“A vida de Balzac”. In: BALZAC, Honoré de. A comédia humana. Vol. 1. Porto Alegre: Globo, 1940. Rónai coordenou, prefaciou e executou as notas de todos os volumes publicados pela Editora Globo. (N.E.)

[3] Publicado na íntegra em Estudos de mulher, volume 508 da Coleção L&PM Pocket. (N.E.)

Introdução

O homem que curou o amor do preconceito da mocidade

“Hoje aí está Balzac, muito grande, o maior! Escutai a repercussão do seu nome e vede com que força sua obra se apoderou de todos nós. E nada! Nem um busto, nem uma placa de mármore! A posteridade lhe regateia uma estátua como seus contemporâneos lhe regateavam o talento” (Émile Zola, 1881)

A mulher de trinta anos é, sem dúvida, o mais conhecido e famoso livro de Balzac. Foi este romance que originou o termo “balzaquiana” para designar mulheres mais maduras, usado livre e popularmente mesmo por aquelas pessoas que jamais se aproximaram de um livro de Balzac. Sendo o mais célebre, A mulher de trinta anos certamente não é, entretanto, o seu melhor livro. A versão final é praticamente uma costura feita pelo autor de vários episódios ou contos publicados separadamente. Ao reunir, em 1844, o conjunto de sua obra sob o título A comédia humana, Balzac corrigiu algumas incoerências cronológicas e criou, em A mulher..., um fio condutor que dá aos episódios esparsos a unidade de um romance. Embora o livro se ressinta da descontinuidade gerada pela “colagem” de várias histórias, há momentos em que consegue ser digno do melhor Balzac. É o caso da cena, descrita com uma precisão e riqueza de detalhes quase jornalística, que mostra a personagem Júlia assistindo ao imperador Napoleão Bonaparte fazer a revista nas tropas que partem para a trágica (para os franceses) batalha de Waterloo.

Se não é uma absoluta obra-prima literária, A mulher de trinta anos, na opinião dos críticos, se constitui num elemento importante na história da emancipação feminina, uma vez que a infeliz heroína deste romance levanta problemas fundamentais da vida amorosa e sentimental das mulheres e mostra a sua perplexidade diante do fracasso do casamento. Poderoso ficcionista e monumental construtor de tipos, Balzac, neste livro, penetra de maneira ampla e generosa na alma feminina, a ponto de merecer de sua amiga Zulma Carraud as seguintes linhas, numa carta pessoal: “Você tem uma inteligência do coração das mulheres que nunca foi dada a nenhum outro homem... Ainda há algumas misérias deste pobre sexo que lhe escaparam, mas, decerto, nunca um homem conseguiu entrar mais fundo na existência delas...”.

A própria Comédia humana, segundo experimentados balzaquistas, com seu monumental acervo de quase três mil personagens, permaneceria de pé se – hipoteticamente – fossem dela retirados os personagens masculinos mais significativos. Mas irremediavelmente ruiria se fossem retirados os personagens femininos. São as mulheres que fornecem os pilares e o sentido à Comédia humana. Por elas os homens sonham, sofrem, corrompem e se enredam na selva parisiense onde tudo é uma busca por “ouro e prazer”. E o prêmio final e máximo é o amor de uma mulher, um beijo delicado numa mão pálida e pequena, um olhar, uma carta perfumada. Na arquitetura moral balzaquiana, os adultérios eram menos graves que o pecado da ganância, da avareza e da arrogância. Mulheres brilhantes, belas e sofisticadas geralmente traíam homens medíocres de pequena estatura intelectual. A complexa lógica do autor construiu seu moralismo de modo inverso ao óbvio, daí a fascinante ambiguidade dos personagens que, afinal, representam no romance as fraquezas que todos encontramos na vida real.

Por fim, Gabriel Hanoutaux e Georges Vicaire, críticos que coassinaram um estudo sobre Balzac, escreveram a respeito de A mulher de trinta anos: “Balzac prestou às mulheres um serviço imenso, que elas nunca lhe poderão agradecer suficientemente, pois duplicou para elas a idade do amor. Antes dele, todas as namoradas de romance tinham vinte anos. Ele prolongou até os trinta, até os quarenta anos sua vida ativa, pleiteando em seu favor a causa da natureza, da verdade. Curou o amor do preconceito da mocidade... multiplicou, se não a alegria humana, pelo menos a consciência desta alegria”.

I. P. M.






A mulher de trinta anos

Dedicado a Louis Boulanger, pintor

I

Primeiras faltas

No começo do mês de abril de 1813, houve um domingo cuja manhã prometia um daqueles belos dias em que os parisienses veem pela primeira vez no ano as calçadas sem lama e o céu sem nuvens. Antes do meio-dia, um cabriolé puxado por dois cavalos fogosos entrou na rua de Rivoli vindo da Castiglione, e parou atrás de várias carruagens estacionadas junto à grade recentemente aberta no meio da esplanada dos Feuillants.