Lá o futuro escritor leu as obras de autores como Thomas Paine e Daniel Defoe, as Viagens de Gulliver, de Swift, em versão integral, Utopia, de Thomas More, e A República, de Platão. Assim como em seu primeiro contato com a história natural, essa descoberta da literatura e da filosofia teve um efeito transformador sobre o jovem, e é evidente a influência de autores como More e Platão, com suas discussões a respeito de como criar uma sociedade perfeita, sobre o que viria a ser o primeiro romance de Wells, A máquina do tempo. Em todo caso, cada vez mais Wells se dava conta de suas tendências intelectuais, e de que a vida no ramo dos têxteis não era o que ele imaginava para si.
Em agosto de 1883, com quase dezessete anos de idade, Wells lançou um ultimato para sua mãe. Ele queria largar o Southsea Drapery Emporium, onde estava trabalhando, para frequentar a Midhurst Grammar School como aluno assistente. As “escolas de gramática” eram uma parte do antigo sistema educacional britânico, a princípio encarregadas de ensinar línguas clássicas como latim e grego, mas que desde 1840 abrangiam um currículo literário e científico mais amplo na educação secundária. A escola de Midhurst atendia alunos dos treze aos dezoito anos. A mãe de Wells acabou cedendo — ele chegou a ameaçar suicídio se continuasse trabalhando com tecidos —, e o jovem enfim teve a oportunidade de estudar e lecionar em Midhurst, entre 1883 e 1884. Em seu tempo livre, Wells pôde mergulhar em leituras. Leu o best-seller de teoria social Progresso e pobreza (1879), do economista Henry George, imensamente popular naquele fim de século, e teve contato com o utopismo radical da obra poética do romântico Percy Bysshe Shelley.
Shelley, já no começo do século XIX, em poemas como “Rainha Mab” (que chegou a ser censurado por conta de seu conteúdo político), “Prometeu desacorrentado”, “A máscara da anarquia”, “Os Cenci” e uma série de outros escritos poéticos e panfletários, defendera todo um conjunto de valores progressistas, como o secularismo, o antimonarquismo, o vegetarianismo e o feminismo — certamente influenciado pela obra de seus sogros, o anarquista William Godwin (também uma inspiração para Wells) e a pioneira feminista Mary Wollstonecraft. A maior ascendência que o clã dos Shelley exerceu sobre Wells, no entanto, veio da esposa do poeta, Mary Shelley, reconhecidamente a mãe do gênero de ficção científica e autora de romances como Frankenstein: o Prometeu moderno (1818) e O último homem (1826). No primeiro, como é notório, ela imagina um cientista, o dr. Frankenstein, que se descobre capaz de criar a vida, mas se vê horrorizado diante do monstro que resulta de suas experiências. Já O último homem é talvez o primeiro livro de ficção pós-apocalíptica, além de um comentário sobre o fracasso dos ideais políticos humanistas que haviam dado ânimo às produções dos românticos, já quase todos mortos quando foi publicado. Nele, em meio à continuação da guerra travada à época entre a Turquia e a Grécia (Mary Shelley imagina a guerra perdurando até o ano 2000), uma peste começa a assolar a Europa, espalhando-se pelo mundo até destruir toda a civilização, restando um único homem solitário.
Também dignos de nota entre as leituras de Wells em 1883 e 1884 são os periódicos The Freethinker e The Malthusian. The Freethinker é uma revista de teor humanista publicada desde 1881 (em 2014 saiu seu último número impresso e hoje o periódico continua em edição online). Fundada pelo editor George William Foote, assumiu desde o começo uma postura ateia e antirreligiosa, determinada, segundo as palavras de sua primeira edição, a “travar uma guerra implacável contra a superstição em geral e contra a superstição cristã em particular”. The Malthusian, como o próprio nome indica, era uma publicação da Liga Malthusiana, organização inglesa estabelecida em 1877 e dissolvida em 1927. De orientação igualmente secular, a Liga Malthusiana buscava promover a contracepção, em concordância com seus ideais malthusianos de controle populacional, e suas publicações seguiam por essa linha.
Em meio a essas leituras, surgia o perfil do jovem Wells aos seus dezoito anos: um jovem idealista, inspirado pelos conceitos otimistas de progresso e racionalismo que envolveram boa parte do mundo intelectual da Europa da segunda metade do século XIX, sobretudo da Inglaterra. Como ele mesmo comenta, “antes de eu completar dezoito anos, as linhas gerais das minhas ideias sobre a vida humana já tinham aparecido — ainda que grosseiramente”.
Em 1884, Wells ganha uma bolsa de estudos, de um guinéu por semana, na Normal School of Science, hoje o Imperial College of Science and Technology, em South Kensington,3 região oeste de Londres. Lá ele viria a estudar física, química, geologia, astronomia e biologia — a última disciplina sendo a que receberia a maior parte de sua atenção acadêmica. Seu orientador foi ninguém menos do que Thomas Henry Huxley (1825-95), biólogo especialista em anatomia comparativa e defensor da educação científica e do conceito de evolução, figura crucial para a disseminação e aceitação das ideias de Darwin numa época em que elas ainda eram tabu na maioria dos espaços sociais. O ano que Wells passou aprendendo anatomia comparativa com Huxley foi “o ano mais educativo” de sua vida, conforme afirmou.
Ao mesmo tempo que o jovem Wells refinava cada vez mais seus conhecimentos científicos, ele também se aprofundava em leituras literárias. Em seu último ano em South Kensington, entrou em contato com obras como A revolução francesa: uma história, de Thomas Carlyle, os chamados livros proféticos do poeta William Blake (O Livro de Thel, O Livro de Urizen, Milton etc.) e ainda as obras de Tennyson, Goethe e Shakespeare, entre outros, acumulando leituras também de história, sociologia, economia e prosa romanesca de língua inglesa. Wells ajudou a fundar a revista da faculdade, a Science Schools Journal, e se tornou seu primeiro editor, utilizando o periódico como um meio para expressar suas opiniões e publicar suas primeiras tentativas de escrever prosa literária a sério.
Por outro lado, apesar de os anos entre 1884 e 1887 terem sido uma época de grande desenvolvimento intelectual, foi também um período de condições difíceis. Em sua autobiografia, Wells relata ter passado fome. As agruras de ser um aluno pobre na faculdade provavelmente foram a inspiração para o seu conto “A Slip Under the Microscope”, de 1896, que acompanha um estudante de biologia, filho de um sapateiro, que por acidente acaba sendo reprovado, perdendo a bolsa e desistindo do curso. O conto fornece um retrato vívido do ambiente físico e intelectual de South Kensington. Sua experiência na faculdade também serviu de material para o romance semiautobiográfico Love and Mr. Lewisham, de 1900, um dos seus primeiros romances que não tratam de ciência ou ficção científica.
Em 4 de janeiro de 1884 foi fundada a Sociedade Fabiana, organização socialista britânica com sede em Londres, cujas reuniões Wells frequentaria ainda enquanto estudante, conhecendo figuras como o fundador, Graham Wallas, o escritor e ativista William Morris e o dramaturgo Bernard Shaw, e da qual faria parte oficialmente a partir de 1903.
Wells, porém, era uma figura difícil de se encaixar.
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