de primo e de convivência de família resolvi-me pois a levar nesse mesmo dia a Anica um mimo delicado e agradável à inocente vaidade de seu sexo.
Impelido por essa idéia dirigi-me à Rua do Ouvidor, e empreguei quatro horas nas casas de joalheiros e de modas a procurar debalde uma jóia ou um enfeite de bom gosto para levar de presente a minha querida prima.
Procurei debalde! Não que deixasse de encontrar algum objeto que me agradasse; mas porque todos quantos vi e examinei com a luneta mágica me agradaram tanto, me pareceram tão igualmente bonitos e mimosos que não me foi possível determinar a preferência.
Ninguém pode conceber que extravagante, pueril, ridícula, mas indeclinável e imperiosa luta se travou em meu espírito! A princípio cheguei a rir-me de mim mesmo, depois irritei-me e por fim desesperei! Se me decidia a comprar uma pulseira, a lembrança de uns brincos que antes examinara destruía-me a decisão; se um cinto com primorosa fivela estava quase a passar para as minhas mãos, a imagem de um faceiro relógio fazia recuar o cinto; entre uma linda caixinha guarda-jóias e um formoso álbum de retratos eu vacilava, como sobre tudo mais e nada decidia, e nada decidi! em uma palavra, quis e não pude preferir, quis e não pude comprar objeto algum! . . .
Senti-me ridículo, escravo inexplicável, inconcebível da irresolução mais insensata; a minha razão me aconselhava comprar qualquer daqueles objetos que me haviam parecido igualmente bonitos; mas que querem?... não sei explicar o fenômeno; mas foi-me impossível escolher um entre todos, porque a escolha dependia de preferência.
Reconheci então e pela primeira vez que eu era o ludibrio da visão do bem.
Voltei para casa aflito, e aborrecido de mim próprio; porque não pudera trazer um mimo para a prima Anica.
Recolhi-me ao meu quarto e refletindo sobre o que se passara comigo nos últimos dias, experimentei pungente dor; porque comecei a arrecear-me das conseqüências da visão do bem, e a nutrir algumas apreensões sobre o estado das minhas faculdades mentais.
Oh! não há sabedoria de homem que possa comparar-se com a sabedoria do armênio.
O armênio me avisou e não mentiu.
A visão do bem pode fazer mal.
XVIII
Ainda um outro mês, e neste o mel mudado em fel, a alegria em tristeza, a bonança em tempestade.
A medida que os dias se iam passando, a visão do bem se tornava mais imponente, absoluta, e desastrada.
Ao levantar-me da cama de manhã, ou tendo a qualquer hora de vestir-me para sair, era-me indispensável deixar de lado a minha luneta; porque se com ela tentava escolher as vestes, achava todas preferíveis, e não sabia mais como vestir-me.
A mesa era-me preciso comer às cegas do que me quisessem servir; porque se com a luneta examinava as diversas iguarias, não sabia mais por qual delas começar, aceso em paixão gulosa por todas elas.
Nos saraus a que eu ia, ou não dançava, ou pedia os meus pares sem consciência, e expondo-me a ridículos pedidos, dirigindo-me às vezes a senhoras, cuja idade não autorizava mais a dança, e isso porque, se eu contemplava as jovens presentes ao baile com a minha luneta, por todas elas me enlevava e me perdia, e a nenhuma era-me possível dirigir-me em primeiro lagar.
É certo que durante três minutos a luneta mágica só me oferecia a visão das aparências, e que eu devera não ir além desse espaço que era sem perigo; desde que porém eu fixava a luneta, uma força sobrenatural, superior a minha vontade, mais forte que a minha reflexão e consciência a grudava, a prendia à órbita até que a visão do bem me transportava, tornando-me escravo da admiração por atributos e dotes sempre fascinadores.
Era o bem mais maléfico que se pode imaginar!
Ou porque o tormento que se está experimentando sempre se afigura mais cruel do que o tormento que já se experimentou e passou, ou porque realmente eu sofria mais do que havia sofrido, a visão do bem chegou a parecer-me pior, mais funesta, do que a visão do mal.
A visão do bem realizava em mim o martírio de Tântalo.
Eu vivia mergulhado no bem e não podia gozar, desfrutar o bem.
Eu estava com os olhos no céu e com o coração preso no inferno.
XIX
Um dia tive desejos de possuir um bom cavalo de passeio; falei nisso a Damião, que em breves horas me levou a um negociante que dizia ter os melhores ginetes, e que me apresentou um com as recomendações mais entusiásticas.
