— É doido.
Outro exemplo: um jornalista que escreve sem luvas de seda, chama na imprensa ao ministro que dilapida, dilapidador ao funcionário ou administrador que rouba, ladrão; e assim por diante sem limar o verso para que não fira. Que doido!
Terceiro exemplo: um desastrado falador diz a um pai cego e doido pelos filhos: — "os seus filhos são vadios e procedem indignamente;" — a um esposo de quem é amigo: — "a vida repreensível que vives, a depravação de teus costumes não só te nodoam, como talvez preparem a vergonha da tua casa... não desesperes tua pobre mulher: corrige-te". É doido, absolutamente doido.
E esses e outros semelhantes são doidos, e eu também estou doido; por que?...
Porque na sociedade a maior prova, o mais seguro sintoma de loucura é dizer a verdade sem rebuço, mesmo quando a verdade pode ser desagradável ou ofensiva.
XXXI
E em certos casos de que vale a consciência ao homem contra s guerra teimosa e perversa dos outros homens?...
Nem Hércules contra dois; que poderá um contra todos?...
Aqui estou eu certíssimo de me achar em meu perfeito juízo e com serias apreensões de ver-me obrigado a endoidecer em breve.
Os meus parentes, os meus conhecidos, e todos crêem ou fingem crer, e dizem, proclamam, gritam por toda parte que estou doido.
Há situação mais horrível e ameaçadora?...
Considere-se cada qual no meu caso.
Em casa apenas levantado da cama, e durante o dia todo a família os parentes com hipócritas aparências de compaixão a repetiram mil vezes: — "coitado! está doido..."
Os falsos amigos em suas visitas dizerem-me: — "trate-se! creia que a sua cabeça não está boa..."
Na rua, no passeio, no teatro, em toda parte uns a rir e a gritar: — "está doido!"; outros com voz lastimosa a murmurar: — "pobre moço! está doido".
Durante a noite guardas possantes velando no quarto do doido.
E oito, quinze dias seguidos, um mês, família amigos, conhecidos, desconhecidos, toda a população de uma cidade a repetir de hora em hora, de minuto a minuto, incessantemente: — "está doido! está doido! "
Quem seria, quem é capaz de resistir a semelhante impulso violento para a loucura?...
De que vale em tais casos a própria consciência contra esse acordo geral que a condena?...
O homem mais forte cede exasperado à convicção de todos, e em breve prazo começa a duvidar de si...
E desde que começa a duvidar de si, começa a enlouquecer...
Oh! é horrível!... e um martírio que os algozes mais ferozes nunca imaginaram!
Mas eu hei de reagir!
Zombarei da fúria desses monstros que se chamam homens.
Sinto-me grande, porque sou um a assoberbar a todos.
E para assoberbá-los é condição indispensável sofrer com frieza, resignação, e sem desesperar: saberei fazê-lo; e além da frieza e da resignação no sofrimento, é também essencial o mais profundo desprezo da humanidade.
Oh! é impossível que eu a despreze mais!
XXXII
Era dia, e eu estava lá cansado de refletir e de esperar.
Fraco, abatido e apreensivo, uma prolongada e grave meditação podia ter conseqüências funestas para mim; tive medo da exaltação do meu espírito mas para dominá-la, para arrancar-me a ela, eu precisava do uma distração poderosa.
Mas de que modo entreter-me, distrair-me no triste encerro do meu sótão; deitado no meu leito, e com guardas a dois passos?...
De que me havia de lembrar?.., da minha luneta mágica; foi uma lembrança muito natural.
Tanto tempo já tinha passado sem que eu gozasse o poder miraculoso desse tão perseguido vidrinho ótico!
Não pede conter-me; a que risco me expunha?... os meus guardas eram escravos da família e habituados a respeitar-me; eu estava certo de que eles não ousariam vir lutar comigo para me tirar com violência a luneta mágica.
Não hesitei.
Com o maior cuidado e sossego desatei a luneta mágica, que pouco antes atara prudentemente a uma de minhas pernas, e deitado, como estava, não tendo objeto de escolha ou de preferência em que a fitasse, fitei-a indiferentemente no teto da casa.
