pode-se; porque é assim que estou vivendo.

XXII

 

Recebi hoje uma carta do Reis, a quem não tornarei a chamar meu amigo; pois não me é possível ser amigo de homem algum.

Eu não tinha voltado à casa do Reis nem para cumprir o dever de cortesia, indo render-lhe agradecimentos, e também ao armênio pelo favor da luneta mágica.

Não voltei e não volto lá: detesto o armênio e desconfio do Reis; o melhor sinal de imerecida gratidão que a ambos posso e devo dar, é esquecê-los, é não ir lá fitar por mais de três minutos sobre eles a luneta que me deram: o armênio é concentrado e rude; o Reis é expansivo e obsequiador; quem sabe o que a minha luneta me mostraria no intimo de qualquer deles?...

Devem ficar-me muito agradecidos por não ir vê-los: detesto o armênio, desconfio do Reis; não quero relações com eles.

Mas a carta do Reis deu-me que pensar; ei-la aqui ipsis verbis.

"Rio de Janeiro, 1.° de abril de 1868: Ilmo. Sr.: Não mereci a graça de uma visita de V. S a depois da noite da operação cabalística do armênio, e apenas desde anteontem comecei a ter singulares noticias da sua luneta mágica; mas de modo que sou obrigado a pedir a V. S B o favor de explicações que me são indispensáveis.

"Há dois dias que o meu armazém é procurado por numerosos fregueses e desconhecidos que se empenham por obter esclarecimentos relativos à luneta mágica. Muitos zombam do caso, atribuem maravilhas inconvenientes que se contam à exaltação perigosa da imaginação de V. S.ª; exigem porém informações sobre o armênio e sobre a operação cabalística, de que têm notícia não sei por quem.

"Outros, e infelizmente não são poucos, pretendem que com a luneta mágica tem V. S.ª a faculdade de ver os corações e as consciências de quantos observa por mais de três minutos, descortinando assim segredos, vícios que se escondem, erros que se ocultam e más qualidades que se dissimulam, protestando todos contra o perigo social que pode resultar de tão fatal e assombroso poder de encantamento.

"Alguns enfim incômodos e teimosos querem por força que eu lhes venda lunetas iguais à sua, e perseguem-me com instâncias que me perturbam o sossego.

"O maldito armênio diz que está pronto a encantar lunetas, sem dúvida com intenção maléfica; eu porem não consinto que ele apareça no armazém.

"V. S.ª compreende que tenho urgente necessidade de saber tudo quanto há e se tem passado em relação à sua luneta mágica.

"Devo aos meus fregueses e ao público em geral explicações sem reservas, transparência sem a mais leve sombra em tudo quanto se prepara e se faz, se imita, se aperfeiçoa, se inventa e se realiza nas minhas oficinas, e de quanto se vende no meu armazém ou dele sai, no cumprimento deste dever há para mim escrúpulo e honra; peço pois a V. S a que me habilite para dar esclarecimentos e informações às pessoas que incessantemente me estão procurando, e inquirindo sobre esse importante assunto Sou etc. Reis."

XXIII

 

A carta não me foi agradável; refleti por algum tempo e resolvi não responder ao Reis; a falta de resposta era inqualificável grosseria; eu porém já tinha em tão profundo desprezo e aborrecimento os homens, que pouco ou nada me preocupava a idéia de ofender o Reis. Decidi-me a fazer de conta que não recebera a carta.

Mas quem poderia ter atraiçoado o meu segredo? Tornado patente a minha facilidade da visão do mal?... Só três homens:

O armênio, de cuja ciência mágica se duvidava, e cujo testemunho era portanto suspeito, e para quase todos seria ridículo.

O Reis que me escrevia, interrogando-me, e que por conseqüência. nada sabia, visto que perguntava.

O velho Nunes que assistira a cena dos trabalhos mágicos do armênio e a quem no dia seguinte eu confiara imprudente, louca e desastradamente o segredo do poder miraculoso da minha luneta magica.

