Deixe-me, vá gozar a visão do bem.

E trancou-nos a porta.

O velho Nunes observou, sorrindo:

— Positivamente a magia não tem escola de boa educação.

— Não, disse eu com tristeza: o armênio está ressentido da minha desobediência; ele tinha-me aconselhado que me abstivesse da visão do bem.

— Enganas-te, criança! respondeu de dentro do gabinete a voz do mágico: o que aconteceu devia acontecer.

XI

 

Voltamos ao armazém e nos sentamos para conversar.

Eu estava outra vez de bom humor; a resposta do armênio tinha banido minha súbita tristeza.

— Então, meu amigo Reis?

— Não compreendo isto; mas em todo caso estou firmemente decidido a resistir ao armênio, e a não consentir, a não admitir no meu armazém instrumentos mágicos.

— E se os fregueses o exigirem?

— Negarei a realidade do que não compreendo.

— E se amanhã aparecer em todas as gazetas diárias da capital a noticia da minha nova luneta mágica?

— Confio na sua discrição.

— Pois não confie; fui eu que redigi a noticia.

— Oh! que fez? exclamou o Reis.

Depois serenou logo e tornou:

— Sofrerei o que já sofri; mas desta vez lançarei todas as culpas sobre o armênio que não fala e não aparece a pessoa alguma.

— Que teima!

— Não quero no meu armazém instrumento algum que não seja obra da arte e da ciência humana. Eu já teria despedido este maldito armênio, se ele não fosse o artista mais hábil consumado, e dedicado nas minhas oficinas; tudo que sai das suas mãos, do seu trabalho, pode-se dizer perfeito; mas reputo a sua pretendida ou real magia perigosa à sociedade, ofensiva da religião, capaz até de perturbar a ordem pública.

O velho Nunes desatou a rir.

— De que ri assim? perguntou-lhe o Reis.

— Da sua inocência, respondeu-lhe o velho; vivemos na terra, no pais das artes mágicas, e o senhor se arreceia de introduzir nela obras de magia! Meu amigo, o senhor está na cidade e não vê as casas.

— Como assim?

— Creia que há magias a cada canto; olhe: como é que empregados públicos, e homens de todos os misteres e condições vivem, ganhando cinco, e gastando cinqüenta em cada ano? Só por magia. Como é que um farroupilha há dois ou três anos se ostenta de súbito milionário? Só por magia. Como é que o Brasil festeja todos os anos o aniversário da sua constituição libérrima e vive, sem exceção de um dia, fora da lei constitucional e em plena ditadura, ou sob a vontade arbitrária, absoluta de quem está de cima? Só por magia. Acredite-me: há arte mágica na vida, na riqueza, no procedimento e na fortuna de muitos; há arte mágica nas misérias da administração, nas mentiras constitucionais do governo, nas zombarias feitas à opinião, no impune desprezo do povo, e até na paciência ilimitada dos que sofrem, há arte mágica..

— Basta, Sr. Nunes; no meu armazém se conversa sobre tudo, menos somente sobre dois assuntos.

— Quais?

— A vida alheia, e a política do estado.

— Pois fiquemos no que disse. Que horas são?

O Reis consultou o relógio:

— Duas e meia.

— É tempo; em nossa casa janta-se precisamente as três horas da tarde: a alegria seria completa, se o amigo Reis se sujeitasse a fazer hoje penitência conosco.

O Reis esquivou-se cortesmente ao convite, declarando que devia sua presença a um hóspede.

O velho Nunes e eu saímos.

XII

 

As três horas da tarde em ponto serviu-se o jantar na casa do velho Nunes.

Éramos quatro à mesa, ele e eu, sua mulher, a Sra. D. Eduvirges, e sua filha, D. Ana, a quem os pais chamavam familiarmente Nicota. Honrando com o mais bem merecido apetite o simples jantar de família que aliás era variado, excelente, e digno da apimentada cozinha brasileira, não me descuidei de fixar a minha luneta mágica sobre as duas senhoras.

D. Eduvirges ainda bonita, era o tipo da matrona do nosso pais; boa e afável, mas recatada e grave, media suas palavras, governava seus olhos, sabia ser a rainha da casa, porém obediente ao rei por teoria de educação e prática da vida. Virtuosa sem violência, honesta sem esforços, tranqüila e plácida, feliz em seu retiro doméstico era como harmonia musical prolongada, monótona; mas em todo caso harmonia.

