Em Busca do Tempo Perdido 5 - A Prisioneira

MARCEL PROUST

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

A PRISIONEIRA

volume 5

Romance francês

Tradução Fernando Py

Do original: La prisionnere

ISBN 85-00-00915-2

Brasil

ISBN 9721007250

Portugal

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a intenção de dar aos deficientes visuais a oportunidade de apreciarem mais uma manifestação do pensamento humano.

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PREFÁCIO

por Fernando Py

A Prisioneira

Quinto romance da série Em Busca do Tempo Perdido, este A Prisioneira inaugura o chamado

"ciclo de Albertine", que continua e termina em A Fugitiva. É o primeiro dos três romances póstumos de Marcel Proust e, embora não tenha sido deixado em versão definitiva pelo autor, está inteiramente acabado quanto ao conteúdo. Sem ser dividido em capítulos, sua estrutura compreende, todavia, cinco jornadas, ou séries de dias, estrutura que já foi comparada à de uma tragédia clássica.

A personagem de Albertine ganha aqui um relevo extraordinário, raiando pela obsessão.

Praticamente não há página em que seu nome não apareça ou em que não haja menção a ela, de tal modo as análises psicológicas do Narrador têm como fundo o seu ciúme por ela, a quem mantém como que seqüestrada em sua casa.

O mais importante, porém, é assinalar outro tipo de reflexões sobre literatura, onde, a partir de comentários monologais quanto à obra musical de Vinteuil, Proust expõe, a grosso modo, o seu método crítico e a maneira de empregá-lo embora não num sistema coeso, antes numa série de pequenas notações que, no entanto, visam à generalidade e preparam as reflexões finais de O Tempo Recuperado.

Mas a maior marca deixada em A Prisioneira é a da morte: não só ocorrem as mortes de muitos personagens do ciclo, especialmente as de Bergotte e de Charles Swann (a deste último, já previamente assinalada em Sodoma e Gomorra, tem aqui um desenvolvimento emocionado por parte do Narrador), como, especialmente na última jornada, ocupa uma posição de destaque nas reflexões e monólogos do Narrador, desse modo antecipando a morte futura de Albertine e a noção de que o tempo, afinal, mais uma vez, destrói todo amor. Por estas e outras considerações, A Prisioneira anuncia o final do ciclo e nele acelera-se enormemente o tempo da narrativa, que progride vertiginosamente para o seu fim em O

Tempo Recuperado.

Fernando Py

A PRISIONEIRA

Logo de manhã, a cabeça ainda virada para a parede, e antes de ter visto, acima das grandes cortinas da janela, qual era o matiz da raia de luz, eu já sabia que tempo estava fazendo. Os primeiros ruídos da rua já tinham informado, conforme chegassem amortecidos, desviados pela umidade ou vibrantes como flechas na área ressoante e vazia de uma manhã espaçosa, gélida e pura; desde o rodar do primeiro bonde, eu percebera se o tempo estava enregelado na chuva ou a caminho para o azul. E

talvez esses mesmos ruídos também tivessem sido precedidos por uma certa emanação mais rápida, mais penetrante, que, deslizando através do meu sono, espalhasse nele uma tristeza anunciadora da neve, ou fizesse entoar, a determinada personagenzinha intermitente, tão numerosos cânticos à glória do sol, que estes acabavam por trazer até mim, que, ainda adormecido, principiava a sorrir e cujas pálpebras fechadas se preparavam para o deslumbramento, um atordoante despertar em música. Aliás, foi sobretudo do meu quarto que, durante esse período, percebi a vida exterior. Sei que Bloch disse que, quando vinha visitar-me à noite, ouvia o rumor de uma conversa; como minha mãe estava em Combray, e ele jamais encontrava ninguém no meu quarto, concluiu que eu falava sozinho. Quando, muito mais tarde, soube que Albertine então morava comigo, compreendendo que eu a escondera de todos, declarou que via enfim o motivo pelo qual eu nunca desejava sair nessa época da minha vida. Enganava-se. Era, aliás, bem desculpável, pois a realidade, mesmo se necessária, não é inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali conseqüências que o não são, vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.

Quando hoje penso que minha amiga fora morar, após o nosso regresso de Balbec, sob o mesmo teto que eu, em Paris, que renunciara à idéia de fazer um cruzeiro, que tinha o seu quarto a vinte passos do meu, no fim do corredor, no gabinete das tapeçarias de meu pai, e que todas as noites, bem tarde, antes de me deixar, deslizava sua língua dentro da minha boca, como um pão diário, como um alimento nutritivo e que tivesse a natureza quase sagrada de toda carne à qual os sofrimentos por que passamos devido a ela acabam por conferir uma espécie de doçura moral, o que logo recordo, por comparação, não é a noite que o capitão Borodino me permitiu que passasse no quartel, por um favor que, afinal, só curava um incômodo passageiro, mas aquela em que meu pai dissera a mamãe que fosse dormir na cama junto à minha. Desse modo, a vida, se mais uma vez deve livrar-nos de um sofrimento que parecia inevitável, fá-lo em condições diversas, por vezes opostas, a ponto de que há quase um sacrilégio aparente em constatar a identidade da graça outorgada!

Quando Albertine sabia por Françoise que, na noite de meu quarto de cortinas ainda cerradas, eu não estava dormindo, não se incomodava de fazer um pouco de barulho ao se lavar no banheiro. Então, com freqüência, em vez de esperar uma hora mais tardia, eu ia para um banheiro contíguo ao dela e que era agradável. Outrora, um diretor teatral gastava centenas de milhares de francos para recamar de esmeraldas verdadeiras um trono em que a diva representava o papel de imperatriz. Os Balés russos nos ensinaram que simples jogos de luz, dirigidos aos pontos adequados, prodigalizam jóias tão suntuosas e mais variadas. Todavia, essa decoração, mais imaterial já não é tão graciosa quanto aquela que, às oito horas da manhã, o sol substitui à que tínhamos o hábito de ver quando só nos levantávamos ao meio-dia.

As janelas dos nossos dois banheiros, para que não nos vissem de fora, não eram lisas e sim enrugadas por uma geada artificial e fora de moda. De repente o sol amarelava essa musselina de vidro, dourava-a e, descobrindo suavemente em mim um rapaz mais velho que o hábito havia ocultado por muito tempo, me embriagava de lembranças, como se eu me encontrasse em meio à natureza, diante das folhagens douradas onde nem mesmo faltasse a presença de um pássaro. Pois ouvia Albertine assobiar sem parar:

Les douleurs sont des folies

Et qui les écoute est encore plus fou.

["As dores são umas loucas,/ E quem as escuta mais louco ainda." (N. do T)]

Eu amava-a demais para não sorrir alegremente do seu mau gosto musical. Aliás, essa canção tinha encantado a Sra.