Pertunhas; aí vem. Graças a Deus, que aí vem! — diziam todos à uma.

O funcionário começou a impacientar-se.

—      Então! Então! Por onde há de ele entrar, fazem favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Deem lugar. Não veem que estão molestando este senhor?

Cada um dos repreendidos nestes termos indignava-se ao ver que os outros não obedeciam às ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo, como se lhe valesse algum especial privilégio.

—      Saia você, mulher — dizia um.

—      E você porque não sai? Olha agora!

—      A todos há de chegar a vez. Descanse. Se tiver carta, lha darão. Lá por estar aqui não é que.

—      Pois então saia também. Ora essa!

—      Ó santinha, não empurre.

—      Ó filho, quem é que lhe fez mal?

—      Por onde é que se quer meter, homem de Deus?

—      Eu não sou menos que os outros.

—      Que quereis vós daqui, canalhada?

—      Não bata, que ninguém lhe tocou, seu velhote.

—      Espera que eu te falo.

Estas e análogas vozes abafavam num rumor tumultuoso as agudas declamações do «diretor do correio», o qual obrigou Henrique a passar para dentro da teia, para se salvar das ondas populares.

Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a alvoroçada ansiedade do povo.

Há, de facto, poucas cenas tão animadas, como a da chegada do correio e da distribuição das cartas numa terra pequena. Durante a leitura dos sobrescritos, feita em voz alta pelo empregado respetivo, um observador, que estude atento as impressões que essa leitura opera nos rostos dos que, ávidos, a escutam, como que vê levantar-se uma ponta da cortina, corrida a ocultar-nos as cenas da comédia ou da tragédia da vida de cada um.

Que hora de comoções aquela, em que se abrem as malas, onde vêm encerrados porventura os destinos de tantas pobres famílias! Quantas vezes verdadeira caixa de Pandora, donde se espalham as desgraças e os pesares!

Nas grandes cidades dispersam-se estas comoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes em que têm segurado com mão trémula na correspondência que o correio lhes traz; no ansiar do coração com que lhe interrompem a leitura; no irresistível movimento de desespero, com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que as subscreve; lembrem-se disso, multipliquem depois esses factos, todos, despojem-nos das reservas que a etiqueta impõe à s classes mais civilizadas; façam-nos manifestarem-se num mesmo momento e num mesmo lugar, e digam se concebem muitas outras cenas, em que mais sentimentos e paixões se agitem em luta travada.

Chegou enfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou a mala. O «diretor», depois de tossir, de assoar-se, de suspirar e de limpar os óculos com umas delongas, que formavam com a ansiedade do povo um contraste desesperador, abriu fleumaticamente o saco, extraiu um não muito volumoso maço de cartas, que despejou num cesto de vime, e tomou apontamentos.

Era digno do pincel de um artista aquele grupo de fisionomias, que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bocas abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para receber o menor som, tudo caracterizava profundamente a ansiedade que lhe dominava os ânimos.

Mestre Bento Pertunhas achou a ocasião apropriada para dizer a Henrique:

—      Pois, senhor, eu nasci para artista. Quase sem mestre aprendi a tocar trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão.

Henrique volveu o olhar para o auditório; apiedou-o a consternação daquelas fisionomias. Resolveu valer-lhe.

—      Tem a bondade de ver se há alguma carta para mim?

—      Ah! Pois já as espera hoje?

—      Não é provável; porém.

Mestre Bento Pertunhas, em vista disto, começou em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescritos.

Seguiu-se novo e não menos interessante espetáculo.

A cada nome proferido, erguia-se quase sempre uma voz, às vezes um grito; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos acrescentar, ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.

Outros, os não nomeados ainda, olhavam com ansiedade para o maço, que diminuía, e cada vez mais se lhes assombrava o rosto.

—      Luísa Escolástica, do lugar dos Cojos — lia o mestre Pertunhas.

—      Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem! — exclamou uma mulher jovem, apoderando-se avidamente da carta.

—      Joana Pedrosa, de Serzedo — continuava ele.

—      Aqui estou; será do meu António, senhor? — disse uma velha pobremente vestida.

—      Será do seu António, será — respondeu o insensível funcionário —; o que lhe posso dizer é que traz obreia preta.

A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras. Apanharam-lha, e ela, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente.

—      Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que há de ser dela — disse um dos circunstantes.

—      Coisas do mundo! — respondeu outro.

Estes comentários foram interrompidos pela continuação da leitura.

—      João Carrasqueiro.

—      Pronto, senhor — bradou o velho.

—      A mesada, hem? — disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos óculos. — O rapaz não se esquece.

—      Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem sido.

—      D. Madalena Adelaide de.

—      É a Morgadinha, é a Morgadinha — disseram a um tempo muitas vozes.