Nicota contava vinte e três anos, era morena, bela, agradável, jubilosa, e tinha uns olhos negros, que me pareceram crateras de lavas apaixonadas. Eu nunca tinha visto olhos como esses, e, deve-se dizer, nos olhos e no sorrir é que está a flama da vida de um rosto de mulher. A visão do bem tornou-me patentes a alma e o coração de Nicota. Inocente, suave, meiga, nascida para obediência de seu pai e do esposo, que a amasse, educada no trabalho que moraliza, na economia que não dissipa; mas não impõe privações, modesta e religiosa, ingênua e simples, engraçada e espirituosa sem saber que o é, poética no falar sem afetação, com um olhar que é fogo, com uma voz que é música, com um sorrir que e feitiço, com sentimentos em que a candideza se identifica com o amor, Nicota fez-me esquecer durante o jantar a prima Anica e a Esmeralda.

Levantei-me da mesa do jantar embriagado, completamente embriagado não de vinho; mas de amor.

Se eu não tivesse contemplado com a minha luneta mágica Anica em quase todo o dia, a Esmeralda na noite que se haviam passado, creio que no fim do jantar, que o velho Nunes me dera, me curvaria ante esse amigo, pedindo-lhe a filha em casamento.

Em meu coração sensível já lutavam não duas, mas três imagens de moças queridas, a quem eu amava com paixão igual, e sem preferência possível.

Eram três flamas ardentíssimas a consumir-me, a devorar-me a alma perdida por qualquer dessas três criaturas encantadoras e privilegiadas.

Eu amava Anica...

Amava Esmeralda...

Amava Nicota...

A preferência, a escolha entre elas era impossível...

Eu sofria muito...

XIII

 

Um mês inteiro correu para mim sempre em gozos da visão do bem em todos e em toda parte.

Mas, eu o confesso, a própria visão do bem não é isenta de inconvenientes, e a cada dia que passava, alguma nova contrariedade vinha perturbar a doce vida que eu vivia.

Desejando muito casar-me, ter por companheira e sócia na fortuna amiga ou adversa, nos risos e no pranto, uma mulher bela e amável, eu sentia uma barreira indestrutível opondo-se, tornando impraticável a realização desse desejo.

Do mesmo modo que me julgo com o direito de exigir da mulher que me aceitasse por esposo fidelidade absoluta, coração meu só, amor sem fingimento, assim também quero respeitar iguais direitos naquela que me aceitar por marido, nem admito que seja pura e abençoada pelo céu a minha união com a noiva que eu levar ao altar, se ela tiver um pensamento para outro homem, e se eu tiver um pensamento amoroso para outra mulher.

Ora o que me está acontecendo é que, a pesar meu, eu amo Anica, Esmeralda, Nicota, e amo ainda com o mesmo ardor mais trinta jovens senhoras, que tenho estudado com a visão do bem!

Dizem que com uma paixão mata-se outra: é engano! Eu já me abraso em trinta e três paixões, e creio que irei além.

E o que mais me penaliza, não é o meu tormento, este doce veneno trinta e três vezes multiplicado, e a dor, a desconsolação ou a falsa esperança dessas trinta e três vitimas da minha sensibilidade esquisita; pois que pela visão do bem tenho reconhecido que cada uma delas também me ama, que todas elas também estão apaixonadas por mim!

Urgido, atraído por tantos amores, vivo como às tontas a correr pela cidade para pagar tributos de amor e adoração; mas se em toda parte tenho enlevos, tenho em toda parte saudades...

Neste mês já fui doze vezes a casa de Esmeralda, que me recebe sempre risonha e se despede de mim com uns ares que aos três primeiros minutos de fixidade da minha luneta me parecem de inexplicável admiração, e que logo depois a visão do bem me explica, que são de profunda melancolia, e de pungentes remorsos. O certo é que nas minhas doze visitas, o meu amor tem sido exclusivamente platônico, e a conversação que alimento sempre cheia de lições de virtude, e de suaves esperanças de regeneração moral pelo sincero e completo arrependimento do passado.

