Henrique. A Sra. D. Vitória e a Cristininha.
— Ai, pois cuidadosas são elas! Tu hás de te entender com aquela gente. É uma gente muito dada e sem cerimónia. É preciso lá ir. Olha, amanhã podes ir visitá-las. É um passeio bonito.
Henrique, que tinha estado distraído durante a conversa das duas, nem se dava ao trabalho de intervir no diálogo em que elas dispunham já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.
— Mas vai descansar, menino, vai e faz por dormir. Olha lá: tu costumas dormir com luz?
— Não, tia, não costumo.
— É porque nesse caso. Ó Maria, onde está aquela lamparina, que me serviu quando eu estive doente, há seis anos?
— Está lá dentro, senhora; se a senhora quer, eu.
— Vê lá, menino.
— Não, tia, não quero.
— Há pessoas que não podem dormir às escuras — dizia a criada. — Eu, graças a Deus, durmo bem de qualquer forma.
— Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, hás de ver se queres o travesseiro mais alto, ou.
— Muito agradecido, tia Doroteia, tudo deve estar bom — disse Henrique, procurando fugir às muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as duas o iam perseguindo até o quarto.
— Olha, ó menino, tu bebes água de noite?
— Às vezes.
— Você pôs-lhe água no quarto, Maria?
— Pus, sim, minha senhora; pois então? Já a minha mãezinha dizia que antes sem luz do que sem água.
— Bem, então está bem. Então muito boa noite, menino.
— Boa noite, tia.
— Ai, é verdade. Hás de ver se queres mais roupa na cama.
— Não hei de querer, não, tia.
— Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?
— Cinco, senhora.
— Cinco! — exclamou Henrique, quase horrorizado. — Cinco cobertores!
— É pouco?
— Pouco?! — É de morrer esmagado debaixo deles.
— Ai, quer não! Olha que está muito frio.
— Bem, bem, eu cá me arranjarei.
— Então, muito boa noite.
— Muito boa noite, tia.
E Henrique ia a fechar a porta.
— Olha. — disse ainda a tia.
Henrique parou.
— Não sei o que é que me esquece.
— Não há de ser nada, tia; boa noite.
— Não esquecerá? Eu se? Enfim. Boa noite. Ai, é verdade. Sempre é bom ficar com lumes-prontos.
— Ai, sim; lá isso sempre é bom.
— Vês? Não que bem me parecia.
— Já lá estão, senhora — disse a criada de longe.
— Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.
— Muito boa noite, tia.
E Henrique conseguiu fechar a porta.
Estava finalmente só.
— Que desastrada lembrança a minha! — disse o pobre rapaz, ao fechar a porta sobre si. — Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente, que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro de impertinências me esperava! Ai, Lisboa, Lisboa! E pensar eu que só posso voltar para ti à custa de outra jornada!
O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de almofada na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava o auxílio de cadeira para trepar acima dele, uma cómoda com um pequeno espelho, um baú, um lavatório e duas cadeiras mais, constituíam a mobília toda.
Henrique de Souselas sentia a falta de mil pequenos objetos de toucador a que estava habituado. Aquele estritamente necessário não lhe prometia grandes confortos.
Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvíssimo e respirava um asseio e frescura convidativos; os travesseiros, de largos folhos engomados, possuíam uma moleza agradável às faces; o colchão de penas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado.
Henrique conchegou a roupa a si; à falta de velador pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, pôs-se a ler, para obedecer a um hábito adquirido.
Não teria ainda lido um quarto de página, quando ouviu a voz da tia Doroteia, que lhe dizia de fora da porta:
— Ó menino, tu já te deitaste?
— Já, sim, tia Doroteia.
— Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um medo de fogos!
— Esteja descansada, tia. Eu apago já.
— Então será melhor. S. Marçal nos acuda.
E afastou-se, rezando ao santo.
Henrique continuou a ler.
Daí a pouco a mesma voz:
— Tu já dormes, Henriquinho?
— Não, tia, ainda não durmo.
— Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um medo de fogos! Não descanso, enquanto não vejo tudo apagado em casa.
Henrique perdeu a paciência.
— Pois pode sossegar. Olhe.
E apagou a vela meio zangado.
— Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por dormir.
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