Concordei mesmo algumas vezes em dar batalha a dois e três castelos a um tempo[64]; porém tu não ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no mais: tu és ultrarromântico[65] e eu ultraclássico. O meu sistema era este[66]:
“1o Não namorar moça de sobrado. Daqui tirava eu dois proveitos, a saber: não pagava o moleque para me levar recados e dava sossegadamente, e à mercê das trevas, meus beijos por entre os postigos das janelas.
“2o Não reqüestar moça endinheirada. Assim eu não ia ao teatro para vê-la, nem aos bailes para com ela dançar, e poupava os meu cobres.
“3o Fingir ciúmes e ficar mal com a namorada em tempo de festas e barracas no campo. E por tal modo livrava-me de pagar doces, festas e outras impertinências.
“Estas eram as bases fundamentais do meu sistema.
“Ora, tu te lembrarás que bradavas contra o meu proceder, como indigno da minha categoria de estudante; e, apesar de me ajudares a comer saborosas empadas, quitutes apimentados e finos doces, com que as belas pagavam por vezes minha assiduidade amantética[67], tu exclamavas: – Fabrício! não convém tais amores ao jovem de letras e de espírito. O estudante deve considerar o amor como um excitante que desperte e ateie as faculdades de sua alma: pode mesmo amar uma moça feia e estúpida, contanto que sua imaginação lha represente bela e espirituosa. Em amor a imaginação é tudo: é ardendo em chamas, é elevado nas asas de seus delírios que o mancebo[68] se faz poeta por amor.
“Eu então te respondia:
“– Mas quando as chamas se apagam e as asas dos delírios se desfazem, o poeta por amor não tem, como eu, nem quitutes nem empadas.
“E tu me tornavas:
“– É porque ainda não experimentaste o que nos prepara o que se chama amor platônico, paixão romântica! Ainda não sentiste como é belo derramar-se a alma toda inteira de um jovem na carta abrasadora que escreve à sua adorada e receber em troca uma alma de moça, derramada toda inteira em suas letras, que tantas mil vezes se beija.
“Ora, esses derramamentos de alma bastante me assustavam, porque eu me lembro que em patologia se trata mui seriamente dos derramamentos.
“Mas tu prosseguias:
“– E depois, como é sublime deitar-se o estudante no solitário leito e ver-se acompanhado pela imagem da bela que lhe vela no pensamento, ou despertar ao momento de ver-se em sonhos sorvendo-lhe[69] nos lábios voluptuosos beijos!
“Ainda estes argumentos me não convenciam suficientemente, porque eu pensava: 1o que essa imagem que vela no pensamento não será a melhor companhia possível para um estudante, principalmente quando ela lhe velasse na véspera de alguma sabatina[70]; 2o porque eu sempre acho muito mais apreciável sorver os beijos voluptuosos por entre os postigos de uma janela, do que sorvê-los em sonhos e acordar com água na boca. Beijos por beijos antes os reais que os sonhados.
“Além disto, no teu sistema nunca se fala em empadas, doces, petiscos, etc.; no meu eles aparecem e tu, apesar de romântico, nunca viraste as costas nem fizeste má cara a esses despojos[71] de minhas batalhas.
“Mas enfim, maldita curiosidade de rapaz!... eu quis experimentar o amor platônico, e dirigindo-me certa noite ao teatro São Pedro de Alcântara[72], disse entre mim: esta noite hei de entabular[73] um namoro romântico.
“Entabulei-o, Sr. Augusto de uma figa!... entabulei-o, e quer saber como?... Saí fora do meu elemento e espichei-me completamente. Estou em apuros.
“Eis o caso:
“Nessa noite fui para o superior; eu ia entabular um namoro romântico, e não podia ser de outro modo. Para ser tudo à romântica, consegui entrar antes de todos; fui o primeiro a sentar-me; ainda o lustre monstro não estava aceso; vi-o descer e subir depois, brilhante de luzes; vi irem-se enchendo os camarotes; finalmente eu, que tinha estado no vácuo, achei-me no mundo: o teatro estava cheio. Consultei com meus botões como devia principiar e concluí que para portar-me romanticamente deveria namorar alguma moça que estivesse na quarta ordem[74]. Levantei os olhos, vi uma que olhava para o meu lado, e então pensei comigo mesmo: seja aquela!... Não sei se é bonita ou feia, mas que importa? Um romântico não cura dessas futilidades. Tirei, pois, da casaca o meu lenço branco, para fingir que enxugava o suor, abanar--me e enfim fazer todas essas macaquices que eu ainda ignorava que estavam condenadas pelo romantismo. Porém, ó infortúnio!... quando de novo olhei para o camarote, a moça se tinha voltado completamente para a tribuna[75]; tossi, tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a pequena... nem caso; parecia que o negócio com ela não era. Começou a ouverture[76]... nada; levantou-se o pano, ela voltou os olhos para a cena, sem olhar para o meu lado. Representou-se o primeiro ato... Tempo perdido. Veio o pano finalmente abaixo.
“– Agora sim, começará o nosso telégrafo[77] a trabalhar, disse eu comigo mesmo, erguendo-me para tornar-me mais saliente.
“Porém, nova desgraça! Mal me tinha levantado, quando a moça ergueu--se por sua vez e retirou-se para dentro do camarote, sem dizer por que nem por que não.
“– Isto só pelo diabo!... exclamei eu involuntariamente, batendo com o pé com toda a força.
“– O senhor está doido?! disse-me... gemendo e fazendo uma careta horrível, o meu companheiro da esquerda.
“– Não tenho que lhe dar satisfações, respondi-lhe amuado.
“– Tem, sim senhor, retorquiu-me o sujeito, empinando-se.
“– Pois que lhe fiz eu, então? acudi, alterando-me.
“– Acaba de pisar-me, com a maior força, no melhor calo do meu pé direito.
“– Ó senhor... queira perdoar!...
“ E dando mil desculpas ao homem, saí para fora do teatro, pensando no meu amor.
“Confesso que deveria ter notado que a minha paixão começava debaixo de maus auspícios[78], mas a minha má fortuna ou, melhor, os teus maus conselhos me empurravam para diante com força de gigante.
“Sem pensar no que fazia, subi para os camarotes e fui dar comigo no corredor da quarta ordem; passei junto do camarote de minhas atenções: era o no 3 (número simbólico, cabalístico e fatal! repara que em tudo segui o romantismo). A porta estava cerrada; fui ao fim do corredor e voltei de novo: um pensamento esquisito e singular acabava de me brilhar na mente, abracei-me com ele.
“Eu tinha visto junto à porta no 3 um moleque com todas as aparências de ser belíssimo cravo-da-índia[79].
1 comment