Esmeralda com a sua reputação de interesseira, e arruinadora de quantos a freqüentam, ainda não me impôs, nem sequer me pediu a mais insignificante despesa; quis uma vez fazer-lhe presente de uma jóia, e ela, coitadinha! respondeu-me quase chorando.

— Não lha mereço; eu sou vil, e indigna da sua bondade; se lhe é grato obsequiar-me, assine alguma quantia nesta subscrição destinada a salvar da miséria uma numerosa família.

E apresentou-me um papel, no qual achei muitos nomes, e alguns de pessoas consideráveis, que tinham contribuído com seus donativos.

Assinei e dei o dobro da maior quantia que vi subscrita.

Nobre e caridosa Esmeralda! as pobres contavam tanto com ela, que ate hoje tenho-lhe encontrado na mesa da sala mais oito subscrições para obras de misericórdia, para as quais também contribuí, como pude, a despeito da resistência, e dos protestos dessa moça tão mal julgada, dessa Madalena suave, que, eu o espero, o arrependimento há de purificar.

As subscrições têm me custado pouco mais de um conto de réis, de que fiz entrega a Esmeralda, e estou perfeitamente seguro de que ela não desviou um real do destino a que se dedicavam as quantias assinadas.

A Esmeralda é o gênio do bem. Um amigo, sem dúvida de caráter suspeitoso, procurou fazer-me acreditar que a infeliz rapariga zombava de mim, explorava a minha inexperiência, e que as subscrições eram falsas, e não passavam de velhacos e rudes laços armados ao meu dinheiro. Respondi a este aviso com o sorrir de quem abe o que faz, e como procede. Que me importam suspeitas vãs?... A visão do bem me da certeza de que Esmeralda preferiria morrer de fome a tomar para compra de seu pão a menor das quantias dadas pelos subscritores beneficentes.

Juro que o meu dinheiro foi religiosamente empregado em socorro da miséria e da orfandade.

XIV

 

Há oito dias que voltei pela décima vez à casa do velho Nunes, meu bom amigo, e ditoso pai da Nicota.

Eram onze horas da manhã, o velho estava fora, tratando dos seus negócios; mas a esposa e a filha me receberam com os corações abertos.

A nossa conversação para mim muito agradável prolongara-se até uma hora da tarde, quando entrou o velho Nunes apressado, e evidentemente dominado por dolorosa comoção. Cumprimentou-me, falou em segredo a D. Eduvirges, e saiu de novo sem despedir-se, e muito aflito.

D. Eduvirges ficara com os olhos rasos de lágrimas, e Nicota olhava para a mãe com expressão de tanta ternura que também quase me fez chorar.

— Que há? perguntei; um amigo tem o direito de saber o motivo da aflição da família, que verdadeiramente estima; sobreveio algum infortúnio? Qual é?

— Irremediável! exclamou D, Eduvirges.

— A morte de algum parente?

— Não.

— Pois irremediável, minha senhora, só conheço a morte.

— Oh! e um depósito de dez contos de réis, que meu marido deve e não pode entregar hoje.

— Hoje?

— E sabe o que ele me disse? Disse-me que é a casa de correção que o espera, e cujas portas vão se fechar sobre ele!... em poucos dias Nunes terá esse dinheiro e muito mais; hoje porém bateu já debalde a todas as portas!... é a desonra que o espera, e que o vai matar! . . .

Nicota desfazia-se em pranto e soluços.

Imediatamente o velho Nunes voltou de novo pálido e desfigurado, e após ele um homem, e mais dois, que exigiam a entrega do depósito . . .

A dor da família foi imensa; no meio porém daquela dor de esposa e de filha, e sobretudo, contemplando as lágrimas da bela Nicota, tive, gozei suavíssima prazer.

Eu nem sabia que gozava tanto crédito no Rio de Janeiro; bastaram porém algumas palavras pronunciadas por mim para transformar toda aquela tempestade rasgada em perfeita bonança.

Para resumir a história: assinei como sacador e endossante uma letra de dez contos de réis que devia vencer-se no prazo de trinta dias.

O velho Nunes jurou-me, sem que eu lhe pedisse juramento, que antes de quinze dias teria ele pago essa divida, que então se tornara em dobro dívida de honra para sua consciência.

O bom amigo abraçou-me; D.