O sótão, onde eu tinha o meu aposento, era cômodo, porém multo modesto, conforme as regras de humildade da tia Domingas; o teto era de telha vã, e a casa já contava de existência meia dúzia de lustros.
O que a minha luneta me mostrou foi uma multidão de insetos muito comuns, e demasiadamente conhecidos de todos nós para que eu me ocupe em fazer a sua descrição, segundo os apreciei durante os três minutos da visão das aparências.
Chegada porém a visão do mal que imensa corte de demônios! Quanta maldade em corpos tão pequenos!
XXXIII
Vi um grilo.
Em sua natureza maléfica o perverso diabrete sentindo-se incapaz de produzir maior dano, rogando uma contra a outra base de seus élitros produz o que lhe chamam canto, e que é um dos pequenos tormentos da humanidade.
Não julgueis que é insignificante o malefício perturba o sono, gasta a paciência, arranha os ouvidos, ofende os nervos e impede o sossego.
O grilo com o seu canto desagradável, teimoso, e importuno, é o tipo desses homens cruéis, estafadores da cortesia alheia, que muitas vezes tomam conta de uma pobre vítima que tem em que se ocupar, e horas inteiras a martirizam com interminável massada.
Felizmente para mim os grilos são mais freqüentes nas assembléias legislativas, do que no meu sótão.
XXXIV
Ao pé do grilo um seu irmão pela família vi um gafanhoto: outro malvado e ainda muito pior; é flagelo em vida, e o tem sido depois de morto.
Vivo, o gafanhoto é o inimigo do jardim, do pomar e da lavoura; dotado de infernal gula devora flores e folhas, ervas e searas; pelo seu peso parece desprezível, e todavia quando invade em multidão incalculável, quando é praga que ataca, ao seu peso estalam arvores que derribadas caem.
Morto, o gafanhoto é em certas circunstâncias muito pior e nisso tem por igual o seu irmão grilo. Dado o caso de emigração ou de praga de gafanhotos e de grilos, se uma súbita mudança atmosférica, alguma tempestade dá cabo deles, a conseqüente putrefação da imensidade desses malvadinhos determina a peste que povoa os cemitérios.
Os grilos e os gafanhotos não são melhores que os homens.
XXXV
Vi uma pulga. A perversa estava cheia de sangue, talvez meu, com que se havia regalado, e atenta descansava em suas grandes patas posteriores pronta a dar o salto de ataque ou de retirada.
A pulga é a parasita sanguinária que vive à custa de muitos quadrúpedes e que não pouco persegue o homem.
Vive de beber sangue a atroz, e freqüentemente agrava a atrocidade, ultrajando o decoro com perseguição revoltante. Inimiga declarada do homem e da senhora, ousa devassar o leito da honestidade e do recato, morder sem piedade a menina, a donzela, a esposa, a matrona, que temerosas dão-se a mil cuidados e diligências para descobrir e apanhar a incômoda sanguinária antes de se deitarem.
No teatro a pulga não falta, no baile também salteia, e assalta, embora menos freqüente; às vezes vemos no teatro ou no baile uma elegante senhora, que parece preocupada, que indicia no rosto, e em leves movimentos contrafeitos achar-se de mau humor ou indisposta; debalde lhe perguntamos se sofre, ou se alguma coisa lhe falta: ela o não confessa; é porém uma pulga insolente, que aferrada entre os dois níveos pomos, ou abaixo de algum deles lhe sorve o sangue com atrito cruel.
A pulga é um demônio que faz inveja a muita gente sem generosidade.
XXXVI
Vi um mosquito: outro monstro sanguinário dez vezes mais bárbaro que a pulga; porque a pulga farta-se do sangue em silêncio, e não zomba das vitimas, e o mosquito, à semelhança dos selvagens e dos bárbaros que dançavam festivos em roda dos cadáveres de suas vitimas, o mosquito, digo, bebe sangue ao som da musica, ou antes e depois de bebê-lo em nossos corpos, canta enfadonho, insuportável, desatinados, insistente como o grilo.
