e como o sol é feio, terrível e mau!!!
IV
O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver demais e um castigo; a temperança é virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem.
Por que, para que me expus a desestimar a aurora que é tão formosa, e a descobrir na natureza e na influência do sol que dizem ser fonte de vida, tantos germens de destruição e de morte? Por que e para que ficar-me na alma esta desconfiança das ilusões da aurora, esta certeza de que o sol é também assassino da criação e assolador da terra?...
E por que esta luneta mágica além de três minutos de fixidade só me deixou ver os males e os horrores que o sol pode produzir e negou-me a contemplação dos seus benefícios?
Oh! foi dolorosa; mas será profícua a lição; doravante saberei defender-me da vingança terrível da salamandra escravizada: aborreço. Não experimentarei mais a visão ao mal; basta-me a visão da superfície e das aparências. Se o mundo é de enganos, se a vida é de ilusões, se na terra a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, e nos enganos da alma, eu quero iludir-me e enganar-me para ser feliz.
Oh! vem, minha luneta mágica, vem! mas para que eu te fixe somente dois minutos sobre cada objeto.
E eu fixei a luneta nas flores, cujo matiz, e cujas cores variadas e belas enfeitiçaram meus olhos, fixei-a nos passarinhos, nas borboletas, nas folhas das arvores que ainda lagrimejavam gotas de orvalho e festejei todos estes tesouros da natureza, que eu via, e distinguia perfeitamente pela primeira vez.
Gozei uma hora de inexplicável encantamento, gozei muito, muito; mas, preciso é confessar, os meus gozas, suavíssimos embora, foram sempre perturbados por dois sentimentos que de certo modo os deixavam incompletos.
Fixando a minha luneta eu sentia logo e quase ao mesmo tempo medo e curiosidade; medo de esquecer o tempo e de chegar à visão do mal, e curiosidade teimosa, insistente, insidiosa e cada vez mais forte dessa mesma visão do mal.
Pouco e pouco venci o medo, medindo instintivamente os minutos; não pude porém vencer, domar a curiosidade, que em luta aberta com a minha razão, martirizava-me, aguçando um desejo fatal.
Essa curiosidade era como a tentação do demônio que nos arrasta ao pecado; meus lábios haviam já tocado uma vez na taça oferecida pela tentação, e o veneno que eu bebera, abrasava o meu seio, e eu tinha sede devoradora da visão do mal.
A salamandra, o gênio, o demônio tentador estava incessantemente a dizer-me ao ouvido que eu era senhor de um poder, de que nenhum outro homem, nem sábio, nem rei, podia usar e aproveitar-se, e que só a fraqueza de animo ou os hábitos rudes da mais triste ignorância explicariam o abandono, o sacrifício desse poder encantado que me fazia penetrar e ler no intimo dos seres.
E foi no instante em que mais violento era o combate da curiosidade com a razão que divagando, passeando com a minha luneta, vi a prima Anica entrar no jardim.
V
Fitei-a.
A prima Anica estava vestida de branco e com os cabelos solto. Eu já tinha idéia do seu rosto, mas ainda não apreciava bem o seu porte; agora não tenho dúvidas sobre o juízo que fazia do seu merecimento físico.
Anica não é feia, nem bonita; abre muito os olhos, porque os tem pequenos e sem o fogo do sentimento; seu rir é triste, sua cintura delicada, os braços são tão finos que movem dó, e os pés tão grandes, que fazem pena; tem cabelos pretos, finos e bastos; o seu parecer porem, a sua figura, o seu andar são de um desenxabimento, que desconsola. O melhor dom que a natureza lhe deu foi a voz, que é doce e maviosa como a queixa de uma santa.
Retirei a luneta antes de passar o terceiro minuto; mas imediatamente senti o impulso da curiosidade que se tornava irresistível.
Esqueci o protesto feito, esqueci a dor da primeira experiência da visão do mal, esqueci, sufoquei a razão que ainda me falava, condenando o desejo imprudente, e dizendo a mim mesmo:
— Preciso saber com quem vivo.