Examinei o animal, e achei-o formosíssimo; o negociante asseverou-me e jurou que o cavalo era leão pela soberbia, ovelha pela mansidão, camelo pela paciência, águia pela velocidade.
Comprei caríssimo o singular e maravilhoso cavalo, e mandei-o recolher a uma cocheira.
No dia seguinte quis experimentar o meu ginete, e o dono da cocheira se opôs a isso, informando-me que o pobre animal era cego, e aberto dos peitos.
Revoltei-me contra o abuso de confiança, de que eu fora vítima, e fixando a minha luneta mágica, examinei de novo o cavalo, e reconheci que ele havia cegado de súbito e de súbito adoecido na noite que última passara, conservando ainda assim todos os sublimes dotes, que o vendedor exaltara.
Carreguei com o prejuízo; mas em todo caso honrando o testemunho leal, verdadeiro, consciencioso do negociante de cavalos.
XX
Vi-me constantemente cercado de amigos, em quem aplaudi e venerei virtudes exemplares; paguei-lhes jantares e celas, e a quase todos emprestei dinheiro, que não me restituíram somente porque a fortuna lhes correu adversa.
Paguei flores, coroas e ovações em honra de atrizes dos diversos teatros, todas elas artistas de merecimento surpreendente, e de um proceder ilibado, que só os caluniadores e os perversos punham em dúvida, e recebi em compensação de quantas despesas fiz pela glorificação da arte, sorrisos e votos de eterna gratidão que em seus camarins onde as fui entusiasmado cumprimentar, me renderam essas sublimes intérpretes das sublimes criações dos nossos autores dramáticos, que a minha luneta mágica me mostrou pela visão do bem enriquecidos pelo seu trabalho, altamente honorificados pelo governo, e endeusados pelo povo.
Joguei na praça associando-me com um inglês, que é, pelo que me informou e esclareceu a visão do bem, o homem mais probo do mundo; mas as vacilações e subidas e descidas dos fundos públicos e ações dos bancos e de companhias foram tais, que eu perdi alguns contos de réis e o meu sócio inglês ganhou o dobro do meu prejuízo, o que ainda a minha razão não compreendeu; mas que a visão do bem elucidou perfeitamente, resplendendo os merecidos créditos de probidade e inteireza do nobre súdito de S. M. Britânica.
A visão do bem impeliu-me ainda a muitos outros atos, de que me desvaneço, mas que me custaram caro.
Contribui, subscrevi não sei para quantas liberdades de escravos, obras pias, dotes de donzelas órfãs, instituições filantrópicas, benefícios teatrais em favor de cegos e aleijados, socorros para indigência e nem me lembra que mais; Damião, a Esmeralda e vinte outras amáveis ou respeitáveis pessoas apresentaram-me as subscrições, e receberam-me as quantias com que contribui para todas essas obras de caridade, e estou certo de que o meu dinheiro foi muito bem empregado; porque a visão do bem mo assegura.
Mas na última quinzena deste mês, de que dou conta, têm sobrevindo fatos, e tenho ouvido apreciações terríveis que me provam, que ou fui vitima dos mais pérfidos enganos, e perversos abusos de confiança, ou a calúnia, e a maldade dos homens, que aliás reputo puríssimos, vão além de todos os limites.
XXI
Alheio aos negócios e não conhecendo bem o valor do dinheiro; porque em conseqüência da minha dúplice miopia, miopia moral e física, meu irmão, como ia tenho dito por vezes, tomou conta da minha fortuna, e sabiamente a dirigiu, eu, neste último mês e meio despendi talvez sem cuidado nem medida, deixando-me dirigir pela visão do bem.
Deste erro, se foi erro, não tenho mais desculpa na miopia moral; porque desde que recebi as lições da visão do mal o meu espírito se esclareceu e tive consciência de que sabia e podia compreender as coisas e refletir sobre elas; ao menos porém eu acho escusa no abandono da minha educação em matéria de economia. Como não me era possível gastar, não me ensinaram a guardar, e em resultado quando pude ver e desejar, despendi sem me importar com a conta das somas que despendia.
Creio firmemente que tenho despendido muito bem; mas é certo que o mano Américo logo na primeira quinzena do mês último observou-me com doçura que eu estava gastando despropositadamente.
