Os caminhos estreitavam, internando-se no vale, e seguiam tortuosamente por entre muros toscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturais. A chuva, que não cessara de cair, transformara estes caminhos, onde o declive não dava escoamento às águas, em charcos e tremedais.
Novos indícios da vizinhança da aldeia iam sucessivamente aparecendo.
Aqui era uma manada de bois soltos, em direção do curral, guiados por uma criança de palhoça e pernas nuas, os quais paravam a olhar com aquela expressão de composta curiosidade, que lhes é peculiar, para o recém-chegado visitante da aldeia. Não faltou receio a Henrique, que supôs a estes bonacheirões quadrúpedes a índole travessa e bravia dos touros a cuja chegada tantas vezes fora assistir em Lisboa.
Mais adiante passava por eles uma fileira de carros a vergarem sob o peso do mato e atroando os ares com o chiar incómodo das rodas sob o eixo, incómodo para os ouvidos cidadãos de Henrique, cujos nervos se irritavam com ele, mas aparentemente agradabilíssimo para os condutores aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquele acompanhamento.
Num e noutro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de teto de colmo, de cujas inúmeras fendas saía um fumo espesso, que a atmosfera húmida mal deixava elevar nos ares. No olfato desabituado de Henrique de Souselas o cheiro resinoso e ativo das pinhas e das agulhas secas dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações muito longe de serem agradáveis.
Aumentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomara o ânimo.
— Tantas fadigas para este resultado? — pensava ele. — Sair de Lisboa para me enterrar nesta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do doutor. Pensava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus lhe perdoe o homicídio.
Os caminhos sucediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incómodo de trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labirinto. Aqui subiam; desciam mais além, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam em terreno descoberto, outras penetravam em tão estreitas quelhas, apertadas entre paredes argilosas e húmidas e toldadas de ramos entrelaçados, que só o instinto do animal podia evitar-lhes os perigos. Ora soavam as patas do macho como em chão lajeado, ora amortecia-lhe o som um terreno, que a chuva encharcava, e a água lamacenta vinha salpicar o rosto do cavaleiro.
As casas eram já frequentes, e algumas de menos humilde aparência.
Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas, ao ouvirem os passos da carruagem ou a voz do almocreve, que falava ou cantava sempre.
Outras vezes era um inarmónico grunhir suíno que acusava a vizinhança das cortes ou, partindo de um casebre rústico, o chorar de crianças, entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos chefes de família.
O almocreve não desistira das suas funções de cicerone, que somente interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.
— Estes campos e lameiros — ia dizendo — são da Morgadinha dos Canaviais; andam arrendados a um compadre meu.
E exclamava para dentro de uma casa térrea, escassamente iluminada por uma candeia:
— Boas noites, tia Escolástica. Como vai a pequenada?
— Ai, é vossemecê, Sr. José? Então não entra? — respondia-lhe uma voz feminina.
— Agora, não, amanhã.
E prosseguiu para Henrique:
— É uma santa criatura. A Morgadinha.
Henrique interrompeu-o:
— Aonde fica, afinal, a quinta de Alvapenha? Onde mora a minha tia? Não me dirás?
— É logo aí adiante, meu patrão. Em nós passando umas casas amarelas que há aí. é logo ao pé. Essas casas que digo são também da Morgadinha, mas há uma demanda pelos modos.
O almocreve falava pela décima ou undécima vez na Morgadinha. Até esta periódica referência a uma personagem que ele não conhecia impacientava Henrique de Souselas.
E continuavam a suceder-se em enredado dédalo as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruído das levadas, que as últimas chuvas tinham engrossado; adiante, transpunham uma ponte rústica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ela atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas nos moinhos.
Henrique a cada momento imaginava cair num abismo.
— São os açudes do Casal — dizia o almocreve, berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente. — Pertencem à Morgadinha dos Canaviais.
Henrique nem alento já tinha para falar.
Ao triste e quase sinistro aspeto daquela aldeia, tão cerrada lhe envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistência ao crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da salvação.
Mais adiante, excitou-lhe ainda as atenções uma toada plangente, melancólica, monótona, que exacerbou estes efeitos.
— É uma fiada em casa do Tapadas — disse o almocreve. — É um dos maiores amigos do pai da Morgadinha. Vê aquele muro acolá?
— Eu não vejo nada. Deixa-me!
— Pois pertence já à quinta dos Canaviais, que a Morgadinha...
— Outra vez! Cala-te para aí com essa Morgadinha — exclamou Henrique.
Era evidente enfim que estavam em pleno coração do povoado. As casas apareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de vozes que tinha o que quer que era de lúgubre. Era a coroa rezada em família a Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e trémula do avô, com a voz sonora e fresca da mãe, e a juvenil das raparigas e crianças naquele piedoso coro, produzindo um efeito que acabou por levar ao auge a impaciência do nosso esplenético viajante.
— Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que não a acabamos de atingir?
O almocreve desta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante junto às orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de árvores, volveu à direita e, à voz do almocreve, estacou em frente de um portão de quinta resguardado por um telhado rústico.
— É aqui — disse o guia.
— Até que enfim! — exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cansado da vida, quando antevê o repouso do túmulo. Em Henrique era íntima a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemitério.
CAPÍTULO II
O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no sólido portão de castanho, diante do qual tinham parado.
As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que acudiram de longe ao sinal e vieram ladrar à porta com uma fúria, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da receção que o esperava. De facto as intenções dos quadrúpedes não pareciam demasiado hospitaleiras.
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