Ora, lembrava-me que nesse camarote a minha querida era a única que se achava vestida de branco e, pois, eu podia muito bem mandar-lhe um recado pelo qual me fizesse conhecido. E, pois, avancei para o moleque.
“Ah! maldito crioulo... estava-lhe o todo dizendo para o que servia!... Pinta na tua imaginação, Augusto, um crioulinho de dezesseis anos[80], todo vestido de branco, com uma cara mais negra e mais lustrosa do que um botim[81] envernizado, tendo dois olhos belos, grandes, vivíssimos e cuja esclerótica[82] era branca como o papel em que te escrevo, com lábios grossos e de nácar[83], ocultando duas ordens de finos e claros dentes, que fariam inveja a uma baiana; dá-lhe a ligeireza, a inquietação e rapidez de movimento de um macaco e terás feito ideia desse diabo de azeviche[84], que se chama Tobias.
“Não me foi preciso chamá-lo. Bastou um movimento de olhos para que o Tobias viesse a mim, rindo-se desavergonhadamente. Levei-o para um canto.
“– Tu pertences àquelas senhoras que estão no camarote, a cuja porta te encostavas?... perguntei.
“– Sim, senhor, me respondeu ele, e elas moram na rua de... no ... ao lado esquerdo de quem vai para cima.
“– E quem são?...
“– São duas filhas de uma senhora viúva, que também aí está, e que se chama a Ilma. Sra. D. Luísa. O meu defunto senhor era negociante e o pai de minha senhora é padre.
“– Como se chama a senhora que está vestida de branco?
“– A Sra. D. Joana... tem dezessete anos e morre por casar[85].
“– Quem te disse isso?...
“– Pelos olhos se conhece quem tem lombrigas, meu senhor!...
“– Como te chamas?
“– Tobias, escravo de meu senhor, crioulo de qualidades, fiel como um cão e vivo como um gato.
“O maldito do crioulo era um clássico a falar português. Eu continuei.
“– Hás de levar um recado à Sra. D. Joana.
“– Pronto, lesto[86] e agudo, respondeu-me o moleque.
“– Pois toma sentido.
“– Não precisa dizer duas vezes.
“– Ouve. Das duas uma: ou poderás falar com ela hoje ou só amanhã...
“– Hoje... agora mesmo. Nestas coisas Tobias não cochila: com licença de meu senhor, eu cá sou doutor nisto; meus parceiros me chamam orelha de cesto, pé de coelho e boca de taramela[87]. Vá dizendo o que quiser que em menos de dez minutos minha senhora sabe tudo; o recado de meu senhor é uma carambola que, batendo no meu ouvido, vai logo bater no da Sra. D. Joaninha.
“– Pois dize-lhe que o moço que se sentar na última cadeira da quarta coluna da superior, que assoar-se com um lenço de seda verde, quando ela para ele olhar, se acha loucamente apaixonado de sua beleza, etc., etc., etc.
“– Sim, senhor, eu já sei o que se diz nessas ocasiões: o discurso fica por minha conta.
“– E amanhã, ao anoitecer, espera-me na porta de tua casa.
“– Pronto, lesto e agudo, repetiu de novo o crioulo.
“– Eu recompensar-te-ei, se fores fiel.
“– Mais pronto, mais lesto e mais agudo!
“– Por agora toma estes cobres.
– Oh, meu senhor! prontíssimo, lestíssimo e agudíssimo.
“Voltei à sala do teatro, não sem admirar a viveza, experiência e talento do maldito crioulo.
“Ignoro de que meios se serviu o Tobias para executar a sua comissão. O que sei é que antes de começar o segundo ato já eu havia feito o sinal, e então comecei a pôr em ação toda a mímica amantética que me lembrou: o namoro estava entabulado; embora a moça não correspondesse aos sinais do meu telégrafo, concedendo-me apenas amiudados e curiosos olhares, isso era já muito para quem a via pela primeira vez.
“Finalmente, Sr. Augusto dos meus pecados, o negócio adiantou-se, e hoje, tarde me arrependo e não sei como me livro de semelhante entaladela, pois o Tobias não me sai da porta. Já não tenho tempo de exercer o meu classismo; há três meses que não como empadas e, apesar de minhas economias, ando sempre com as algibeiras[88] a tocar matinas. Para maior martírio a minha querida é a Sra. D.
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