De novo fitei a minha luneta sobre a prima Anica, que estava dando os bons dias às suas flores
A principio vi somente o que já tinha visto, que ela não era nem bonita nem feia, mas notavelmente desenxabida. Passados três minutos, não lhe vi mais o rosto nem a figura, vi-lhe o coração e a alma; o coração era uma pedra de gelo, a alma era o espírito reduzido a cálculo, a alma era como o seu olhar sem o fogo do sentimento; no seu coração li a indiferença e a tristeza, na sua alma a ambição de um marido rico que lhe desse mais o gozo da mesa, do que o esplendor do luxo e das festas; era, é a mulher fria, egoísta positiva, material, incapaz de amizade, e ainda menos suscetível de amor, mulher que sendo esposa nunca desejaria um filho, nem teria zelos do marido, mulher sem caridade, porque só vivia ocupada de dormir bem, comer bem, e passar bem.
Encontrei a minha imagem na alma de Anica, mas a minha imagem estava ali, como se fora um X em um problema de álgebra: eu era em sua alma uma hipótese de marido, e como letreiro, como nome da minha imagem, li em caracteres aritméticos a soma das legitimas, das heranças que me haviam deixado meu pai e minha mãe! . . .
E mais viva do que a minha imagem vi a do mano Américo que é muito mais rico do que eu (sem dúvida porque ele pensando por dois, pensava mais e melhor em si, do que por mim é em mim), vi a imagem do mano Américo, outra hipótese de marido, mais desejada, mais afagada do que a minha hipótese, mas só com afagos de cálculo, e sem um ligeiro afago de amor.
E, à exceção do gelo e do cálculo, coração morto na vida, alma estéril, seca, inóspita.
Anica e a mulher do egoísmo sublime: contanto que lhe dessem boa casa, boa mesa, bom jardim e melhor pomar, amas se tivesse filhos, criados que a deixassem não trabalhar, silêncio e isolamento à noite para dormir à vontade, poderia enviuvar vinte vezes, dando à memória de seus finados, não a consolação das lágrimas do amor e da saudade, mas a da certeza de não ter sido infiel, nem falsa a nenhum deles menos por virtude, do que pela acerbidade e aridez de sua alma enregelada. Que mulher! olhos sem lágrimas, terra sem vegetação, mar sem ondas nem tempestades, céu sem estrelas e horizonte sem nuvens, natureza, rochedo.
Desviei a minha luneta dessa mulher, campo árido, deserto infindo de áreas estéreis sem um só oásis consolador.
Mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher sem sentimento, mulher sem amor, mulher-egoísmo é um triunfo da matéria sobre o espírito mais terra do que céu, mais pó do que alma, mais lodo do que pureza da eternidade; é a mulher-monstro que calunia a mulher criada por Deus; é um assombro que se faz admirar pela hediondez.
A prima Anica tornara-se para mim repulsiva, mais do que repulsiva, repugnante.
Jurei que nunca mais fixaria nela a minha luneta mágica.
VI
Amarga desilusão acabava de obumbrar-me o animo: a prima Anica que tanto procurava agradar-me e que pudibunda recorria aos apólogos para manifestar-me a ternura dos seus sentimentos, a prima Anica que eu reputava o símbolo do amor mais puro e desinteressado, não era mais do que uma mulher insensível, egoísta, e somente preocupada dos gozos da vida animal!...
Eu nunca sentira amor pela prima Anica; mas votava-lhe amizade fraternal, e experimento verdadeira mágoa, reconhecendo que não mais posso estimá-la como dantes. Doce amizade! é uma flor de menos no jardim do meu coração.
Entretanto não me arrependo de haver-lhe devassado a alma, e descoberto a verdade dos seus sentimentos mesquinhos e vis: esta senhora, pelo menos não há de mais enganar-me.
As vozes do mano Américo e da tia Domingas que, entrando juntos no Jardim, dirigiam gracejos a Anica, chamaram a minha atenção.
Eu já não combatia mais a curiosidade da visão do mal: o conhecimento a que eu chegara, da falsidade da prima Anica, me excitava o desejo de esmerilhar os segredos de outros corações.
Lancei a luneta sobre o mano Américo e observei-o: mancebo de agradável parecer, é pena que seus olhos, aliás bonitos, não tenham firmeza no olhar, que não se demora em objeto algum e parece ou temeroso ou movido por preocupações do espírito a divagar estonteado, ou a fugir à observação dos homens; além desse defeito, notei que sua boca escapara de ficar sem lábios, tão finos são estes, e que o seu sorrir mostrava ser antes uma concessão artificial de aparente alegria, do que sinal espontâneo de íntima ledice'.