A visão do bem fez-me então ver, que o mano Américo assim me falara somente pelo escrúpulo com que zela a minha fortuna; confesso porém que me senti acanhado, e que experimentei verdadeira dificuldade de pedir mais dinheiro a meu irmão.
Eu já contava tantos e tão excelentes amigos que não hesitei em confiar a um deles os embaraços da minha situação.
— Há recurso fácil, respondeu-me esse fidus Achates, levo-te a um escrupuloso negociante que te emprestará todas as quantias de que precisares.
E com efeito conduziu-me à casa do mais nobre, benéfico, e generoso capitalista, que me, foi emprestando dinheiro a juros de três por cento ao mês, e assinando eu letras garantidoras das dívidas.
O processo me pareceu comodíssimo; porque eu obtinha por meio dele e com extraordinária facilidade tanto dinheiro, quanto me julgava necessário.
A minha vida econômica deslizava-se pois plácida e suavemente, e a visão do bem a abençoava, ensinando-me, que eu empregava santamente, e acertadamente algumas migalhas da minha inesgotável riqueza.
E fui vivendo assim até que em um dia rebentou a primeira bomba de uma girândola de loucuras, conforme a chamou o mano Américo.
Eu fiquei então estupefato.
XXII
O caso foi o mais simples de todos os casos, ao menos pelo que me pareceu.
Vencido o prazo da letra aceita pelo velho Nunes, e que eu assinei como endossante e sacador, não tendo ido o aceitante pagá-la, veio pessoa competente exigir de mim o pagamento.
Eu estava em casa e também o mano Américo que tomando o documento e vendo a minha assinatura, encrespou as sobrancelhas, escreveu sem hesitar uma ordem para imediatamente ser paga e remida a letra não sei, nem me importa saber como e por quem.
Ficamos sós.
— Simplício, disse-me o mano Américo de mau humor; acabas de ser vitima de um velhaco.
— Velhaco? Não o creio.
— O Nunes? Todos o conhecem.
— Melhor o conheço eu.
— Como?
— Estudei-o perfeitamente por meio da minha luneta mágica que me dá a visão do bem. O velho Nunes é um tipo de probidade.
Américo olhou-me com a mais triste compaixão e tornou-me:
— Dez contos de reis! Deus permita que não seja esta a primeira bomba de alguma girândola de loucuras.
E tomando o chapéu, saiu apressado e como que abismado em mar de negras apreensões.
Eu estava espantado.
Para mim não havia nada mais natural, do que o velho Nunes não ter conseguido obter dez contos de réis no prazo fatal, e conseqüentemente pagar eu por ele.
Ninguém seria capaz de convencer-me de que o velho Nunes deixaria de pagar-me os dez contos de réis que eu apenas adiantara.
Era questão de tempo, demora de alguns dias ou de breves semanas.
A visão do bem não me enganava: o meu amigo Nunes é rígido como Catão, probo como a probidade mais austera.
E além de tudo isso, não é ele o feliz pai da formosa Nicota?
XXIII
Quando meu irmão entrou para jantar, tinha eu a luneta fixada, e quase o desconheci, tão descomposta pela cólera estava a sua fisionomia.
— Quebra essa luneta! exclamou furioso e com voz de trovão.
Ele avançava sobre mim; mas eu escondi no seio a luneta, e a tia Domingas e a prima Anica vieram correndo em meu socorro.
— Que é isto? perguntou a primeira assustada.
— É este doido, este frenético esbanjador, que em menos de dois meses atirou ao meio da rua trinta e dois contos de reis!...
— Misericódia! exclamou a tia Domingas.
— É possível?... disse Anica, perguntando-me.
O mano Américo trêmulo e agitado arrancou do bolso uma dúzia de letras aceitas por mim e que ele acabava de resgatar, pagando o principal e prêmios ao meu honradíssimo banqueiro, e mostrou-as às duas senhoras.
— Eis aí como este louco obtinha dinheiro para desastradamente esbanjar, fazendo avultados empréstimos a quantos velhacos quiseram abusar da sua mania, jogando e deixando-se roubar no jogo, pagando jantares e celas a cem desfrutadores, que riem-se dele, assinando centenas de mil-réis em falsas subscrições para obras pias e, o que é mais, entregando enormes somas a uma mulher desprezável, a cujos pés o idiota se ajoelha, adorando-a, como anjo de caridade!
A tia Domingas e a prima Anica pronunciaram-se violentamente contra mim, e com o mano Américo cantaram-me o mais horroroso terceto.
Conservei-me silencioso e imóvel; mas tremendo pela minha luneta mágica.