Portanto, o traidor, o propalador do segredo fora o velho Nunes, o procurador imoral e refalsado, de quem eu fugira, e a cujo convite para jantar no seio de sua família faltara sem escusas ulteriores nem satisfações.

O velho trapaceiro e ignóbil procurava pois vingar-se do meu desprezo, denunciando a todos, publicando a força prodigiosa da luneta que eu possuía.

Vingança estéril, vã, estúpida! Que me importa o juízo dos homens? Que me importa o mundo?

Mundo, homens, velho Nunes e minha própria vida eu embrulho todos e tudo isso nos trapos ascosos do meu mais profundo desprezo,

Não dei a menor importância à revelação traidora, mal intencionada do velho Nunes: pensei que ainda quando ela pudesse trazer-me desgosto e porventura colocar-me em circunstâncias embaraçosas e desagradáveis, nem por isso chegaria a tornar-me mais desgraçado do que eu já era.

Atirei com a carta do Reis sobre a mesa, tomei o chapéu e sai a passear para desforrar-me de três dias de misantropa reclusão, a que me condenara.

Eu levava comigo o suplício da visão do mal, e não pudera imaginar que ainda outro suplício e igualmente horrível por ela me estivesse esperando no mundo em que vivia.

Saí, como disse, e avançara apenas alguns passos, quando reparei que muitas pessoas fugiam de encontrar-me, que outras voltavam-me as costas, que as senhoras se retiravam apressadas das janelas.

A princípio não pude explicar o fenômeno; logo depois, porém, lembrou-me a insidiosa revelação do velho Nunes, e compreendi que me fugiam por medo da minha luneta magica.

— Fogem, disse rindo-me; fogem, porque lhes doem as consciências e se reconhecem todos hipócritas e maus.

Era a primeira vez que me ria desde dois meses; o meu riso, porém, era cheio de fel, era o rir de maldição irônica lançando em face à humanidade-demônio.

Era quase noite; cheguei à Praça da Constituição, e entrei no jardim que estava cheio de povo.

De súbito ouvi surdo e longo ruído de centenas de vozes, semelhante ao trovejar longínquo da tempestade afastada; que me importava isso?... Continuei o meu passeio pelas ruas do jardim, mas antes de três minutos a Praça achou-se deserta, e no jardim apenas a estátua eqüestre e eu!...

— Que gente! exclamei sem poder conter-me: não há um homem, não há uma mulher que ouse afrontar a luneta mágica.

Veio-me o desejo de olhar e estudar a estátua eqüestre; imediatamente porém senti tanta repugnância ao desengano provável das idéias e sentimentos que eu acreditava ou antes acreditara presidindo e dirigindo o acontecimento majestoso e patriótico que esse belo monumento comemora, e atesta com sublime ufania que cedendo a generoso impulso, não quis contemplá-lo, e deixando o jardim, dirigi-me ao café vizinho, à muito conhecida casa do Braga.

Entrei, sentei-me a uma das primeiras mesas, e pedi uma xícara de café.

A sala estava atopetada de fregueses; mas apenas entrei, e tomei um lugar, despovoou-se de improviso, e um servente rude e mal-educado veio de mau modo dizer-me que não havia mais café, e que a casa dispensava a minha freguesia, e muito me agradeceria, se eu não tornasse a aparecer ali.

Desta despedida formal a uma expulsão à viva força a distância era pequena e quase nula, era a intimação antes da violência; eu tinha por mim o meu direito incontestável de ser servido, pagando o que se garantia ao gozo publico; a lata, a contenda porém não me podia convir: traguei o insulto, e saí sem responder uma única palavra ao caixeiro selvagem.

Andei às tontas, sem destino e sem norte pelas ruas; às oito horas da noite dirigi-me a um dos nossos teatros, pouco importa saber qual, comprei um bilhete, e fui tomar a minha cadeira.