E passaram três minutos: oh! minha cega e imensa credulidade! o político patriota era apenas um ambicioso vulgar! o nome da pátria era uma alavanca, a dedicação ao povo um meio de construir escada: Américo queria subir, queria ter influência; mas nem ao menos por vaidade, ou também um pouco por vaidade; somente porém por cálculos de fortuna, somente para explorar as posições oficiais em seu proveito material; desprezava as graças, os títulos nobiliários, o brilhantismo da corte, as fardas de ricos bordados de ouro; mas desejava tudo isso como sinais de importância pessoal para negociar ainda mesmo com as exterioridades; talentoso, instruído, hábil, vende-se ou vender-se-á, aluga-se ou alagar-se-á sem parecer que o faz, ostenta e ostentará independência e abnegação, não pedindo jamais ao governo favor algum para si; mas fará questão de um contrato, cuja celebração irá dar contos de réis à sua mesa de advogado; fará questão de um privilegio para a empresa de que não é, nem será acionista; mas cuja gratidão já foi em segredo ajustada. Sua eloqüência será ameaça viva a todos os ministérios novos; o leão parlamentar porém se deixará levar por um fio de seda, que ele transformará oportunamente em corrente de favores, não para si, só para amigos, cujo reconhecimento nada tem com as suas relações com os ministros; e servirá ao Estado, e será patriota assim, e subirá, e há de ser grande na sua terra.
Dá o nome de amigos a três mil conhecidos, sabe angariar simpatias, colhe os frutos de mil préstimos, e não é amigo de homem algum, sabendo todavia servir com empenho àqueles que têm de servi-lo em dobro depois; mas serve só e sempre como intermediário, do seu apenas serve, dando o tempo que emprega para pedir e obter.
Em relação à família, Américo negocia com a legítima paterna da prima Anica, com a fortuna da tia Domingas e com a minha; convenceu-nos a todos de que perdêramos a quarta parte do que possuíamos na quebra das casas bancárias em 1864; ele porém ganhou nessa crise setenta e cinco por cento da suma das nossas três fortunas prejudicadas, isto é, aumentou a sua riqueza na proporção exata de nossas perdas; não toma compromisso sério; deixa que a tia Domingas lhe fale muitas vezes do seu casamento com a prima Anica; mas projeta abdicar em mim esta glória, e fareja entre os dotes ricos o dote mais rico para se casar com ele, aceitando, como meio indispensável da transação, uma pobre noiva condenada aos tormentos da sua indiferença.
Não esquecendo que sou seu irmão, Américo não me ama, mas olha-me com piedade; creio que não me deixará morrer de fome creio; porque tenho horror à incredulidade em tal hipótese; creio, revoltando-me contra a visão do mal; mas vejo bem que se ele puder, absorverá tudo quanto possuo.
Américo não é avarento, porque despende bastante para viver com decência e algum luxo; é porém o homem sedento de ouro, e para quem família, pátria e Deus se resumem no — ouro.
Enriquecer é a sua idéia: se chegar a possuir cem mil contos terá ambição cem mil vezes maior, e não fará bem algum à humanidade.
Entristeci-me profundamente, pensando no que acabava de ler no livro aberto da alma de meu irmão; logo porém, e como ansioso a procurar, a pedir uma consolação, fitei e observei por dez minutos a tia Domingas.
É uma senhora de sessenta anos, gorda, simpática, e perseguida de ataques erisipelatosos que a têm avelhantado mais que os anos; traz ao pescoço três ou quatro breves da marca, e na mão o rosário em que aponta as suas orações; sua fisionomia é plácida, tranqüila como a face de um pequeno lago, é um espelho da virtude da paciência, e nos seus olhos que a miado se voltam para o céu parecem brilhar os raios da esperança e da fé.
Mas a visão do mal mostrou-me em seguida a hipocrisia de sua face: a tia Domingas é invejosa e má; detesta as moças porque é velha; maldiz das traições e dos enganos do mundo porque não espera mais ser traída, nem enganada; benze-se, levantando aleives às vizinhas, ou propalando suas fraquezas; faz incríveis economias no governo da casa, esconde dentro do colchão e das almofadas de sua cama o dinheiro que poupa, e no principio de cada mês se lamenta da insuficiência da verba concedida por Américo para n manutenção da família: não dá um vintém de esmola aos pobres; arranca à rudeza e à calunia odienta dos escravos os segredos verdadeiros e falsos da vida intima de seus senhores, e faz das confidencias capítulos de acusação maledicente, acompanhados sempre de um — Deus me perdoe! na terra o acho, na terra o deixo! e pecadora que peca mil vezes por dia, pensa que engana a Deus, rezando, quando não peca.
