efetivamente.
— Pois já nos vimos?
— Já. quero dizer, eu já vi V. Exa..
— Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter visto nunca. Apesar disso, sei que é o Sr. Henrique de Souselas, sobrinho daquela boa senhora de Alvapenha, a tia Doroteia; não é verdade?
— Eu próprio. O conhecimento que tenho de V. Exa. não é antigo também; data de algumas horas apenas.
A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contraiu levemente as sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de lábios e deu à cabeça uma ligeira inclinação sobre o ombro, donde resultou para aquela gentil fisionomia a mais adorável expressão de estranheza que pode animar um rosto de mulher.
— Esta manhã — prosseguiu Henrique, a quem os encantos daquele gesto não tinham passado despercebidos — assisti a uma cena comovente. O lugar era uma devesa; uma jovem senhora. jovem e. e com outras qualidades, além desta, para excitar atenções, lia, em voz alta, as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio.
Ela não o deixou continuar.
— Ah! Entendo agora. Viu-me? Já andava por fora? Não o supunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto. Não admira: hábitos da cidade. É verdade, é. Aquela gente encontrou-me no caminho, quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ânsia do coração, que a afligia. Coitadas! Que havia eu de fazer? Diga-me: já pensou no suplício que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escrita, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquele enigma? Que martírio! Eu, por mim, confesso que me falta o ânimo para recusar pedidos daqueles, como me faltaria para negar uma gota de água ao desgraçado que visse a morrer de sede. A crueldade seria quase igual. Não lhe parece?
Henrique formulou um galanteio, que ela porém não ouviu, entretida já a escutar o que uma das crianças lhe dizia.
— Lena, olha a Anica, que está a deitar a sopa dela no meu prato.
— Deixa falar, Lena, deixa falar; foi ela que primeiro a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!
— Então! — disse Madalena, que a este nome correspondia a contração familiar de que se serviam as crianças. — Olhem agora se têm juízo! Vejam se querem que eu vá dizer à mamã que venha para aqui.
— Não é ela a mãe, visto isso — pensou Henrique, como quem modificava uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação. — Será irmã? Talvez. Ou mestra. É mais provável que seja mestra. Esta mulher foi decerto educada na cidade. Tem uns ares distintos.
E, elevando a voz:
— V. Exa. está-me recordando uma cena de um precioso livro, que nunca me canso de ler.
— Qual é?
— Werther.
— Ah!
— Conhece?
— Conheço. quero dizer, li-o, por acaso, há pouco tempo. Compara-me a Carlota? É por estar a distribuir as rações destas crianças? Que mulher há que não seja Carlota, nessa parte? Em todas as casas se passa uma cena assim.
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