— E eu que não vi, que não adivinhei, que não compreendi o que se foi passando e naturalmente devia passar-se nestes dois meses!!! a bomba dos dez contos despertou-me hoje, sai, procurei informações; todos sabem, e somente nós ignorávamos, todos me indicaram o usurário que empresta dinheiro, e o exército de bargantes que depenam este imbecil!.. Todos zombam dele, e devem zombar; porque o néscio esbanjou em menos de dois meses a terça parte pelo menos da fortuna que possuía!
Meu irmão tinha-me insultado tanto, que não pude mais conter-me e respondi-lhe:
— Ainda bem que foi da minha fortuna o dinheiro que despendi: já tenho idade bastante para empregar o meu dinheiro, como entendo, e sem pedir licença nem dar contas a alguém.
O tercéto rebentou de novo e uma chuva de impropérios e de maldições caiu sobre mim.
— Idade! exclamou enfim o mano Américo, dominando as outras duas vozes: os néscios, os idiotas não têm idade, e aos idiotas e dissipadores nomeia-se um curador!
— É o que cumpre requerer imediatamente, bradou a tia Domingas.
— O mais acertado é não deixar o primo sair à rua, observou Anica.
— Tudo isso se fará; mas o essencial é quebrarmos-lhe lá a maldita luneta, disse Américo.
— Não, acudiu Anica; trancado em casa pode bem conservar a luneta para ver e apreciar os parentes que o não enganam...
— Nada de concessões! gritou meu irmão.
Eu tive medo; olhei em torno de mim e nada vi; porque estava sem luneta, lembrou-me porém o gabinete do mano Américo, e de improviso corri para ele, tranquei-me por dentro, e com tanta precipitação que dando volta à chave, esta saiu da fechadura, e foi cair a alguns passos longe da porta.
XXIV
A borrasca ribombava sempre e incessante na sala e eu era de continuo fulminado pelos raios de três cóleras em delírio: doestos, injúrias, aleives, pragas, insultuoso ridículo, tudo me lançavam com furor. Três ódios a falar não falariam mais venenosamente, três línguas-punhais a ferir não feririam mais profundamente.
O meu ressentimento dissipou o medo que me abatera o espírito; veio-me a vontade de examinar esses três semblantes desfigurados pelos sentimentos mais vis.
Fixei a minha luneta mágica, olhei pela abertura que deixara a chave caída da fechadura, e estudei os meus odientos parentes: apreciei primeiro olhos e faces que se abrasavam no fogo da ira, lábios convulsos, gesticulações ameaçadoras, e logo depois que pureza de intenções e que santidade de desígnios!... Meu irmão, minha tia, e a prima Anica, se mostraram tais quais realmente são, três querubins, então radiantes de fogo não de cólera, mas de verdadeiro amor, de sublime interesse por mim!... Estavam aflitíssimos e em dolorosa agitação; porque me supunham perdido no erro, e ludibrio de malandrins. O erro era dos meus três parentes e meu o acerto; mas as intenções deles indisputavelmente eram nobres, leais, desinteressadas, angélicas.
No meio porém dessas intenções veneráveis descobri firme e inabalável no animo de meu irmão a de quebrar a minha luneta mágica, e embora eu reconhecesse e reconheça a piedade dessa intenção, não pude com ela conformar-me; abençoei meu irmão, minha tia, e a prima Anica; mas tomei a peito salvar a todo transe a minha luneta mágica.
Eu estava vestido decentemente para sair à rua, só me faltava chapéu para a cabeça e porta franca para a retirada.
Com o auxilio da luneta achei no gabinete um chapéu do mano Américo, que me servia muito nas circunstâncias em que me achava, embora estivesse um pouco usado.
Faltava-me a porta para saída sem oposição; mas o gabinete abria uma janela para rua; o caso era grave e exigente; não havia recurso, e havia risco na demora da resolução; há tanta gente que de dia claro e com sol fora se presta a entrar pelas janelas em vez de entrar pelas portas, que não me pareceu anormal nem escandaloso no Brasil sair por onde se entra de ordinário para as mais altas posições do Estado.
Assim pois subi à janela do gabinete, e saltei na rua; ouvi gargalhadas, e não dei atenção a elas; apressei os passos, quase que corri, enfim afastei-me apressado da casa da minha família, como um preso, que se escapa e foge da cadeia.