Tem no mundo um amor, é sua filha; aborrece Américo; mas finge que o estima para ver se consegue casar Anica ou com ele ou em último recurso comigo; aborrece-o porque lhe inveja a riqueza que ele acumula, adorá-lo-ia, se Anica se tornasse senhora de metade da sua fortuna; não me ama, mas tolera-me, sou a seus olhos um genro obrigado na falta de Américo.
Pela força do hábito os lábios da tia Domingas estão em movimento incessante, porque sua boca repete maquinalmente as orações de seu rosário; interrompe, porém, as orações a cada instante no governo da casa para proferir pragas contra os escravos, chamando mil vezes pelo nome do diabo; mas não tem idéia deste pecado; porque reza, como peca, e peca como reza, sem intenção, nem consciência.
A tia Domingas é santa pela cara, e condenada pelo coração.
Retirei a minha luneta, sai da janela, e murmurei tristemente:
— Com que gente eu tenho vivido!... que desilusões, meu Deus! . que desgraça é perder como perdi a confiança nos parentes, e o amor que eu sentia por eles!!!
VII
A visão do mal, o conhecimento das paixões ruins, dos vícios, dos intentos pérfidos ocultos nas dobras negras dos primeiros corações humanos que eu devassara com a minha luneta mágica, dos três corações, em que eu mais confiava, e que mais amava, começavam a produzir no meu espírito os seus naturais efeitos.
Se meu irmão, minha tia e minha prima, os únicos parentes que me restavam no mundo, os dois primeiros que me haviam criado desde bem tenros anos, Anica que fora minha camarada da infância, quase minha irmã, assim tão cruelmente me enganavam, que podia eu esperar dos estranhos e dos indiferentes?...
E o armênio aconselhar-me que me abstivesse da visão do mal! que erro! devo eu preferir viver iludido e vitima cega, estúpida, entregue de corpo e alma àqueles que abusam da minha inocência e simplicidade para sacrificar-me ao seu egoísmo e à sua ambição criminosa ?
— Oh! mil vezes. não! a visão do mal me envenenará talvez a vida; mas há de ser o meu escudo contra os pérfidos, e me acenderá luz para livrar-me dos laços da traição.
Eu sinto já que a minha miopia moral vai se desvanecendo sob o influxo de uma ciência amarga, desconsoladora, triste, comprimente; a ciência do mal; em todo caso porém ciência.
Eu já compreendo e reflito; já sei meditar, e resolver por mim; não sou mais o pupilo perpétuo do mano Américo. A visão do mal emancipou-me.
Dói-me ter perdido a suave, a deleitosa crença da lealdade do amor dos parentes; dói-me, porém acabo de perdê-la.
VIII
A miopia moral, a ignorância completa do mal, a inocência conservaram-me até esta manhã franco, simples, sem uma nuvem de suspeita na alma, sem desconfiança dos outros, e com o coração aberto, transparente aos olhos de todos.
O conhecimento do mal vai operando em mim forçosa modificação de idéias e de sentimentos.
Já sei que é preciso fingir: já o sei; porque estou determinado a esconder de Américo, da tia Domingas, de Anica e de todos a principal virtude da minha luneta: direi que por meio dela distingo melhor, mas ainda imperfeitamente os objetos.
Vou portanto dissimular e enganar; primeira lição da ciência do mal que a visão do mal me está dando; primeiro passo no caminho tortuoso da desmoralização; mas inevitável; porque é preciso dissimular e enganar para defender-me de parentes desamorosos e pérfidos e para, cauteloso e seguro, realizar projetos que desde alguns minutos fervem no meu espírito exaltado pelos ressentimentos do coração.
Nas latas do mundo devo bater-me com armas iguais às daqueles que me hostilizam: dissimulação contra dissimulação, engano contra engano.
Em uma hora experimentei três desilusões que me envelheceram trinta anos! os gelos de três desenganos apagaram no meu seio é fogo santo de três afeições profundas, inocentes e puras.
