Nada, nada: a ceinha em todo o caso. E tu hás de também querer mudar de fato?

—      Eu venho bastante molhado.

—      Ai, então depressa, menino, que não há nada pior do que a roupa molhada no corpo. Ó Maria. Ou deixe estar, eu vou. Anda, Henriquinho, anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

Meia hora depois, Henrique, banhado, enxugado e comodamente vestido, saboreava uma gorda galinha de canja, sobre uma mesa coberta de toalha lavada, e na melhor louça da copeira.

Ele, que tinha sempre severidades de crítica contra os mais afamados cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquela comida primitiva, com que o regalava a tia.

Esta sentou-se a vê-lo comer, e, com a mesma familiaridade que Henrique já anteriormente estranhara, Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.

Ambas tinham ceado já, pois que o faziam ao cerrar da noite.

Enquanto Henrique comia, elas, sem deixarem de o observar com a natural curiosidade de quem há tanto tempo não tivera um hóspede, faziam-lhe perguntas sobre perguntas, às quais ele ia respondendo conforme lhe era possível.

—      Tu dizias-me na tua carta que estavas doente; pois olha que na cara não o parece.

—      Não — concordou a criada — tem boas cores, e, vamos, a magreza ainda não é lá essas coisas.

Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu logo ao reclamo.

—      Não digam isso! Então não veem como estou? Pois isto é lá cor de saúde? De febre, será. Gordo? Pois acham-me gordo?!

—      Gordo, não digo, mas assim, assim. E, depois, como vieste de jornada. Mas afinal que moléstia é a tua, menino?

—      Eu sei lá, tia Doroteia? Nem os médicos a conhecem bem. É, entre outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a parte. Às vezes, parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ânsias. Tenho quase vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem, nada quero ver, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como. Finalmente, todo eu sou doença e tristeza.

A boa tia Doroteia olhava com sisudez e atenção para o sobrinho, enquanto ele falava, e na fisionomia iam-se-lhe desenhando, ao ouvi-lo, os mais expressivos sinais de espanto e consternação.

Assim que Henrique terminou a exposição, ela disse-lhe com uma adorável candura:

—      Então é assim uma espécie de mania?

À palavra «mania» Henrique sobressaltou-se. Seria a consciência que se sentiu ferida?

—      Mania? Ó tia Doroteia! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte! Mania!

—      Sim, menino! — insistiu ingenuamente a boa senhora — Pois olha que não é outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... Sim. Porque, não te morrendo ninguém, nem te doendo nada.

Ó poetas devaneadores, ó almas melancólicas, que percebeis, no sussurrar das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas ocultas de dríades e de náiades, sentidas vibrações das harpas de fadas aéreas que vivem em palácios de nuvens; ó corações inoculados de poesia, que vos confrangeis e gotejais lágrimas sinceras ao desmaiar do dia, ao desfolhar das árvores no Outono; poetas que escutais, com Vítor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepúsculo, e com ele adivinhais os mistérios dos raios e das sombras, perdoai a involuntária blasfémia da tia Doroteia, que não contém o menor fermento de malícia; perdoai-lhe a dura expressão de que ela se serviu para caracterizar os vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e crede que, apesar da frase, teríeis nela uma alma mais afinada para simpatizar convosco de que tantas que por aí fazem gala de vos compreender melhor.

Henrique não podia, porém, digerir a expressão de que se servira a tia, para diagnosticar o seu mal.

—      Mania! — repetia ele — Essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não, tia Doroteia, lá isso não. Mania!

—      Eu digo-lhe — acudiu a criada. — Não vá sem resposta; que está quase como o cunhado da Rosa do Bacelo. A senhora não se lembra? Andou aquela alminha por aí sempre muito triste, sempre a falar só, até que afinal lá foi parar.

—      Aonde? — perguntou Henrique, erguendo os olhos interrogadoramente para a criada.

—      Lá foi parar a Rilhafoles — concluiu esta, espevitando a vela o mais naturalmente deste mundo.

Henrique de Souselas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a última colher de caldo de arroz, que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera.

—      Então não comes mais? — perguntou a tia.

—      Muito agradecido; eu o mais que tenho é sono.

—      Pois sim, mas é preciso fazer por comer — insistiu ela.

—      Ora vá mais este coxão — disse a criada.

—      Não é possível — teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao quarto.

—      Tens razão, tens — concordou a tia Doroteia — deves estar fatigado. Vai com a nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia, que é o que dá saúde. Nada de malucar.

—      Sim — acrescentou a criada — e não queira estar doente, que não tem graça nenhuma.

—      E olha, Henriquinho, tu tens por aí com quem te podes distrair. O brasileiro Seabra, que tem uma casa como um palácio; o Augustito do doutor, que é um bom mocinho. E depois vai dar um passeio por aí, um dia até os moinhos; outro dia até à ermida da Senhora da Saúde. Agora me lembra: a Lenita já mandou aí outra vez saber se tinha chegado o hóspede — disse D. Doroteia.

—      Não foi só a Morgadinha.

—      Aí está você a chamar-lhe também a Morgadinha.

—      Então, senhora?! Isto é o costume. Mas todas as outras senhoras mandaram também o Torcato saber do Sr.