Já seu pai era um livre-pensador, de espírito observador e cético, o que causava problemas para a relação do casal. Joseph volta e meia trazia para casa livros do Literary Institute, que lia e discutia abertamente, e foi com ele que o jovem H.G. pegou o gosto pela leitura.
Um evento marcante em sua infância ocorreu aos sete anos de idade, quando H.G. sofreu um acidente que resultou numa perna quebrada e várias semanas de cama, as quais passou imerso em leituras. Entre elas, conforme registrou em seu Experiment in Autobiography, de 1934, constavam revistas satíricas e humorísticas — como a Punch e a Fun, que circulavam na Inglaterra desde 1841 e 1861, respectivamente; uma biografia do duque de Wellington; um livro ilustrado sobre regiões “exóticas” do mundo, por exemplo o Brasil, o Tibete e a Tailândia, cujo título ele já não lembrava; e, mais importante que tudo, o seu primeiro contato com a chamada “história natural”. Esse termo genérico, multidisciplinar, abrangia toda uma gama de áreas ligadas ao estudo de seres vivos, passando pela biologia, paleontologia, geologia etc.
O século XIX havia sido uma época de saltos importantes para os naturalistas: os primeiros fósseis de dinossauros vinham sendo descobertos desde 1822 (o termo “dinossauro” em si é cunhado em 1841) e em 1859 Charles Darwin publicara A origem das espécies, publicação portanto ainda recente quando da infância de Wells. Também em 1859 John George Wood, famoso pelas gravuras que ilustravam suas aulas de zoologia, publicou a Illustrated Natural History, clássico inglês da divulgação científica. Foi significativo o impacto dessa obra sobre o jovem Wells, que a leu enquanto estava de cama.
Lendo sobre taxonomia e estudando as xilogravuras de Wood, diz Wells em sua autobiografia, “premonições curiosas da evolução se infiltraram em meus pensamentos”. Pela primeira vez ele percebia que havia leis que governavam a natureza, e a evolução, à época ainda um termo nebuloso e impregnado de conotações polêmicas, era uma delas. Não por acaso, é na biologia que Wells mais tarde encontra a sua área de formação, pois muito de sua obra literária se deve a seu interesse por história natural. Foi fundamental, no entanto, o estímulo do pai para que ele tenha tido esse contato, uma vez que sua educação formal deixou muito a desejar.
Ainda aos sete anos de idade, Wells foi matriculado numa escola local e, em seguida, mandado para um colégio particular chamado Morley’s Commercial Academy for Young Gentlemen, fundado em 1849 por Thomas Morley. A instituição era adepta do castigo corporal, como era comum na Inglaterra de então, e pouco se aprendia. A futilidade e o tédio da experiência foram comentados mais tarde por Wells, em “On Schooling and the Phases of Mr. Sandstone”, artigo inserido depois em sua coletânea de 1897 Certain Personal Matters. Em meio ao tédio escolar, Wells já exercitava sua criatividade juvenil, produzindo caricaturas e histórias como o longo conto The Desert Daisy, de cerca de cem páginas, escrito quando o autor tinha doze anos, inspirado pelas revistas satíricas que lia.
Em 1880, enquanto Wells entrava na adolescência, a família começou a enfrentar dificuldades financeiras. Além do fim da carreira de Joseph Wells nos esportes, a loja da família quase foi à falência. Todos passaram a procurar fontes de renda: enquanto o pai cuidava da loja, a mãe voltou a prestar serviço para os seus antigos empregadores em Uppark, um casarão do século XVII localizado em Hampshire. Os três filhos, Frank, Fred e Herbert, trabalharam, entre outras atividades, como assistentes de vendedores de tecidos. Herbert passou um tempo como aprendiz no ramo, primeiro em Windsor, por dois meses em 1880, depois em Southsea, entre 1881 e 1883. No intervalo “entre tecidos”, trabalhou numa escola em Wookey e como auxiliar de farmacêutico em Midhurst, cuja especialidade era uma tal “cura universal”.
As agruras nesse período renderam ao jovem Wells ideias para alguns de seus romances. Em Tono-Bungay (1909), por exemplo, o protagonista, que leva o segundo nome de Wells, trabalha produzindo o remédio que dá título ao romance, uma criação do seu tio e que ele sabe e reconhece com tristeza que não serve de nada. Já sua experiência no mundo do comércio têxtil inspirou a história do escapista Mr. Hoopdriver, que alivia a frustração com seu trabalho andando de bicicleta (à época uma moda nova na Inglaterra) e se refugiando num mundo de fantasia em As rodas do acaso (1895).
Quando não se via trabalhando em turnos de treze horas por dia e dividindo dormitórios coletivos com outros aprendizes, H.G. visitava sua mãe em Uppark, que ele descreve com detalhes em Tono-Bungay. Há dois elementos importantes no casarão dignos de menção aqui: o primeiro é que havia um antigo telescópio refletor no sótão do casarão, e a observação das estrelas e da Lua instigou em Wells o interesse pela astronomia, tema recorrente em sua obra (questões astronômicas aparecem, inclusive, em pontos-chave de A máquina do tempo). O segundo é a grande biblioteca de Uppark, onde Wells teve acesso aos livros do antigo dono da mansão, Sir Harry Featherstonhaugh.
1 comment