S.A. de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se procura em Portugal fomentar nos concelhos rurais o gosto pelas letras antigas; era ainda regente e diretor da filarmónica da terra, armador de igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremeses populares, e, quando Deus queria, autor de alguns também.
Vendo entrar Henrique nos seus domínios, o ilustre funcionário tirou cortesmente o seu boné de pele de lontra e ergueu-se da banca para cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou disse o nome de Henrique.
Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou o latinista e, achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito, convenceu-se de que estava na presença de um falador de assustar.
Com o fim de cortar a divagação em que o homem entrara a respeito de certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio não chegara ainda.
— Saiba V. S.A. que ainda não — respondeu o Sr. Bento Pertunhas — mas não deve tardar. O homem que daqui vai buscar as malas à vila, se bem andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro de gente, que V. S.A. aí vê à porta, está à espera dele. Hoje, então, que chegam as cartas do Brasil, ninguém pára com este povo. Dão-me cabo da paciência. Isto é um inferno! Eu sirvo este lugar interinamente, enquanto o empregado está paralítico; porque eu tenho outro cargo público: sou professor de latinidade.
— Ah!
— É verdade, mas a minha vocação era para as artes. O meu pai queria que eu fosse padre e mandou-me ensinar latim; mas já então a minha paixão era a música. Eu ainda queria que V. S.A. me ouvisse tocar trompa, que é o instrumento que mais tenho estudado. Se V. S.A. se demorar, há de fazer-me o favor.
— Com muito gosto.
— Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação!
— Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das letras deve-lhe proporcionar gozos; porque, enfim, para quem possui instintos de arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida.
O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.
— Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode achar-se gosto em lê-los? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma vontade! O latim! Amais destemperada e desesperadora língua que se tem falado no mundo! Se é que se falou — acrescentou em voz baixa.
— Então duvida que se falasse latim? — perguntou Henrique, sorrindo.
— Eu duvido. Não sei como os homens se pudessem entender com aquela endiabrada contradança de palavras, com aquela desafinação que faz dar volta ao juízo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada, onde ninguém se lembra onde tem as suas coisas quando precisa delas e passa o tempo todo a procurá-las? Pois é o que é o latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vai dizendo: «As armas, o homem, e eu, canto de Troia, e primeiro, das praias». Quem percebe isto? Ora agora peguem nestas palavras e em outras, que eles punham às vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É quase uma adivinha. Ora adeus! E depois — continuou ele, entusiasmado com o riso de Henrique, supondo-o de aprovação — e depois as diferentes maneiras de chamar a um objeto? Isso também tem graça. Nós cá dizemos por exemplo: «reino e reinos», e está acabado; lá não, senhor; diz-se regnum e regna e regni e regno e regnis e até regnorum. Ora venham-me cá elogiar a tal língua.
Henrique estava achando delicioso o ódio entranhado de mestre Bento Pertunhas à latinidade, que ensinava com a proficiência que o leitor pode imaginar, depois do que lhe ouviu.
— Ai, meu caro senhor — continuou o atribulado magister — eu, se me vejo um dia livre deste amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei de regalar de ver arder o Tito Lívio e os Virgílios todos três.
É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a Virgílio.
Quer-me parecer que para este intérprete da literatura latina tinham de facto existido três Virgílios, provavelmente irmãos, e cada um autor de cada um dos três volumes da edição que lhe servia de texto. Dizia Virgílio 1.°, 2.° e 3.°, como quem se refere aos monarcas homónimos, que sucederam num mesmo reino.
— Não me salvo se morro mestre de latim — prosseguiu ele. — Afunda-me no Inferno o trambolho da sintaxe.
Ia a continuar, quando toda a gente que Henrique viu fora da porta começou, em desordenada azáfama, a entrar para a loja, que em breve não comportava mais ninguém.
— Aí vem o homem, Sr.
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