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Era uma jovem no mais belo frescor da idade: vinte anos não mais, dezoito anos não menos; cabeleira de ouro com enchentes de anéis a inundar-lhe as espáduas nuas e alvejantes... colo nu, e seios quase de todo à mostra; vestido de duas salas, e toilette com mais cores que o arco-íris, meia perna patente... botinas justas de laços com botões a brilhar e de saltos de duas ou três polegadas... olhos radiantes, e boca a rir, mostrando os dentes brancos... sublimes...
Ela tinha parado e olhava-me provocadora, insolente, como a pedir-me jantar...
Esperei três minutos contemplando-a bonita para aborrecê-la escandalosa e infame...
Meu Deus! a visão do bem mostrou-me o que ela era...
Ela era a formosura... a pudicícia... o recato... um anjo!...
Insensivelmente meus joelhos se iam curvando; eu estava quase na posição, em que os devotos adoram a divindade, quando de todos os lados estrondaram gargalhadas...
A criatura angélica, gargalhando também saltou para dentro de um carro puxado por magnífica parelha, e fugiu-me...
As gargalhadas continuavam... era como uma pateada que me davam. . .
Em desespero, em frenesi, em fúria, corri, fugindo e fui encerrar-me no hotel.
XXVIII
Não sai mais nesse dia e dei ordem aos empregados do hotel para que despedissem a todos quantos me procurassem, pretextando ou incômodo ou ausência de minha pessoa.
Consumi a tarde, a noite e a manhã seguinte em teimosas, amarguradas, mas estéreis reflexões.
Eu estava precisamente na mesma situação, nas mesmas circunstâncias, em que me achava nos últimos dias da posse e uso da primeira luneta mágica.
Se alguma diferença havia entre as duas épocas e as duas aflições era agora para muito pior; porque agora se me quebrarem a luneta mágica da visão do bem, já sei que não poderei conseguir outra luneta.
E a sentença está lavrada e é irrevogável: o mano Américo, em sua extrema bondade e pelo grande interesse que toma por mim, receoso de que eu esbanje o resto de minha fortuna, me privará da luneta mágica que dá a visão do bem.
E é amanhã o dia em que por bem ou por mal serei recolhido a casa ou ao cárcere de minha família, e sujeito ao meu curador.
Deverei submeter-me?...
Estudei por todos os lados e em todas as suas conseqüências possíveis o caso, e conclui que o partido que me restava era fugir, e fugir imediatamente.
Para onde? Pouco importa; correrei o mundo; com dinheiro e boa vontade não se vive mal em parte alguma.
Examinei a minha carteira: restavam-me trinta e tantos mil réis!... fiquei desagradavelmente surpreendido; lembrou-me porém que na antevéspera tinha emprestado quatrocentos mil-réis a um dos amigos que jantaram comigo, e que na véspera assinara em duas subscrições para alforria de escravos.
A falta de dinheiro não podia embaraçar a execução do meu plano; eu contava tantos amigos que facilmente arranjaria quatro ou seis contos de réis.
Paguei o que devia no hotel e fui logo procurar o velho Nunes, e em seguida ao bom Damião e a mais quinze ou vinte, a todos os quais patenteei a minha situação, confiei o meu plano, e pedi algum dinheiro ou a titulo de empréstimo, ou em pagamento do que me deviam.
Triste observação!. . Não achei em todos esses excelentes amigos um só que me acudisse com alguma e ainda diminuta quantia!... mas os pobres e honradíssimos homens asseguraram-me que em quinze dias ou um mês me levariam a casa trinta ou quarenta contos de réis.
É pena que somente para tão tarde possa eu contar com esse recurso que fora hoje tão poderoso, e que então será inútil para o meu plano.
Não desanimei e me dirigi ao meu banqueiro; este porém apenas percebeu o que eu queria, tomou o Jornal do Comércio que estava sobre a mesa de seu escritório, e mostrou-me um anúncio assinado por meu irmão, em que protestava não seria paga divida alguma contraída por mim.
Retirei-me desesperado; todas as minhas esperanças tinham falhado, todos os meios me faltavam para obter dinheiro...
Ninguém pode fazer idéia da dor que me despedaçava o coração . . .
Recorri ainda a dois outros amigos que me deviam também somas importantes... um deles voltou-me as costas sem me responder, e o outro não me conheceu!!!
Fixei a minha luneta mágica sobre cada um desses dois miseráveis... ah! nenhum deles era mau: o primeiro voltava-me as costas cheio de vergonha e de pesar por não poder servir-me, e sem dúvida ao ver-me partir, desatara a chorar... o outro, pobre infeliz, afetado de uma moléstia cérebro-espinhal, tinha perdido a memória; pelo menos foi isto o que reconheci pela visão do bem.
Perdida a última esperança, sentindo profundo, moralmente mortal o golpe da desgraça, prevendo o raio infalível que ia fulminar-me no dia seguinte, pus-me a andar sem destino, mas apressado, quase a correr não sei por quais ruas da cidade; sei porém que de improviso parei na quina, ou ângulo formado por duas ruas que se cortavam.
Aproximava-se numeroso préstito de carruagens; quis vê-lo passar.
Era o préstito lúgubre de um finado. Era um enterro.
XXIX
Tive um pensamento que estava naturalmente em relação com a negra tristeza do meu espírito.
Desejei estudar o cadáver, que se ia sepultar.
Fixei a minha luneta mágica no féretro.
Eis o que vi:
Primeiro um caixão de madeira coberto de ricos estofos pretos e de galões de ouro, dentro um cadáver já em corrupção, fétido, repugnante... Iodo e pó da terra e nada mais.
