«E por isso, minha mãe» — lia ela — «se Deus me ajudar, espero dentro em pouco ir a essa terra e darei remédio a tudo. E não me fale mais em vender o cordão e as arrecadas. Diga ao senhorio que tenha paciência, que eu satisfarei a tudo».
— Aqui a leitora parou para perguntar:
— Então que história é esta das arrecadas, Ana?
— É, senhora, que o aluguer estava vencido.
— E não podia falar-me antes de se lembrar do seu filho?
— Ora, senhora, bem basta o que.
— Fez mal. Estar a afligi-lo com estas coisas! Ele que precisa de toda a coragem!
E continuou a ler a carta, no meio das lágrimas e das expansões de alegria da ouvinte, mais interessada nela.
Acabando, deu um beijo na criança, que tinha ao colo, e estendeu a mão a receber a carta que outra mulher do grupo lhe passou. Esta era menos de consolar. Não se falava ali senão de contratempos, de reveses e desesperanças. Mais do que uma vez teve de suspender a leitura, para mitigar a dor e enxugar as lágrimas que ela estava produzindo na pobre mulher a quem era dirigida.
Após esta, ainda outra e outra; uma de marido para mulher; outra de filho para mãe; outra de noivo para noiva.
Foi com o riso nos lábios e inofensiva malícia nas inflexões da voz e no olhar, que ela decifrou os mal legíveis caracteres, com que, em papel bordado, pintado e recortado, vinham expressos os mais arrebicados conceitos amorosos que ainda ditou uma paixão.
A noiva corava, sorria; mas, no meio da sua modesta turbação, era evidente que estava exultando de júbilo.
Com esta terminou a leitura.
Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o gracioso grupo na carteira que trazia consigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrém de pura raça e dando à donzela, pelos trajes com que a desenhou, os ares de uma castelã rodeada dos seus vassalos.
Não lhe bastou o natural do quadro; quis revesti-lo de um figurino de convenção. Perdoe-lhe a arte, que julgou servir.
Depois de distribuir mais alguns beijos pelas crianças, a gentil rapariga passou a que tinha no colo para os braços da mãe e partiu rodeada de agradecimentos e bênçãos, perdendo-a Henrique de vista, por entre as árvores do caminho.
Aquele tipo delicado de mulher, aquela singeleza do apurado gosto, em que não podiam enganar-se olhos conhecedores, como os dele, aquela preciosa pérola ali na aldeia! numa terra para chegar à qual era necessário fazer uma comprida e laboriosa jornada! Donde viera ela e como? Que nuvem a trouxera? Que viração a transportara?
Em tudo isto ficou a pensar Henrique, e, quando se lembrou de que podia, para esclarecer-se, interrogar alguém do grupo, já não ia a tempo; tinham dispersado.
Conseguiu finalmente passar para a devesa, e foi sentar-se no lugar em que lhe aparecera a visão e aí se demorou algum tempo; mas, lembrando-se de que eram quase onze horas, levantou-se para não faltar às promessas feitas à tia Doroteia, e que eram: a de visitar as senhoras do Mosteiro e a de estar em casa pouco depois do meio-dia, para não transtornar a regularidade dos hábitos domésticos em Alvapenha.
Pediu, pois, a uma criancita, que passava, que o guiasse à quinta do Mosteiro, e aí chegou depois de um quarto de hora de caminho.
CAPÍTULO IV
A casa do Mosteiro, com a quinta anexa à casa, como o dava a entender o nome pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempos a uma Ordem monástica.
Era um destes conventos campestres que hoje ou se encontram em ruínas ou transformados em solar de alguma notabilidade provinciana. Ao de que falamos coubera o último destino.
Incluído, depois do ato ditatorial de 1834, na lista dos bens nacionais, fora, por insignificante preço, vendido a um modesto proprietário das imediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais convencido da estabilidade da nova ordem de coisas políticas, que se inaugurava no país.