IX
Tenho na mente uma providência que me é necessário tomar em breves dias; tenho no coração um vácuo que ardentemente desejo preencher sem precipitação, mas quanto antes.
Quando retirar do mano Américo a gerência da minha fortuna: eis a providência que vou tomar; acharei um procurador zeloso, prudente e honrado que se incumba deste negócio, e o efetue sem escândalo, e sem descrédito de meu irmão, a quem não me dirigirei sobre este assunto; porque me repugna expor-me ao extremo de confundi-lo em face.
Não preciso de informações nem de recomendações para a escolha do meu procurador: a minha luneta mágica me ensinará qual dentre muitos merecerá ser preferido.
Hoje mesmo darei principio a este estudo, aos trabalhos desta descoberta ou preferência.
O preenchimento do vácuo do coração é mais difícil, e há de ser mais moroso.
Estou; mas não é admissível que eu possa viver sem família.
Estou sem família, a visão do mal rompeu os laços que me ligavam aos meus três e únicos parentes.
Essas três afeições, essas três únicas flores do jardim do meu coração marcharam para sempre, e o meu seio ficou deserto e noite.
Nasci para amar, tenho sede de amor; não posso viver assim.
A família, é na terra a beatificação da vida do homem; a família, é o mundo em festa no lar doméstico; a família, é a imensa vida de amor, em que se identificam algumas vidas que se amam, que se abraçam, que se completam; a família, é a consolação no infortúnio, o suave descanso no fim do trabalho e das lidas, é o rir de muitos pela felicidade de cada um de seus membros, é na extrema hora o colo em que se encosta a cabeça para dormir o último sono, é o pranto de amor que orvalha a sequidão da morte, a mão de amor que, religiosa, fecha os olhos do morto.
Eu quero ter família, não posso viver sem ela.
Estou como enjeitado que sai do hospício estou só, sem um parente, estou — deserto e noite, e aspiro sociedade e luz.
O enjeitado não tem; mas pode criar e cria uma família, para si, procura uma mulher, e abre-lhe o coração; a mulher o faz esquecer o deserto e a noite do passado, dando-lhe a sociedade, e acendendo-lhe a luz do presente e do futuro.
A mulher é a placenta da família, é a criação privilegiada, a última e a mais mimosa criação de Deus, que em um sorrir divino nela derramou a graça que encerra o encanto da vida do homem.
Eu quero procurar uma mulher jovem, bela e pura, que me dê família, eu estou deserto e noite; quero receber a companhia do coração e a luz dos olhos de uma mulher formosa e santa; quero um anjo, a cujas asas brancas me prenda, para sair do deserto e da noite.
Avalio bem as proporções imensas da minha aspiração; mas a luneta mágica me deixa ler os segredos de todas as almas, e, mercê desse encantado privilégio, hei de achar o botão de inocência que almejo, a noiva — anjo da terra que adorarei perpetuamente.
A mesa do almoço apareci com a minha luneta, e causei surpresa; disse que auxiliado pelo poderoso vidro, podia ver melhor do que dantes, embora menos do que desejava; mas acabando de almoçar e usando da luneta, servi-me de um palito sem pedir que mo dessem.
Diante dessa prova evidente de que já me era fácil distinguir um palito, o mano Américo abriu a boca espantado, a tia Domingas benzeu-se, e a prima Anica consertou com faceirice as dobras e o laço do seu fichu que aliás não tinham desconserto algum.
Enfim meu irmão e minha prima deram-me uns parabéns que me pareceram muito dessaboridos; minha tia disse: "Deus te abençoe para que não peques pelos olhos!" e eu despedi-me e fui para o júri.
X
Nas ruas vi tudo de passagem e frui mil gozos novos para mim com a simples visão das aparências; mas chegando à sala do júri e tomando a minha cadeira, dispus-me a não poupar o meu privilégio da visão do mal.
Nesse dia não sai sorteado, embora se formassem dois conselhos que consecutivamente julgaram o primeiro um, o segundo dois réus.
Em qualquer dos três réus encontrei um coração negro, um homem-fera; do primeiro julgado, porém, não lhe descobri na consciência indicio algum do crime de que o acusavam, e foi exatamente contra esse que mais vigorosa se desencadeou a palavra do acusador.