XXV
Quando me achei longe de casa e me supus livre, por algum tempo ao menos, da generosa perseguição da minha família, instintivamente procurei a luneta mágica, e senti inexprimível prazer, tirando-a do seio; em seguida apalpei o bolso do paletó, e consolei-me encontrando nele a carteira, onde eu tinha ainda de reserva alguns centos de mil-réis.
Duplamente satisfeito, experimentei logo uma exigência da minha natureza animal que as recentes emoções haviam feito calar, mas que de novo falava com dobrada força: tive fome, e dirigindo-me a um dos nossos melhores hotéis, tomei sala para dormir, e mandei que me servissem o jantar.
Como é grandioso, sublime o sentimento da amizade, quando pronto corre a cercar o amigo caído na adversidade!
Apenas sentei-me para jantar, vi-me de súbito cercado por Damião e mais seis outros mancebos que me eram dedicados, e se tinham apressado a vir em meu auxílio, e a oferecer-me os seus serviços, pois que a cidade toda já sabia, o que comigo acabava de passar-se.
Com lágrimas de reconhecimento agradeci tão doce demonstração de interesse e de estima, e convidei a esses excelentes amigos para jantar comigo.
Que duas horas gozamos! A nossa mesa foi sucessivamente servida das mais delicadas iguarias, e dos vinhos mais generosos, que deliciosamente nos prenderam juntos até o anoitecer.
Acabado o jantar, declarei com franqueza que precisava descansar e imediatamente os meus ótimos amigos deixaram-me só, retirando-se a rir não sei mesmo de quê.
Ia recolher-me, quando me apareceu o dono do hotel ou chefe da casa, a quem eu já perfeitamente conhecia e estimava, como homem de verdade, singeleza e consciência.
— Sr. Simplício, disse-me ele; eu devo prevenir a V. S.ª de que esses sujeitos que daqui saíram, são todos parasitas de profissão, e exploradores da inexperiência; o senhor deu-lhes um jantar, que lhe custa cento e trinta mil-réis, e eles desceram a escada a rir descompassadamente da sua boa-fé, a que ousavam dar outro nome que não me animo a repetir.
Fixei a minha luneta mágica sobre o homem que me falava, e com espanto meu a visão do bem me fez reconhecer que ele dizia sempre e ainda desta vez a verdade; mas a visão do bem ainda também à mesa do jantar me mostrara como protótipos de amigos fiéis e dedicadíssimos os sete mancebos que acabavam de retirar-se! . . .
Fiquei suspenso, perplexo, indeciso, triste e aborrecido.
Paguei o jantar; fui deitar-me, e ou pela fadiga resultante das fortes emoções, por que naquele dia passara, ou pela mistura dos vinhos que bebera sem dúvida menos sobriamente do que costumo, adormeci logo, caindo em profundo sono.
Despertei às duas horas da madrugada, e a meu despeito, velei até o amanhecer.
Revolvia-me na cama, contra mim próprio excitado; porque não queria refletir sobre a minha situação; mas refletia.
Cerrava os olhos para dormir; mas o espírito velava.
Chamava em meu socorro a imaginação que por momentos perturbava com ilusões forçadas a série de graves reflexões; mas em breve a imaginação se apagava, e as frias reflexões se impunham.
A força, a meu despeito embora, não dormi e refleti.
Evidentemente eu tinha despendido muito em mês e meio... mais de quinhentos mil-réis por dia, três vezes mais do que a renda anual da minha fortuna, segundo os cálculos de meu honradíssimo irmão.
Tão avultada desposa (que eu estou certo que empreguei com proveito da humanidade), sem dúvida, conforme os costumes e o modo de ver da sociedade egoísta, e dos homens da lei que não julgam pelo coração nem pelo Evangelho, será explicada, recebida e sentenciada como dissipação, e por conseqüência, e até por amor da minha pessoa, me darão um curador!...
A visão do mal me expôs a ser trancado por doido no hospício de Pedro II, a visão do bem expõe-me a ser declarado néscio, ou idiota, ou por muito favor apenas dissipador da minha fortuna, e como tal confiado, entregue absolutamente ao domínio de um curador, de um dono e árbitro da minha pessoa, de um senhor de quem serei quase escravo!
Pela visão do mal ou pela visão do bem, pelo ódio ou pelo amor da humanidade, pelo juízo mau a respeito de todos ou pelo juízo bom a respeito de todos, as duas lunetas mágicas levaram-me ao mesmo perigo, ao mesmo fim, a mesma calamidade.