A natureza, que se me afigura mãe, fonte exclusiva do mal, auxiliou a perversidade do mosquito, dando-lhe, em facetas imperceptíveis e inumeráveis, imperceptíveis e inumeráveis olhos, com os quais o mosquito vê perfeitamente para diante e para trás, para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, pelo que é licito concluir uma coisa horrível isto é, que cada mosquito enxerga muito mais do que os afamados estadistas do Império do Brasil, que, segundo o testemunho dos fatos, mostram ser tão míopes como eu.
Por esta consideração ainda mais detesto o mosquito.
XXXVII
Vi o cupim.
O cupim não é sanguinário, mas a sua malvadeza não é menos prejudicial à sociedade.
A visão do mal patenteou-me segredos incríveis que li no seio recôndito desse inseto destruidor.
O cupim estraga, aniquila mais cabedais do que certos ministros da fazenda e de obras públicas que temos tido no império do Brasil: façam idéia de quanto ele estraga para vencer na comparação!
Conhecendo a faculdade destruidora do maldito inseto, os carpinteiros, os livreiros, os alfaiates e as modistas fizeram comércio de amizade, e pacto de aliança com o cupim, e todos reunidos representam e formam uma firma comercial sob a denominação de Cupim e Cia.
Em dois anos arruma-se uma casa, em dois meses fica em pó e renda uma biblioteca, em duas semanas torna-se sem serventia um guarda-roupa.
E note-se, o cupim é implacável, profundamente desprezado de todas as conveniências, e revoltoso ao ponto de não dar importância nem a um decreto referendado pelo ministro do império; em seu furor o cupim é capaz de não parar nas velhas calças brancas da corte, e de ir até roer as novas calças azuis dos nossos gentis-homens.
O cupim é portanto um inseto-monstro que deve ser posto fora da lei.
XXXVIII
Além do cupim vi uma aranha.
Feio bicho; era porém ele que principalmente dominava o teto do meu sótão.
No centro da imensa teia que se estendia em admirável rede de mil fios entrelaçados por baixo de todo o telhado, o diabo da aranha se ostentava soberana.
A um movimento do ar que sacudia tênue fio da teia, a aranha avançava logo para, se era preciso, remendar ou dar nó à rede; ao toque de um inseto os fios tocados enlaçavam a mísera presa que a aranha ia logo devorar sem piedade.
O sistema da centralização política e administrativa estava ali perfeitamente realizado pela aranha.
Era exatamente como a administração, a polícia e a guarda nacional do Brasil.
Mas a aranha ia em perversidade muito além desse domínio escravizador do telhado.
Feia, assassina, terrível, a aranha excede em crueza a todos os animais irracionais, e, oh assombro! até aos racionais, até aos homens!
Como todos os insetos carnívoros caça, mata e devora outros insetos.
Pior que os outros insetos assassinos, guerreia, e mata os da sua própria espécie a semelhança dos homens.
E ainda pior que os homens, a aranha, o tipo da malvadeza levada ao zênite, a celeradez nec plus ultra, à mais horrível exceção em tudo, a aranha mistura o amor com o ódio e o gozo com o assassinato, a aranha cede ao instinto, obedece à lei da reprodução da espécie, e satisfeito o império natural da lei, a aranha, como a antiga e fabulosa amazona, ataca, fere, e mata aquele mesmo que pouco antes lhe dera a glória próxima de encher de ovos prolíficos a sua tela.
Onde se viu perversidade semelhante!!!
XXXIX
Horrorizado da aranha, desviei dela a minha luneta mágica e em movimento de repulsão levei-a até uma das extremidades do telhado, onde encontrei metade do corpo de um rato que me olhava esperto, e com ar que me pareceu de zombaria.
Senti vivo desejo de estudar o rato e fixei-o com a minha luneta; mas o tratante somente se deixou exposto durante minuto e meio, e fugiu-me, deixando-me ouvir certo ruído que me pareceu verdadeira risada de rato.
E fiquei sem poder apreciar esse quadrúpede roedor e daninho pela visão do mal!
O rato é de todos os animais que tenho encontrado, o único que não me foi possível estudar tanto quanto desejava.