Fitei minha luneta no advogado que assim falava por parte do autor, e no fim de breves minutos reconheci que ele estava convencido da inocência do réu que acusava.
Examinei no segundo processo a consciência do eloqüente defensor dos dois réus justamente processados por crime de homicídio, e vi que ele fazia prodígios de habilidade sofista para iludir os jurados. e levá-los a obrigar injusta sentença de absolvição.
Arredei de meus olhos a luneta que acabava de fazer-me descrer do sacerdócio da advocacia.
— Como é, perguntei a mim mesmo; como é que um advogado ostenta a mentira e o dolo, rebaixando uma das mais nobres e esplêndidas profissões, sustentando, demonstrando o contrário do que pensa e do que sente, para ganhar a soma, porque contratou a acusação ou a defesa?...
— Como é que se abate assim o talento, e se aniquilam as grandes noções do dever?
Um advogado era para mim a luz do direito, o escudo da inocência, o campeão da lei; era a Sabedoria a pleitear pela justiça; como pois um advogado se anima a mentir diante de Deus e dos homens, a malfazer a sociedade, esforçando-se com todo o poder das suas faculdades para que se julgue inocente e puro um assassino conhecido e provado, um malvado que ele sabe que é assassino?... e, mil vezes ainda pior, como é que outro advogado profundamente convencido de que o réu não cometeu o crime que lhe imputam, ousa ir acusá-lo, ousa ir pedir que o encarcerem, que o condenem a trabalhos forçados?...
E além da mentira o dolo!... o dolo; porque tais advogados se empenham em enganar os juizes de fato, tecem ardis, desfiguram os atos praticados, enredam e perturbam as testemunhas, tornam o processo caos com o fim de arrastar o júri a decisões contrárias à verdade e à justiça e só em proveito dos clientes que os têm contratado para acusar ou defender?...
E do mesmo modo que praticam em questões criminais, que afetam a moralidade e a segurança da sociedade, e a liberdade e aos direitos individuais, hão de também praticar nas questões que se referem à propriedade!... haverá pois advogado que convicto da infame velhacaria do seu cliente, ainda assim lhe alague a sua banca, que devia ser altar nobilíssimo e ponha em tributo os recursos da sua ciência para ajudar o cliente a roubar o alheio?!!!
Ah! visão do mal que me estás levando a descrer da humanidade! tu me serás talvez fatal; mas eu te quero, e não te dispenso mais, porque tu és luz, embora sejas luz do inferno.
XI
Entre o primeiro e o segundo processo tivemos uma hora de folga, que tanto durou o conselho secreto.
O meu velho amigo, cujo nome quero agora declinar, o Sr. Nunes, veio sentar-se junto de mim: apertei-lhe a mão com força, prazer e confiança; pois era a ele que eu devia o ter ido à casa do Reis, onde encontrei o maravilhoso armênio.
— Então? perguntou-me o velho; que tal achou a luneta?... estou ansioso por sabê-lo; não dormi um instante toda a noite; que me diz da luneta?
— É admirável, meu amigo.
— É, na verdade mágica?
— Estupendamente mágica.
— Conte-me alguma coisa...
Contei-lhe tudo.
Cometi um erro, sendo completamente franco na exposição de todas as minhas experiências, e outro, ainda maior, na confidência dos meus dois projetos, o de encarregar a um procurador hábil o arranjo dos meus negócios com o mano Américo, e o de criar para mim uma família, casando com uma jovem formosa e pura.
O velho Nunes sorriu-se agradavelmente, com expansão de amizade, apertando-me as mãos, e desfazendo-se em felicitações: a alegria radiava-lhe nos olhos e no rosto. Que excelente e nobre homem!... que diferença entre ele e os meus três parentes!...
No fim de alguns minutos em que me pareceu refletir, disse me:
— Eu creio que nasci predestinado para lhe ser útil.
— Já lhe devo muito.
— E vai dever-me mais; o seu primeiro projeto e justo; mas arriscado. . .
— Por quê?
— Mal pode calcular como são alicantineiros, palros e vorazes quase todos os procuradores e solicitadores que por aí andam, e receio muito vê-lo cair nas garras de algum desses trapaceiros.
— Pensa? ..