Uma, a primeira me fez passar por doido; outra, a segunda, me faz passar por néscio! Doido ou néscio, não escolho; porque a conseqüência é a mesma.
O meu curador será provavelmente o mano Américo, que concebeu e lá manifestou a horrível idéia de quebrar a minha luneta mágica.
Portanto querem condenar-me à miopia perpétua, miopia que para mim é a cegueira, é a morte no seio da vida!
Desejo, tenho o direito de desejar ver, que é viver, e não querem permitir que eu viva, não me permitindo que eu veja!...
Não! não! e não!
Hei de até o extremo defender a minha luneta mágica.
E certo que começo a conceber algumas desconfianças em relação ao acerto e à infalibilidade das revelações da visão do bem.
As contradições que notei entre a inocência dos condenados da casa de correção e as sentenças sempre instas dos magistrados, e entre os sentimentos dos amigos que ontem jantaram comigo, e os avisos leais e cheios de verdade do dono do hotel desacreditam um pouco no meu conceito a visão do bem.
Se a visão do bem fosse o apólogo vivo, a expressão real da inexperiência; se pela visão do bem eu me tenho tornado o escárnio dos parasitas, o ludibrio dos trapaceiros, a zombaria de todos, o objeto da mofa e do ridículo do povo... ah! eu preferia ter sido fulminado por um raio...
O ridículo!... o ridículo é a queda no charco; é o aviltamento sem compaixão; é o pelourinho mil vezes pior que o patíbulo; é o azorrague mais cruel que a guilhotina; é a morte pelo desprezo...
Quero antes a perseguição do ódio, do que o acompanhamento do ridículo...
E dizem que riem-se de mim... que me apontam, como estúpida vitima de homens sem consciência, e de uma mulher sem brio, e sem coração...
Eu sei, e sinto, eu tenho consciência de que tudo isso é falso; mas riem-se de mim!...
Que hei de fazer?... nem sei; quebrar a minha luneta magica, origem e causa de todas estas torturas do espírito?... não; menos isso.
O erro dos homens é patente: quem vive e procede com acerto, sou eu.
Resistirei pois aos homens, e me deixarei matar, defendendo a minha luneta mágica que meu irmão condenou.
Eu refletia assim, e tinha ia esquecido as horas e o empenho de escapar às reflexões, dormindo, quando a aurora principou a espancar as trevas, e as auras matinais, refrescando o meu cérebro, me aditaram de novo e insensivelmente com o mais tranqüilo e suave sono.
XXVI
Levantei-me às dez horas da manhã, e tinha acabado de almoçar, ouvindo o sinal de meio-dia.
Dispunha-me a sair; mas vi entrar o meu amigo Reis, que vinha de propósito visitar-me.
No Reis depositava eu e deposito confiança sem limites. Ou todos o julgam pela visão do bem da minha luneta mágica, ou se eu me engano no juízo que faço do Reis, todos se enganam comigo.
Recebi o amigo Reis, como um cego, a quem se anuncia o primeiro raio de luz, e com ele a vida pelos olhos.
Apertamos as mãos, e nos sentamos um ao lado do outro.
— Temos sofrido muito ambos, e pelo mesmo erro, disse-me o Reis.
— Como?
— Eu errei, deixando-o entregar-se a um pretendido mágico; o senhor errou acreditando exageradamente nele.
— Mas se eu vejo!!!
— É porque ele conhece e esconde o segredo de elevar a maior, a mais alto, e ainda não calculado grau os vidros côncavos destinados a corrigir a miopia; tudo mais que ele emprega é delicadíssimo artifício de charlatanismo para excitar e inflamar a imaginação.
— A sua descrença é um erro...
— A minha tolerância é que tem sido erro; a notícia que imprudentemente fez publicar na imprensa diária da corte, e a fama da sua nova luneta deram causa a que meu armazém seja com freqüência procurado por pretendentes a instrumentos mágicos de ótica, sofrendo eu perseguições e desgostos, que mal pode calcular; isso porem é o menos.
— Que é então o mais?
— A situação em que se acha.
— Que pensa?
— Ouça-me com paciência: a sua pretendida visão do bem o tornou alvo das zombarias e do ridículo...
— Do ridículo?!!!
— Não há vadio, nem trapaceiro que não tenha abusado da sua boa-fé; o senhor aparece em público associado e convivendo com as celebridades mais imorais e desprezíveis da cidade...
— Que me está dizendo?
— A verdade; todas as senhoras conhecem já a sua...
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