Mal acabava de sentar-me, ouvi dizer perto de mim: "é ele!"

A essa voz que soara em tom baixo, seguiram-se outras que repetiram com ecos surdos: "é ele! "

Dentro em pouco o sussurro transformou-se em ruído, o ruído em desordem: as senhoras que estavam nos camarotes, recuaram os seus bancos até não poderem ser vistas, espectadores das cadeiras e da platéia levantaram-se ao mesmo tempo como um só homem, e geral gritaria de "fora! fora! fora!" ribombou estrepitosa, insistente, ameaçadora no teatro.

Um porteiro veio humildemente pedir-me que me retirasse, oferecendo-me com estúpida e revoltante aparência de benignidade a vil quantia, por que eu pagara o meu bilhete; resisti e furioso disse uma injúria ao mísero porteiro.

Mas a gritaria tempestuosa continuava; insultos desabridos, ameaças ferozes chegaram a meus ouvidos; a polícia interveio debalde em meu favor; a pateada violenta ameaçava degenerar em motim. No maior fervor da borrasca recebi da autoridade policial não uma ordem, porém um pedido para retirar-me do teatro, do qual então imediatamente sai vexadíssimo, ardendo em cólera, ferido pela reprovação de todos, e ao som dos aplausos escarnecedores, com que era festejada a minha vergonhosa retirada.

XXIV

 

Nos dois seguintes dias teimei em aparecer ao público e experimentei iguais testemunhas de geral condenação.

Nas ruas e praças fui cem vezes apupado.

Na tarde de um desses dias tentei ir passear a Niterói; mas a minha entrada na ponte da companhia Ferry, produziu um movimento ameaçador entre os passageiros, e eu tive logo de sair da ponte ao ouvir algumas vozes sinistras que repetiram: "deitá-lo-emos ao mar!"

Em um hotel negaram-se a dar-me o jantar que pedi.

O cocheiro de um carro da praça não quis acudir ao meu chamado.

E ninguém mais fugia de mim, porque todos me espantavam com ameaças.

No terceiro dia fiquei encerrado em casa; mas à noite fui a um aparatoso baile, para o qual estava desde algumas semanas convidado.

Era uma brilhante festa dada em aplauso e honra de um casamento com ardor desejado, e com júbilo abençoado pelas famílias dos noivos.

Apenas apareci foi extraordinária a agitação que se sentiu na sala cheia de convidados, as senhoras encheram-se de terror, e cobriram os rostos com os leques e os lenços, a noiva esteve a ponto de desmaiar; os homens deixaram-me perceber pragas que a cortesia, e o respeito à sociedade onde estavam, abafavam; o dono da casa três vezes encaminhou-se para mim e outras tantas recuou confuso e com evidentes sinais de contrariedade; eu o compreendi, e poupando-lhe o amargor de uma despedida formal, fiz o que me cumpria: fugi desesperado, chorando de raiva, e cada vez mais convencido da malvadeza de toda a humanidade.

XXV

Que noite de cruel vigília ainda mais cruel do que tantas outras, cujos horrores já havia provado!

Eis-me pois ainda mil vezes mais desgraçado do que dantes!

Não creio em homem algum, em mulher alguma: sou a descrença viva, ceticismo animado.

Desconfio de todos.

Aborreço a vida, mas sendo obrigado a Viver, como vai correr a minha vida?

Um por um todos se arreceiam de mim, e todos me detestam.

Em toda parte sou por todos enxotado, de toda parte repelido.

Ninguém me quer ver; quando apareço, ninguém me tolera.

Tocou-me a lepra moral.

Eu sou como a peste, pois todos fogem de mim; sou pior que a peste, sou como um cão hidrófobo que se persegue, e cuja morte se deseja!

Oh, meu Deus! meu Deus! Eu sou católico e é somente por isso que não me mato; mas se alguma vez o suicídio pudesse merecer o perdão, a vez do perdão do suicídio era esta.