Logo depois a memória das singulares virtudes do finado e... oh!... a felicidade, a incomparável felicidade da morte!...
Eu vi, senti, compreendi a morte, que se patenteou tal qual é, a visão do bem!
Eu vi a morte — mal julgada, caluniada pelos homens — sono plácido, suavíssimo que começa à última dor, ao extremo transe da vida, e que acaba ao despertar nas delicias da eternidade; paz sem cuidados, sossego sem a mais leve perturbação — véspera instantânea da verdadeira vida — porta do fim que é luz celeste. — Oh! que gozos na morte! a podridão e o fétido do cadáver em sublime contraste muito de longe dariam idéia da pureza e do angélico aroma da alma que se desprende do pó! Que gozos na morte! O mais vaidoso dos reis sente-se pela primeira vez verdadeiramente grande e exaltado elevando-se à esfera onde se encontra igual ao mais humilde e rude dos vassalos ou escravos que tivera!... Não há dor, nem ânsias, nem moléstias, nem privações, nem miopia na imensa e refulgente região da morte! Aquela frieza enregelada do cadáver significa esquecimento absoluto das penas da vida efêmera e mundana.
Pela morte o escravo é livre, a criança e a virgem são anjos, a esposa jovem, a matrona e a velha santas, a mundanaria é Madalena purificada, o malvado, o celerado são arrependidos que se regeneram, o desgraçado é feliz, o mudo tem voz, o paralítico voa, o surdo ouve segredos, o cego vê nas trevas, o desgraçado é perfeitamente feliz!...
A morte é Jordão que lava as culpas...
A morte é glória...
A morte é luz...
Só a morte é que dá principio à vida.
Eis um pouco do muito que a visão do bem me fez descobrir e apreciar na morte.
O préstito já tinha passado.
Deixei cair a luneta mágica.
Abismei-me em profunda introversão, no estado da minha intima consciência, no estado novo e extraordinário do meu espírito...
Achei-me consolado, forte, invencível, contente, feliz...
Eu desejava, almejava morrer...
Morrer era começar a viver... e a viver que vida de delícias!...
Eu acabava de conceber a idéia, e de abraçar-me com a idéia do suicídio.
XXX
Examinei o ponto da cidade onde me achava, e logo conheci que havia parado para ver passar o préstito fúnebre no lugar, que é corte da Rua dos Barbonos, fim da das Mangueiras. e principio da dos Arcos.
A breve distancia estava pois mais adiante a ladeira do morro dantes chamado do Desterro, e desde o século passado de Santa Teresa.
Mais de um suicídio se tem realizado no alto, e nos desertos abismos daquele monte.
Instintivamente mas sem dúvida com a idéia da morte, dirigi-me para a ladeira, e comecei a subi-la passo a passo, com vagar e tranqüilidade, com ânimo sereno, e com o firme propósito de pôr termo a minha vida.
Eu não tinha comigo nem punhal, nem veneno, nem revólver, não levava pois arma, ou instrumento, ou meio de morte, e contudo subia a ladeira com intento de me matar.
A visão do bem me levava à morte.
Eu nunca visitara o sitio famoso do Corcovado; ouvira porém dizer que lá havia enorme precipício, profundíssimo abismo, no seio do qual a morte era certa para o infeliz que por acaso a ele se arrojasse.
Se as informações não eram falsas, o propósito me daria o fim, que receava do acaso ou da imprudência.
Não me era pois necessário levar comigo punhal, veneno, ou revólver: eu tinha por mim o abismo.
Fui subindo a ladeira tranqüila e pausadamente, descansando aqui, ali, e deleitando-me a ouvir o leve ruído das águas da Carioca, que em alguns pontos do antigo encanamento mandado construir pelos vice-reis do tempo colonial, parecem murmurar da negligência, ou da comparativa inferioridade da administração da nossa época, que vinte vezes por ano deixa o povo em penúria d'água, e diariamente lhe da água da Tijuca toldada, mal zelada, e não aquela tão pura e admirável a que o gentio chegava a dar o condão de acender' a inspiração da poesia
E fui subindo sempre.
A noite era formosa; a lua em fase plena mergulhava a cidade em um oceano de luz pálida, mas clara, suave, encantadora e romanesca.
Muitas vezes voltava-me para contemplar essa já grande Babel, esse labirinto de ruas que formam a opulenta capital do Brasil, e me embebia por minutos no grandioso panorama da bela sebastianópolis iluminada por milhares de flamas de gás, que simulavam enfeitiçá-la em noite de festa.
E de cada vez que me voltava para a cidade, eu dela me despedia, dizia-lhe o adeus saudoso e melancólico do filho que se separa da família, e que sabe que não voltará mais ao seu lar.
Eu subia sempre; o silêncio da noite era só interrompido pelo latir dos cães que, sentinelas vigilantes, guardavam as chácaras.
Ainda era cedo, mas a solidão completa; e todavia eu não tinha receio de encontro algum suspeito ou sinistro; receio de quê?... pobre e decidido a morrer, rir-me-ia do ladrão, do assassino que me atacasse.
Depois de muito longa marcha ouvi a voz de um homem que caminhava adiante de mim e que cantava uma rude cantiga com acompanhamento de viola, que ele próprio executava.
Apressei o passo e apanhei o cantor.
Era um guarda do aqueduto.
Trocamos a saudação de — boa noite.
— Vou seguindo o caminho do Corcovado?
— Sim senhor; mas a estas horas?
— É proibido?
— Não; já sei: quer amanhecer lá.
— Adivinhou.
— Pois eu vou dormir às Paineiras.
— Tanto melhor para mim.
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