E, em tão auspiciosa hora lhe acudira aquela inspiração, que, em pouco tempo, lhe restituía a quinta o capital empregado, regalando-o todos os anos com não calculados juros, e ele, sem intermitências, cresceu daí por diante em prosperidades a ponto de deixar, ao morrer, a família no número das mais abastadas naquela terra.
A propriedade do Mosteiro, apesar de vários melhoramentos e reformas efetuados nela, oferecia, ainda claros, muitos vestígios dos seus primitivos usos. Não era raro encontrar-se, aqui e ali, em pé uma cruz de pedra marcando antigos lugares de devoção; no alto de algumas portas conservava-se visível o emblema e divisa da Ordem, ou restos de inscrições latinas; nas paredes da arcaria, em que se apoiava a face posterior do edifício, mantinha-se ainda um azulejo contemporâneo dos frades; finalmente resistira a sucessivas reformações certo colorido monástico, que só após muitos anos se dissiparia de todo.
Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e majestosa álea de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados, por pouco trilhada, crescia espessa e verdejante. Abria-se, ao fim desta rua, o alto portão do pátio.
Henrique, deixado só pelo guia ao chegar ali, foi caminhando vagarosamente por esta avenida, dominado por a íntima comoção e sentimento quase de temor, que se apodera de nós em todos os lugares a que se ligam memórias do passado.
A fantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já as suas recordações, às épocas, em que, por entre estas árvores gigantes, se via perpassar como um fantasma, o hábito escuro do monge, cuja sombra o Sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes projetou, esguia e estirada, ao longo daquela mesma avenida.
Impressionado com esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão, transpondo o qual, se introduziu no pátio. Era um largo terreiro de perfeita forma retangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, lateralmente por elevadas paredes, armadas, à maneira de panos de Arrás, com tapeçarias de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se dois tanques de vasta capacidade.
No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas, de todos estes quatro tanques, grossos jorros de fresca e puríssima água; porém, as medidas económicas do último proprietário e as exigências dos projetos agrícolas tinham derivado para outros fins parte desta abundante veia, de maneira que três daquelas bacias estavam agora completamente a seco.
Os fetos, de folhas recortadas, as pegajosas parietárias, os funchos odoríferos, há muito que tinham invadido a boca dos encanamentos inúteis onde encontravam asilo imperturbado lacertinos, aranhas e miriápodes, e se estabeleciam pacíficas colónias de caracóis.
A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notável pelo lado arquitetónico. A arte não tivera fadigas, ao concebê-la; o cinzel pouco se embotara a executá-la: nem uma coluna singela, nem um florão, nem um tímpano lhe davam a menos pretensiosa aparência monumental. Imagine-se uma vasta casaria de um andar, além do térreo, com muitas janelas de peitoril e uma só varanda de pedra, sobranceira à porta principal; acima do telhado, uma espécie de água-furtada, de construção evidentemente posterior e aconselhada aos proprietários modernos por conveniências de acomodação doméstica; e ter-se-á concebido o edifício.
Enquanto Henrique se ocupava a examinar estas particularidades, um velhito, que, sentado num banco de pedra, que havia à porta de casa, se estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do recém-chegado, tossindo e arrastando os passos.
Junto de Henrique, o velho, de aparência meia rústica, meia urbana, depois de o saudar com grave cortesia, que deixou a descoberto o solidéu fradesco com que resguardava a cara calva, perguntou se havia alguma coisa em que o pudesse servir.
Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar a senhora, com nova cortesia lhe fez sinal para que o acompanhasse, e ambos atravessaram o pátio em direção da casa.
No portal, o velho afastou-se de lado com toda a deferência para deixar passar Henrique; em seguida, abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e, voltando-se, pediu-lhe que lhe dissesse quem havia de anunciar. Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete de visita, cuja significação teve de explicar, porque o velho não a compreendia bem.
Afinal, porém, retirou-se por outra porta, levando o bilhete.