Meu Deus! eu pequei, confiando na magia, entregando-me a um pérfido mágico, aceitando para meus olhos o socorro do demônio!

Perdão, meu Deus!

Oh!... como é bom não ver!!!

XXVI

 

Não sei, não posso dizer quantas vezes nessa noite furioso lancei mão da luneta mágica para quebrá-la; mas, com vergonha o confesso, nunca tive animo bastante para realizar o meu pensamento.

Não dormi um instante, chorei quase toda a noite, e quando não chorei, revolvi-me, debati-me no leito em agitação violenta, e devorado por abrasadora sede.

XXVII

 

Na manhã seguinte eu tinha os olhos inchados, a cabeça atordoada, e o rosto inflamado; senti-me doente; mas não quis anunciar o meu estado.

Às dez horas introduziram no meu quarto o Sr. A..., o dono da casa, donde eu fora expelido na noite antecedente.

Recebi-o sem ressentimento.

— Está doente ? perguntou-me.

— Um pouco; sofri muito esta noite.

— Eu o previ, meu amigo, e por isso me apressei a vir dar-lhe explicações, que reputo indispensáveis até para o bem do seu futuro.

— Agradeço a sua bondade; eu porém sei tudo e sei demais.

— Que sabe, pois?

— Que um miserável, o muito conhecido velho Nunes, fez espalhar a notícia de que eu possuo uma luneta magica, pela qual chego à visão do mal, e descubro todos os segredos e todas as maldades e vícios que se escondem e se dissimulam; e que o medo que causa n minha luneta faz com que se levantem contra mim todos os homens, porque com efeito todos são perversos e temem que sejam conhecidas suas perversidades.

— E então...

— Então desde que se espalhou tal noticia eu tenho sido apupado, insultado, repelido por toda parte, onde apareço. Não é isto?

— Não é tudo, como lhe parece.

— Explique-se.

— Não se ofenderá se eu lhe disser toda a verdade?

— Não: diga tudo.

— Meu amigo; a população da nossa capital 6 muito civilizada, e não acredita no poder da sua luneta mágica.

— Neste caso por que me fogem?... Por que me apupam?... Por que me temem?

— Aqueles que o têm perseguido com apupadas e os que fogem tremendo da sua luneta dividem-se em duas classes, uma a que pertencem todos os crédulos e pobres de espírito que ainda prestam fé a feiticeiros e artes mágicas: há dessa gente em todas as capitais; a outra é a dos garotos que ousam rir e zombar de infortúnios e males a que todos estamos sujeitos.

— Que quer dizer?

— Quanto aos mais eu vou dizer-lhe o que há, e arme-se de coragem para ouvir-me.

— Nada mais me pode admirar, e menos assustar neste mundo.

— O velho Nunes, que se proclama seu amigo e intimo confi dente, foi com efeito o propalador das notícias que correm; e sabe o que se pensa? O que todos acreditam?

— Diga.

— Que o senhor, tendo imaginação ardentíssima e fraquíssima razão, foi arrastado por um pérfido e malvado armênio até deixar-se dominar pela mais inacreditável mania; que por isso o senhor imagina ver o que não vê, o que não é real; supõe, julga infalível a visão extraordinária da sua luneta, e nas confidências de alguns amigos, que aliás abusam da sua credulidade enferma, descreve os corpos, e expõe íntimos das consciências de quantas senhoras, e de quantos homens fita com a sua luneta.

— Mentira e verdade! corpos não, é falso; minha luneta 6 honestíssima; almas sim, minha luneta as patenteia plenamente, e eu tenho visto em todos hediondas maldades.