—      Agradecido pela novidade; era cá muito precisa a explicação — disse o Pertunhas; e, passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar, acrescentou:

—      Leve-lha lá a casa.

E prosseguiu:

—      Augusto Gabriel.

—      É o mestre-escola.

—      Ora fazem o favor de estar calados! Esta. como ele vem por aqui. pode ficar. ainda que. será melhor levar-lha a casa, leve, leve também.

—      João Cancela.

—      É o João Herodes.

—      Esse foi a Lisboa.

—      Então, quando vier, que apareça.

—      O tio Zé Pereira ficou de receber as cartas. É compadre dele.

—      Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé Pereira que se ocupe com o seu zabumba e deixe lá os outros.

A leitura, mais ou menos acompanhada destes diálogos, prosseguiu, redobrando de momento para momento a ansiedade dos que iam ficando. Um fundo suspiro, uníssono, melancólico, expressivo de desalento, seguiu-se à leitura do último nome e às poucas palavras com que o funcionário fechou a tarefa.

—      E acabou-se.

Os que ainda estavam na loja saíram cabisbaixos, morosos e com má vontade, como se ainda tivessem esperança de comover a inexorável sorte.

Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve de lhe escutar ainda, por muito tempo, a narração dos seus passados triunfos artísticos, das suas amarguras presentes no magistério, e das suas esperanças em melhoramentos futuros. Entre as ambições mais inquietas do mestre, a de obter o lugar de recebedor da comarca, próximo a vagar por a morte iminente do respetivo empregado, figurava em primeira linha.

Depois de várias tentativas, Henrique conseguiu deixar o seu interlocutor, e continuou o passeio, que este episódio interrompera, tão satisfeito e distraído, que nem apreensões lhe causava a ideia de trazer as botas humedecidas pelas ervas do caminho, ideia que, em outra ocasião, bastaria para o fazer doente.

Ladeava ele um campo, cingido de altas silvas, a procurar saída para a devesa, da qual um fundo valado o separava, quando lhe pareceu ouvir um rumor de vozes, como de alguém que conversasse perto dali.

Parou a certificar-se.

Não se enganara. Era do outro lado da sebe, e na devesa, para onde tentava passar, que se estava falando.

Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria, e viu uma cena que lhe moveu a curiosidade.

Um grupo de crianças e de mulheres do povo escutavam, em pleno ar e com religiosa atenção, a leitura que uma senhora jovem e elegante lhes fazia das cartas, que elas para esse fim lhe davam. A senhora estava montada, não como romântica amazona, em hacaneia fogosa, mas modesta e simplesmente num digno exemplar daqueles pacíficos animais a que Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de simpatia nas suas páginas mais humorísticas, e que Pelletan incluiu entre os colaboradores da humanidade na grande obra do progresso, ou, deixando a perífrase, numa possante e bem aparelhada jumenta.

À roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade às ancas e ao pescoço do imóvel quadrúpede.

A leitora segurava no colo a mais pequena e a mais nua das crianças do rancho.

Lia com voz agradável e sonora; e, graças à serenidade da manhã e ao sossego do lugar, ouviam-se distintas, à distância que ficava Henrique, as palavras, que ela pronunciava lentamente, como para as deixar penetrar bem na inteligência do auditório.

Henrique reconheceu muita desta pobre gente por a mesma que, momentos antes, vira na casa do correio.

Mas as suas atenções voltaram-se com especialidade para a leitora.

Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave, elegante, distinta; um desses tipos que insensivelmente desenha uma mão de artista, quando movida ao grado da livre fantasia; a cor, essa cor inimitável, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado das pálidas, encarnação surpreendente, a que ainda não ouvi dar nome apropriado.

Os cabelos em fartas tranças, em ondas naturais, não de todo pretos, porém mais distintos ainda dos louros; a estatura esbelta, sem ser alta; o corpo flexível, sem ser lânguido; um vulto de fada, enfim, com a majestade, com a graça que deviam ter estas criações da poesia popular, se fosse certo tomarem a forma de virgens, para matar de amores.

Não se concebe atenção tão distraída, que esta mulher não fixasse; olhos, que se não voltassem para segui-la, depois de a ver passar; coração, que não se perturbasse na sua presença.

Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no colo e punhos apenas por colarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente dos ombros um xaile de casimira escura, sem lhe ocultar as belezas da airosa conformação; o chapéu de palha, de largas abas, cobrindo-lhe a cabeça, espelhava pelo rosto as meias-tintas, tão favoráveis às belezas delicadas.

Henrique compreendeu logo a significação da cena, a que, tão inesperadamente, viera assistir. Aquela mulher parara ali, para ler a essa gente, pobre e ignorante, as cartas que tinham recebido do correio.

Também era caridade a ação, muito mais cumprida com o bom modo e com o carinho com que ela o fazia.

Henrique aplicou a atenção.

—      ...