Por quê?...
Seria isto efeito do acaso?
Ou é que os ratos tem no Brasil o privilégio de escapar à justa curiosidade, e às justíssimas diligências perseguidoras de quem os deve apanhar, e pôr em boa guarda?...
Não creio nesta segunda hipótese.
As ratoeiras abundam; todos o sabem.
Agora o que desconfio que seja verdade, e que a justiça pública arma ratoeiras que só apanham os camundongos, e deixa e tolera que famosas ratazanas vaguem impunes, floresçam e brilhem, fazendo farofa pelas ruas da cidade.
XL
Ainda conservava fixada a minha luneta mágica no ponto donde me fugira o rato, quando senti rumor de pessoas que vinham subindo a escada do sótão e ouvi distintamente a voz do médico.
O meu primeiro cuidado foi imediatamente esconder a luneta do mesmo modo que antes fizera, e em seguida fechei os olhos e fingi que dormia tranqüilo sono.
Era meu intento, fingindo-me adormecido, ouvir as observações do médico e dos meus três ruins parentes para saber o que devia esperar e temer, e como me cumpriria, ou me conviria proceder.
Confesso que foi grande atrevimento meu querer iludir o médico com um sono falso; contei porém a ligeireza habitual dos exames de muitos desses doutores que, depois do primeiro e esmerilhado estudo do doente, supõem governar a natureza e a moléstia, e dão a cada uma de suas visitas a duração de — cinco minutos por cerimônia.
Desconfio que a visão do mal tem me tornado mordaz; mas os homens merecem ser tratados assim.
XLI
Entraram.
Reconheci as vozes do doutor, do mano Américo da tia Domingas, e da prima Anica.
— Ele dorme, disse a prima Anica.
— Sono reparador, observou o medico com um tom magistral.
E logo tomou-me o pulso com a maior delicadeza para não me despertar; tocou-me a fronte, passando por ela a palma da mão, e examinou-me o calor dos pés.
— Do mais grave perigo está salvo, disse então o doutor; operou-se uma crise benéfica, e a congestão foi a tempo embaraçada. Respondo pelo nosso homem.
— A noticia não pode ser mais agradável, disse o mano Américo; mas eu receio muito alguma recaída...
— Não é impossível.
— A causa subsiste...
— Que causa?...
— A posse em que ele está da luneta que supõe mágica.
— Luneta que é obra do diabo! exclamou a tia Domingas.
— Luneta aleivosa e má, acrescentou a prima Anica.
— Minhas senhoras, não indiciem acreditar no poder mágico da famosa luneta para que eu não me convença de que devo tratar aqui de três doentes em vez de um.
— Essa é boa! tornou a tia Domingas: pois seria a primeira vez que o espírito maligno fizesse das suas no mundo? Bem se diz que os médicos não são religiosos.
— O senhor doutor talvez tenha razão, disse Anica; há porém coisas que fazem tontear a gente!
— Eu creio, respondeu o médico em tom brincão: a senhora por exemplo não tem em si o espírito maligno, e contudo aposto que terá feito andar às tontas as cabeças de muitos moços de bom gosto.
— Ora, ora.
— Mas, doutor, acudiu o mano Américo; tratemos seriamente deste caso: eu também não tenho a simplicidade pueril de acreditar no poder mágico da luneta fatal; todavia meu irmão está possuído dessa idéia.
— O que é mau sintoma, convenho.
— Muita gente se julga ofendida pela luneta e a teme...
— Segue-se que também é preciso tratar dessa gente que padece tanto, como seu irmão.
— O doutor graceja...
— Não; falo sério.
— Penso que convinha muito e ainda mesmo à força tomar essa luneta, e quebrá-la.
— Francamente, disse o médico; julgo que seu irmão iludido por um suposto mágico, tem-se tornado vitima da própria imaginação exaltada no maior extremo; com efeito essa ilusão, de que ele é escravo, assumiu o caráter de mania...
— Então...
— Ou é possível ou impossível curar-lhe a manta: se é impossível, para que atormentar seu irmão inutilmente? Se é possível, nós o curaremos da mania mais tarde...