— Não discutamos agora esse pretendido poder da sua luneta. O que 6 certo é que o simples receio de que o senhor, acreditando que vê realmente o que apenas molestamente imagina, e que descreve em confidências de amigos quadros físicos, defeitos e virtudes, em que ninguém crê; mas que em todo caso ridiculizam não pouca as vítimas da sua luneta, faz com que todos o evitem, todos o queiram longe, todos temam somente o ridículo que provém do que chamam sua manta.

— Mania!!! que o seja embora; mas eu juro que não tenho um só amigo, que não tenho confidentes: isso é calunia.

— Cumpria-me dar-lhe estas explicações, meu amigo. Fique certo de que não há homem, nem senhora de juízo que dê importância e que tema a sua luneta mágica; mas das suas falsas apreciações, e dos sonhos extravagantes mas não recatados, não ocultos da sua imaginação resultam o ridículo de que todos querem escapar.

— Entendo-o perfeitamente.

O Sr. A... disse-me ainda algumas palavras consoladoras; convidou-me a tratar da minha saúde alterada pelo excesso de imaginação, e fraqueza do espírito e deixou-me enfim.

XXVIII

 

E esta!

Por conseqüência estou definitivamente declarado doido pela opinião pública que e a rainha do mundo, e cujos decretos não tem apelação.

A humanidade perversa e infame engenhou o mais seguro dos meios para livrar-se de mim: não há recurso contra ela.

Todos os homens, todas as mulheres cientes do meu poder, todos e com eles e elas todos os médicos, autoridades declaradas e decretadas na matéria dizem — que estou doido!

Não há, não pode haver uma só voz que proteste contra a sentença; porque a todos eles e a todas elas convém que eu seja reconhecido — doido.

Há só uma voz que pode e há de protestar, é a minha, a voz suspeita, a voz do doido.

Por conseqüência estou — doido!!!

E amanhã, ou hoje mesmo, talvez daqui a uma hora, quatro ou seis policiais quatro ou seis urbanos virão agarrar-me, e hão de conduzir-me ao hospício da Prata Vermelha!...

E meu irmão se mostrará compungido, e a prima Anica fingirá chorar, e a tia Domingas rezara por mim nos seus rosários!!!

E rir-se-ão todos de mim!... e me chamarão o — doido!

Meu Deus! estarei eu realmente doido?...

Ninguém compreende os tormentos que sofri com esta nova perseguição da perversidade dos homens, com esta idéia da — loucura — que começou a agitar-me.

O atordoamento da minha cabeça aumentou, a febre devorou-me com milhões de línguas de fogo e eu bradei em alta voz:

— Água! água! quem me dá água?...

XXIX

 

Lembra-me que vi entrar o mana Américo, a tia Domingas, a prima Anica, e meia hora depois o médico da família.

Lembra-me que eu quis falar e não pude, porque faltou-me a voz; lembra-me que procurei saltar fora do leito e não pude; porque me seguraram.

Lembra-me que instintivamente cerrei a minha luneta na mão direita, e que não houve esforço humano que pudesse conseguir abrir-me a mão, até que o médico, chegando nessa conjuntura, proibiu severamente o emprego de tal violência.

Lembra-me que a prima Anica perguntou:

— Ele está mesmo doido, senhor doutor?

E que o médico respondeu:

— Veremos.

Sábia resposta que não resolvia a questão.

Lembra-me que o doutor sangrou-me copiosamente no braço esquerdo.

Vi tudo isso sem poder dizer que estava vendo.

Depois saíram todos, deixando ao pé do meu leito dois escravos possantes para, em caso de necessidade, conter o doido.

Creio que dormi; quanto tempo não sei, talvez mais de vinte e quatro horas.

Quando acordei, senti penetrante dor na mão direita: eram os meus dedos que pregados na parte superior da palma da mão defendiam a luneta mágica; abri os dedos, levantei-os a custo.

Quis ensaiar a voz e disse:

— Água!

Deram-me água, que bebi com ardor febril.