— Mas ainda bem que eu sou também solicitador no foro da corte, e tenho orgulho da reputação de probidade e de dedicação, que ninguém ousa disputar-me; o trabalho me sobra, e o tempo me falta; mas para servi-lo, ofereço-me de corpo e alma para concluir em poucos dias todos os negócios que tem com seu irmão e sem escândalo nem desgosto.
— Oh! meu bom amigo!
— Pode chamar-me assim; tenho queda para o senhor; amanhã há de jantar comigo: quero apresentar-lhe minha mulher que é uma santa e minha filha que é uma flor do paraíso
Senti-me cativo do honrado e generoso velho e para melhor apreciá-lo, fixei a luneta, ele porém voltou o rosto imediatamente; três, cinco, dez vezes repeti a manobra, e o Sr. Nunes outras tantas fugiu com o semblante, e por fim ao sair o conselho da sala secreta, mudou o velho de cadeira e sentou-se exatamente diante de mim, dando-me portanto as costas.
Admirei tanta modéstia, e ensaiando uma nova experiência, pus a luneta em ação e olhei o velho Nunes pelas costas durante sete minutos.
Oh! luneta sublime! não há recurso que possa anular a tua força!
Eu vi perfeitamente o homem.
Misericórdia! que enormíssimo tratante é o Sr. velho Nunes! — afável, obsequiador, loquaz, insinuante, sabe um por um todos os segredos das traficâncias que desmoralizam o povo: tem falsificado documentos, rasgado e sumido folhas de autos, já furtou a firma de um juiz, já solicitou pró e contra em mais de vinte causas, tem comprometido interesses, demolido fortunas, e ainda não entrou na casa de correção!... aluga-se, quando não lhe convém vender-se, e vende-se apenas lhe chegam ao preço; tem de seu mais de cem contos de réis torpemente adquiridos, e é usurário de profissão; surrava os escravos sem piedade, vendeu-os todos há poucos meses, arremata outros em praça para vendê-los em breve prazo, e é entusiasta da emancipação; é cabalista admirável de eleições, tem sido eleitor por todos os partidos, e votado como eleitor nos candidatos que lhe compraram os votos por dinheiro, e por transações que valem dinheiro. Exalta os gozos suaves e a santidade do lar doméstico, e no lar doméstico dá pancadas na mulher, que o teme e que o detesta, e vive em guerra aberta com a filha porque ela em doces e costuras que faz ganha somente bastante para se vestir.
E, o que é mais, eu me vi, eu me encontrei e me reconheci nos cálculos da mente do velho Nunes!... elo sabe melhor do que eu a quanto chega a minha fortuna, planeja explorá-la em seu proveito, desacreditar, infamar meu irmão, ou negociar com ele em meu prejuízo, e finalmente concebeu a idéia de casar-me com sua filha!!!
Tive horror do execrável Nunes, a quem mais nunca darei o nome de velho amigo; senti-me, porém, desconsolado e triste, descobrindo tanta malvadeza, em quem supunha tanta bondade e virtude.
É ainda uma desilusão! é ainda um turvo desengano a arrastar-me à desconfiança e talvez em breve ao aborrecimento dos homens.
Sai do júri mais sombrio e abatido do que os réus que por ele acabavam de ser condenados.
XII
É claro que não procurei mais encontrar-me com o velho Nunes, e aproveitando a lição desse novo desengano, compreendi que me cumpria ser ainda muito mais cauteloso na escolha do meu procurador, e principalmente na eleição da minha noiva.
Empreguei quatro dias no empenho da descoberta de um procurador, como desejava, e perdi o meu tempo: estudei com a minha luneta magica nada menos que trinta e tantos procuradores e achei-me sempre de mal a pior! pareceram-me todos eles verdadeiros procuradores do epigrama de Bocage, os que se diziam melhores e passavam por mais hábeis e dedicados, eram os piores pela mais refinada arteirice, e profunda malícia.
No fim dos quatro dias senti-me tonto, aborrecido, desesperado, e com a convicção tristíssima, de que não encontraria procurador, que pudesse merecer a minha confiança.
— Que homens! disse comigo mesmo; que gente desmoralizada, ardilosa e má! isto será talvez devido à influência do oficio: eles têm tantas vezes de procurar, de trabalhar em proveito de causas injustas, têm tantas vezes de contrariar a verdade, a justiça, a inocência, e o direito, que acabam por habituar-se ao dolo, à mentira, e ao sacrifício de todas as noções do dever.
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