— Mas...
— Agora eu o vejo escapando apenas a um ataque cerebral que ameaçou tomar proporções terríveis, e o ressentimento de qualquer violência que ele sofresse, seria capaz de levá-lo à sepultura.
— E a influência maléfica da luneta?...
— Proíbo que contrariem e que desgostem de qualquer modo o nosso doente.
— Então ele está realmente doido, senhor doutor? perguntou Anica.
— Cuidado, minha senhora; seu primo foi multo seriamente ameaçado de uma congestão cerebral; acudimo-lo a tempo; conseguimos prevenir um caso talvez desesperado, mas qualquer imprudência pode ainda ser fatal.
— A minha pergunta...
— Foi menos prudente; se seu primo a ouvisse receberia cruel impressão. Felizmente ele dorme.
XLII
Senti verdadeira dor de consciência por estar com o meu fingido sono enganando ao homem que tão decidido me defendera.
Abri os olhos; fiz de conta que despertava.
— Como vamos? perguntou-me o doutor.
— Acho-me bom; mas fraquíssimo.
— Fui eu que o enfraqueci: tirei-lhe sangue, como nenhum outro médico se lembra mais de tirar; agora a moda é condenar a lanceta; eu porém adoro ainda a minha...
— Obrigado, doutor. Se me quiser estender sua mão, eu a beijarei... duas vezes.
— Tão bom me acha?
— Pela minha gratidão acho-o ótimo.
— Logo nem todos os homens são maus.
Compreendi a alusão e guardei silêncio.
— Daqui a alguns dias resolveremos esta importante questão; agora não lhe permito conversar nem mesmo com os seus parentes.
— Pode ficar descansado nesse ponto, doutor; juro-lhe que não lhes darei nem palavra.
— Que ingrato! murmurou Anica que me apertava uma das mãos.
— Além disso quero que esteja absoluta, perfeitamente tranqüilo, e sem a mais leve apreensão triste ou temerosa no ânimo.
— Como?
— Que é da sua luneta?
— Tenho-a escondida, doutor.
— Escondida por que?
— Não me pergunte o que sabe: a minha luneta é o único tesouro que possuo no mundo ou na vida, e querem roubar-ma!!!
— Não é preciso exaltar-se tanto; confie mais em seus parentes que o amam, e que são os primeiros a garantir-lhe a posse do seu pretendido ou verdadeiro tesouro.
— Ontem à noite empregaram a força, lutaram, magoaram-me para arrancar-me a luneta...
— Engana-se: ontem à noite o senhor teve ardente febre e delírio... não se passou, o que acaba de dizer; pode usar de sua luneta sem receio algum; tranqüilize-se, serene o seu espírito os seus parentes estão aqui, e em prova de cuidado e de amor estão prontos, embora não seja isso necessário, a dar-lhe todas as seguranças...
— Sim, mano Simplício, disse Américo com acentuação enternecida; podes usar da tua luneta com a mais plena liberdade, que eu serei o primeiro a fazer respeitar por todos os meios.
— Benza-te Deus, menino! Que mal nos faz a tua luneta? exclamou a tia Domingas.
— Primo, eu prefereria morrer a causar-lhe o menor desgosto, assobiou suavemente Anica com a sua voz de música afinada.
— Já ouviu? perguntou-me o doutor.
Eu estava dentro de mim revoltado contra aquela hipocrisia refinada dos meus três parentes inimigos; por eles media, aquilatava ainda uma vez a perversão e a malvadeza da humanidade, e em meu assanhado ressentimento desejei castigá-los, ostentando a minha desconfiança.
O médico proporcionou-me a oportunidade do castigo.
— Que é da sua luneta?... perguntou-me ele outra vez, notando sem duvida a minha reflexão.
— Receio... desconfio sempre, respondi com azedume franco.
— Apresente-a; sirva-se dela; conte com a proteção de seus parentes.
— E quem é deles o fiador? perguntei acerbo.
Percebi um movimento, tríplice movimento de contrariedade e de viva impressão de ofensa; libei a minha vingança.
— Injusto irmão! disse Américo.