Descansando outra vez a cabeça no travesseiro, tornei a cerrar os olhos, mas com a consciência de me achar completamente acordado e refletidamente determinado a fingir que dormia.

O meu coração palpitava normal, eu não sentia mais nem atordoamento de cabeça, nem calor, nem sede; estava pois muito melhor, estava apenas um pouco abatido.

Ordenei minhas idéias, recordei quanto se havia passado, e tirei de tudo duas principais conclusões; primeira: que havia geral conspiração para que eu fosse declarado doido; segunda: que eu me achava no perfeito gozo das minhas faculdades intelectuais.

E a melhor prova que a mim próprio dei da segurança do meu juízo, foi a resolução que tomei de proceder com prudência e cautela, submetendo-me sem resistência, nem oposição ao médico e aos meus três parentes, e simulando-me ainda doente.

Havia porém uma condescendência, a que de modo algum me prestaria: era a entrega da minha luneta mágica, que em vão tinham já procurado arrancar-me; e para poupar-me a maiores lutas, tirei sutilmente o cordão que a fazia pender do meu pescoço, e atei-o a uma das minhas pernas. Era um recurso fraquíssimo, mas o único de que lembrei na situação em que me via com duas sentinelas dentro do quarto.

Calculei que para salvar as aparências de caridade, ao menos durante alguns dias, não empregariam violências materiais contra mim no empenho de descobrir e tomar-me a luneta.

É assim a natureza humana: na minha última noite de tormentosa vigília, tive horror da luneta mágica e até por vezes o pensamento de quebrá-la, e agora a fúria dos meus inimigos que a todo o transe queriam privar-me do poderoso meio que me assegura a visão do mal, centuplica em meu capricho o valor desse tesouro, que eu só e nenhum outro homem talvez possui no mundo.

O homem é assim; menino mais ou menos malcriado toda sua vida.

O espírito de oposição, o prazer de contrariar os outros começam no berço e só acabam, quando chega a morte.

Se quiserem que algum homem grite: — "não!", ordenem-lhe que balbucie: — "sim".

XXX

 

Asseveram que estou doido, e eu me sinto no pleno e perfeito gozo de minhas faculdades mentais.

Mas de que me aproveita a consciência do meu estado, a certeza de que estou em meu juízo, se o mano Américo, a tia Domingas, a prima Anica, e toda a população do Rio de Janeiro me declaram doido ?

A opinião pública que dizem ser a rainha do mundo decretou que me acho vitima de alienação mental.

Vitima concordo que eu esteja sendo; mas alienado?... Protesto.

Doido por quê?... Porque tenho o privilégio de descobrir o mal que se dissimula; e porque não há máscara de hipocrisia, que resista à minha luneta mágica!

Doido! . . .

Ah! quantos homens de juízo não andarão por aí declarados doidos somente para que os golpes certeiros de suas palavras terríveis percam a força, com que devem ferir e despedaçar a imoralidade, os vícios ignóbeis e até os crimes de grandes figurões?...

Eu não creio, não posso mais acreditar na bondade ou na virtude de homem algum; todos são mais ou menos ruins, falsos, e indignos; há porém alguns que sem dúvida com o fim de ser mais nocivos aos outros, e para produzir maior dano, têm o merecimento de dizer a verdade nua e crua, e chamar as coisas pelos seus nomes próprios tornando-se verdadeiros e francos certamente ainda por maldade.

Pois bem: esses perigosos faladores são em breve denunciados ao publico sempre enganado, como — doidos.

Conversem um pouco e em voz baixa com a nossa capital, e hão de reconhecer os fundamentos desta observação.

Um exemplo: um desses homens de palavra solta e descomedida declara sem cerimônia e declinando nomes que tal e tal sujeitos que chegaram a titulares e são considerados, lisonjeados e adulados pela sua riqueza nas mais elegantes sociedades, mereciam antes estar ria casa de correção por terem enriquecido com abusos escandalosos e crimes, de que ele faz a história.