A sala em que Henrique ficou esperando era toda mobilada com pesadas cadeiras de coiro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e pelas paredes alguns enegrecidos retratos de frades, pertencentes provavelmente aos antigos proprietários do mosteiro.
No momento em que o velho servo, que era uma espécie de feitor honorário da casa, abriu outra porta da sala, para ir anunciar à família a visita de Henrique, chegaram aos ouvidos deste, de mistura com um tinir de louças e de cristais, as vozes e risos de crianças, que falavam ao mesmo tempo. Com a entrada do velho produziu-se um curto silêncio, e após, uma voz de mulher, de timbre fresco e agradável, disse audivelmente e como em resposta às palavras do criado:
— Ora as etiquetas com que esteve, Torcato! Mande-o entrar para aqui.
O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a mesma voz redarguiu:
— O que não é bonito é fazê-lo esperar. Ande, vá.
Torcato — chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram — apareceu outra vez e fez sinal a Henrique de que o esperavam na sala imediata.
Henrique, que pressentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e porventura bonita, correu, com instinto de perfeito homem de corte, os dedos pelos cabelos, afagou o bigode, ajeitou rapidamente o laço da gravata e entrou.
Era completo o contraste deste aposento com o primeiro; transpondo aquela porta, dissipava-se todo o perfume antigo, todo o carácter de vetustez que até ali reinava em tudo. Era moderno o estuque do teto, moderníssimo o papel que forrava as paredes; e a mobília toda de um cunho de atualidade, visível aos olhos menos pesquisadores. Como para tornar mais frisante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui substituída por a de duas crianças, a mais velha das quais mal passaria dos seis anos.
O reposteiro que caiu atrás de Henrique foi como que uma cortina corrida sobre o passado. A porta que ele transpusera, a barreira que separava dois séculos.
Sentadas no topo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina inglesa, estavam as duas crianças que dissemos, com os seus babeiros brancos e tendo cada qual em frente de si um prato de odorífera sopa. Em pé, à cabeceira, presidia ao lunch infantil uma mulher, de quem Henrique só pôde notar vagamente os contornos gerais do corpo e não as particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas à luz das janelas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam o exame.
Ao ver entrar Henrique, ela disse-lhe jovialmente:
— Na aldeia a sala de receções é aquela em que a gente se acha, quando lhe anunciam uma visita. É assim, pelo menos, que eu compreendo o viver do campo.
— E é assim que eu o aprecio, minha senhora — respondeu Henrique, aproximando-se da mesa.
As crianças, interrompendo a refeição, fitavam o recém-chegado com aqueles olhos espantados e penetrantes, com que elas, prontamente, e quase sempre com a certeza de um verdadeiro instinto, decidem para si das simpatias ou antipatias de que lhes é merecedor um estranho, a quem veem pela primeira vez.
A mulher que presidia ao banquete não suspendeu com a entrada de Henrique a ocupação doméstica na qual estava empenhada. Mostrava receber-lhe a visita com um perfeito «à-vontade», que nada tinha, porém, de afetado.
— Não sei se V. Exa. sabe. — ia dizendo Henrique, quando, ao chegar perto dela, parou subitamente no meio da frase.
Na mulher que estava diante de si reconheceu a leitora da devesa, a interessante rapariga, que tanto o preocupara.
Era ela, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a cara, de um primoroso modelo, e os cabelos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez do longo xaile de casimira, trazia agora uma espécie de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de forma pouco mais ou menos semelhante à que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quase sempre absurda e de mau gosto, teve depois a imprópria e desastrada denominação de zuavo!
A surpresa de Henrique não passou despercebida a quem era causa dela e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.
— Perdão, minha senhora — disse Henrique, compreendendo aquele gesto —, mas ignorava que vinha encontrar uma pessoa que já me não era estranha.
— E sou eu essa pessoa?
— É V. Exa.
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