— Que pecado contra a natureza! bradou a tia Domingas, acrescentando em voz baixa: ave Maria, Deus te perdoe!
— Meu primo! como você é ingrato! balbuciou a prima Anica.
O doutor desatara a rir.
Os médicos são os homens que mais riem ou os homens que nunca riem, porque são os homens que mais e melhor estudam a humanidade por obrigação do ofício.
Eu quis provar que me não deixara comover, e aplaudindo em minha consciência a eloqüente risada do médico, firmei a sentença da minha bem fundada desconfiança, repetindo a pergunta:
— E quem é deles o fiador? Quem se atreve a ser o fiador dos meus três parentes?...
— Eu, disse o doutor.
Sem mais hesitar desatei a luneta, e apresentando-a, fixei-a ousadamente, observando em rápido volver as quatro pessoas que estavam diante de mim.
O médico ria-se, com um sarcasmo a rir desenvoltamente.
O mano Américo, a tia Domingas, e a prima Anica mostravam-se contrafeitos pelo vexame, e no mais completo e ridículo desapontamento.
Como é vil, ruim, baixa e indigna a humanidade!!!
XLIII
Este médico será uma exceção entre os homens?... será bom e honesto?... a sua boca pronunciou palavras justas e leais; o seu proceder foi o de um médico consciencioso; enganou-se com o meu fingido sono ou por ligeireza de observação, ou por inabilidade; mas que será este homem no fundo do coração?... evidentemente ele me defendeu; pareceu-me bom e honesto; eu porém não me fio mais em aparências.
Hei de com a luneta mágica estudar o meu doutor, quando tiver ocasião oportuna.
XLIV
Passaram pouco mais ou menos assim cinco dias.
Eu me sentia perfeitamente restabelecido; mas o médico teimava em administrar-me colheres de uma preparação que ajudada de severa dieta debilitava-me cruelmente.
Este tratamento martirizava-me; no quinto dia obtive que se suspendessem as malditas colheres de remédio que me estavam prostrando; mas ainda me ficou a dieta apenas ligeiramente modificada no sentido reparador.
Apesar disso o médico me convinha: achei nele o meu protetor, e, o que é mais, o defensor dos meus direitos de posse absoluta da luneta mágica. Ouvi-o por mais de uma vez lançar o ridículo sobre os meus três ferozes parentes que teimavam em sustentar a conveniência de despojar-me do meu tesouro.
Estimei, amei, adorei o excelente doutor, o único homem, que eu tinha encontrado com bastante amor à verdade para sustentar que eu não estava doido, e que não tinha receio da minha luneta, cujo poder, se eu nisso acreditava, era, dizia ele, apenas inocente mania facilmente curável.
Esta última apreciação, que era um erro, talvez notável contradição de médico, pois se havia em mim tal manta, era fácil que ela me levasse à perda completa do juízo, essa contradição, que bem podia ser um recurso de consolação empregado pelo doutor, por fim de contas me era útil, e tão agradecido me reconheci que deliberei não fitar a minha luneta no doutor.
Eu devia-lhe tanto, que preferi viver enganado com ele a expor-me a descobrir sentimentos repugnantes nesse homem.
XLV
Em todo este tempo o meu extremoso irmão que com tristes lamentações insistia em considerar-me doido, conservara sempre no meu quarto um ou dois escravos de sentinela.
No sétimo dia de tratamento o doutor logo que entrou acompanhado dos meus três adoráveis e estremecidos parentes, despediu as malditas sentinelas, declarou que não eram necessárias e que pelo contrário deveriam ter sido dispensadas desde o segundo dia.
Ficamos no quarto, o doutor, o mano Américo, a tia Domingas, a prima Anica e eu.
— Ora pois! disse o médico, dirigindo-se a mim, o senhor esta bom, e hoje venho despedir-me do seu tratamento.
Desfiz-me em agradecimentos, que me saíram do coração.
— Muito bem, tornou ele; quero por em prova imediata a sua gratidão.
— Que quer de mim? mande, doutor.
