Pois, se a aldeia fica ali em baixo, para que diabo subimos nós? Às voltas que temos dado, estou persuadido de que vamos tão adiantados como quando começámos a subir.
— Pois olha que dúvida! Se se fosse a direito lá por baixo, era mais perto, mas...
— Mas foi então pelo prazer de trepar que me trouxeste por aqui?
— Não é isso, patrão; mas bem vê V. S.A. que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar tais voltas, que afinal fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de como estão os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal é para uma pessoa se afogar. Mas tenha o patrão paciência, que pouco falta agora. Vê V. S.A. aquele tronco de sobreiro que parece, visto daqui, um frade de capuz?
— É ali?
— Não, senhor — disse o homem rindo —; mas vêem-se daquele sítio as primeiras casas da aldeia.
— As primeiras! — murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os braços com mais desalento e aumentou-se-lhe a flexão na coluna vertebral.
O almocreve prosseguiu para o distrair:
— Tenho passado por estes sítios muita vez com neve de se cortar à faca e de noite. E olhe que nunca tive medo. Qual história! Medo? Isso sim! E vamos lá! O sítio não é dos mais seguros. Vê o senhor esta cruz preta, aqui à sua mão direita, pregada no tronco desse pinheiro? Pois aí mesmo mataram um homem, que vinha com uns centos de mil réis da feira franca de Viseu, fez pelo S. Miguel um ano. E ainda hoje se está para saber quem foi. Num ermo destes só os santos podem valer a uma criatura.
Henrique sentiu-se pouco à vontade com as elucidações do cicerone; olhou para ele com desconfiança e quase julgou ver moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os cabos das pistolas, e aproximou as esporas dos ilhais da cavalgadura.
Dentro em pouco atingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do qual deviam avistar a aldeia.
Henrique olhou; viu lá no fundo do vale muitas árvores, mas continuou a não enxergar vestígios de casa.
— Onde está a aldeia que dizias, homem?
— Daí já se vê — disse o almocreve, correndo para alcançar o cavaleiro. — Não vê V. S.A., além, além, aqueles pinheiros mansos?
— Vejo, sim.
— Pois já são da freguesia. Se fosse mais claro, havia de avistar a casa do guarda. É a tapada dos Bajuncos, que pertence à Morgadinha dos Canaviais.
Henrique não respondeu. A distância a que ficava ainda a tal tapada fê-lo suspirar.
Enfim, passados minutos, começaram a descer para o vale, costeando sempre obliquamente o monte.
Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco, que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas já indistintamente, em virtude do adiantado da hora e da intensidade da neblina.
— Lá está a capela da freguesia — dizia o homem.
— Ali? — É um século para lá chegar?
— Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, ruço!
E aplicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que acelerou o passo.
O homem continuou:
— Até se fosse mais dia podia-se ver daqui a pedra que está no cemitério novo, e que é da família da Morgadinha dos Canaviais. Foi a mãe dela a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais ninguém. O povo, como o outro que diz, tem sua aquela em se enterrar fora da igreja. Ele, a falar a verdade. Eu bem sei que tudo vai do costume. mas enfim a gente foi criada nisto. Mas a pedra é coisa asseada. É como as que estão na cidade.
Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem atendia ao que o homem ia dizendo.
Cerrava-se a noite de todo, quando atingiram enfim o vale. O terreno mudava agora de aspeto. Apareciam já, aqui e ali, alguns indícios de cultura, anunciando a proximidade de um povoado.
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