— Todos falam da sua luneta mágica; o senhor pretende que por meio dela pode ler no livro intimo dos sentimentos dos homens: é isto verdade?
— f: verdade, doutor.
— Otimamente; eu duvido de tudo isso e quero que dissipe as minhas dúvidas: dá-me palavra de honra que há de dizer em alta voz tudo quanto ler e encontrar nos arcanos da minha alma, fixando em mim sua luneta?
— Doutor!
— Eu o exijo.
— Oh! não!... eu lhe devo muito...
— Eu o exijo. Dá-me palavra de honra?...
— Dou-lha; é a pesar meu; mas dou-lha.
— Fite pois em mim a sua luneta: ela! venha a experiência.
Com ímpetos de curiosidade, talvez de insensata saudade da visão do mal, tremendo porém de grato medo, fixei a luneta mágica no rosto do médico, que imóvel e inabalável se deixou observar.
Vi e fui dizendo o que via.
— Cabelos castanhos e crespos, fronte soberba, olhos pequenos, mas brilhantes e incisivos no olhar, nariz aquilino, faces pálidas, lábios grossos e eróticos, pouca barba, mãos finas e delicadas, corpo bem feito, e... oh!...
— Que é isso?...
— A visão do mal!... exclamei.
— Venha ela!
— Não! não! não!
— Deu-me a sua palavra de honra: cumpra-a!
— Não!
— Eu o exijo.
Obedeci e falei tremendo e a pesar meu.
— Bela inteligência, e estudo profundo desvirtuados pela ambição do ganho, e pelo embotamento da sensibilidade! O senhor desperta à meia-noite ao chamado anelante de um pobre, cuja esposa lhe dizem que agoniza, e responde friamente: "procurem outro médico: se a mulher agoniza, não vou lá"; e conchegando ao corpo os lençóis, dorme sem remorsos; o senhor faz pacto de aliança com as moléstias dos ricos que pagam, prolonga os tratamentos para multiplicar as visitas, e dobrar os lucros... o senhor é materialista e incrédulo, não admite alma, espírito ri da vida eterna, admira o acaso, e não reconhece Deus, criador do universo, criador do homem, Deus do castigo do mau que não se arrepende, Deus do perdão do pecador contrito!... O senhor é o homem da Inteligência, raio do céu, e da ciência Incompleta, vaidosa e corrompida da terra! O senhor é uma fonte de erros e de abominações, o senhor é perverso!...
O médico desatou em estrondosas gargalhadas, talvez para disfarçar a confusão em que sem dúvida ficara, e saiu do quarto, rindo-se cada vez mais estrepitosamente em seguimento de meu Irmão, de minha tia e de minha prima que fugiram espantados do testemunho tremendo da visão do mal.
XLVI
A luneta mágica tinha caído no meu colo e eu me abismei mais tristes reflexões.
Ainda um desengano, o ultimo! O doutor que fora tão bom, tão leal para comigo, que se me afigurara tão escrupuloso no tratamento da minha moléstia, que com tanto acerto combatera, o médico que usando da sua autoridade proibira que empregassem a menor violência para me arrancarem a minha luneta, esse homem que eu quisera que fosse uma exceção entre os homens, era como os outros e mais do que muitos outros, Indigno da minha estima pelo seu ruim caráter.
Os seus escrupulosos cuidados tinham tido por fim demorar a cura para ganhar mais dinheiro! . . .
A defesa da minha luneta fora devida à incredulidade materialista, que o levava até o selvagem extremo de negar a existência do espírito que anima o homem, e de Deus sempiterno e onipotente!...
Isso porém não me espantou: afligiu-me, aflige-me; mas eu já estava preparado para o desengano cruel; a meu despeito, a despeito dos impulsos da gratidão, eu já desconfiava do médico.
O que me preocupa agora, o que me atormenta é a negridão do meu futuro, e a incerteza terrível dos tormentos que me esperam.
Que será de mim?... que vou eu sofrer?... por que provações vou passar?...
XLVII
Não posso mais ser feliz: é impossível.
Aborreço a todos, e todos me aborrecem.
Sou um contra todos, a sociedade toda está em guerra aberta contra mim.
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